Amar perdidamente!

Hoje lá recebi mais uma fotografia em que apareço a dormitar. De há uns tempos a esta parte, os meus amigos não resistem a tirar-me fotografias ao sono solto que solto nas circunstâncias mais variadas e também mais inconvenientes. É da idade.

Algo parecido querem que aconteça à revolução do 25 de Abril. Há quem diga que a revolução está velha e há mesmo quem diga que está a morrer. Outros até dizem que não foi revolução. Há quem diga que foi uma revolução do passado do seu tempo. Há quem diga que mais valia que tivesse sido de outra forma e que podia ter sido de outra forma.

A revolução portuguesa de 1974 apanhou-me na tropa, depois de ter sido militante estudantil anti-fascista e a ser ou em vias de me tornar militante activo de organizações de extrema esquerda. Sempre a militar! E que desastrado militar! Depois da revolução de 1974, continuei a viver a pura e livre euforia da vida. Com o 25 de Abril perdi muito… medo. E mortos. E guerras sujas. Só isso? Nem queiram saber o que mais ganhei!

Não quero resmungar contra o passado. Se eu soubesse então o que sei hoje, outro galo me cantaria? Não, eu não quero incorporar no passado a sabedoria do futuro. Quero continuar a saborear a liberdade tal como ela me foi apresentada, nua tal qual a amei. Quanto mais sentia a falta dela, mais desesperadamente a amava. Quando ela chegou, dei comigo sem saber como lidar com a nossa relação e o máximo que consegui foi dar-lhe a mão e convocar uma manifestação para cada primeiro dia do resto da minha vida. À liberdade fiz juras, promessas de amor eterno e desejei-lhe vida eterna no meu pais, até que os mais novos não imaginassem um tempo sem ela. Tantas vezes lhe gritei o nome que há uma voz gravada nas paredes das ruas a sussurrar-me o seu nome: liberdade.

Estou velho e dormito amiúde. Adormeço mais vezes para acordar feliz mais vezes. Vou morrer um dia e não haverá sinal da minha passagem. Já a revolução de 1974 vai estar por aí acordada no novo tempo que, sem ela, não seria o mesmo e seria triste.

E, à sua passagem, como efeméride, aguço a minha atenção para sentir os sinais dos homens e das mulheres livres, que isso é sentir o que senti quando carregava às cavalitas os filhos para sermos a multidão do 25 de Abril. O 25 de Abril de sempre!


[o aveiro, 22/4/2004]

bouro

abrir os olhos para ver

bouro

abrir os olhos para ver

vilarinho de perdizes

abrem as janelas para eu ver

vilarinho de perdizes

abrem as janelas para eu ver

Camus proposto

Rien n'est donné aux hommes et le peu qu'ils peuvent conquérir se paie de morts injustes. Mais la grandeur de l'homme n'est pas là. Elle est dans sa décision d'être plus fort que sa condition.

Camus, Actuelles, I, p.24

O José Carlos Soares disse, numa carta em papel pautado, que se pudesse "postava" isto num "blogue". Eu "posto" por ele.

a visita

Recebemos a visita de Manuel Arcêncio da Silva - um murtoseiro . Já tínhamos saudades dele, largo e sorridente. Demos uma volta pela escola e levámo-lo a visitar a biblioteca escolar. Rimo-nos. Deu-me dois caderninhos - um para anotar o estado do tempo, outro para o desenhar. Quem é que fez anos?

a biblioteca parada.

A tragédia está sempre em iluminar a personagem em vez da pessoa. A tragédia é uma coisa de personagens, quando as pessoas já viveram demais e a sua vida pode ser reconhecida num palco sem emoções que não sejam as fingidas emoções dos actores.

A fragilidade das formas

Olho para o que ouço. Não preciso de ver. Sinto que estão ali perto do meu mundo, no meu mundo, as sombras de uma loucura que dança. A loucura anda à solta e salta à corda por aqui e por ali. De vez em quando, ergue-se uma forma humana e fala uma razão cristalina, como se a água tivesse regressado ao seu curso de rio interrompido pela enxurrada de sangue da loucura que salta à corda feita dos meus nervos.

Os super-heróis americanos tiraram as fotografias todas à alegria que os tinha invadido enquanto invadiam o Iraque, sem resistência digna desse nome. A guerra procura as vitórias. Nestes últimos tempos a guerra tem tido as suas vitórias contra a humanidade que usa palavras como armas pela paz. Armados até aos dentes, os americanos e os seus aliados mostram os dentes brancos e brilhantes nos dias das vitórias. Depois, o tempo encarrega-se de sujar os dias que se seguem às vitórias dos super-heróis. Quem não tem razão é louco. Sabe-se hoje que os super-heróis estavam sem razão, loucos. A areia amarela do deserto sem emoções está colada aos dentes dos que morrem. A dança é macabra - os dois lados ensaiam um passo de dança, a um passo da morte.

O super Ariel cospe bombas como quem cospe as pevides de uma melancia podre que é a sua cabeça em vez da cabeça. Ás vezes, temos a sensação que, sempre que acontece ser acusado de corrupção ou outra minúcia de loucura, dispara para uma notícia maior que a sua própria notícia. Ao mesmo tempo, cerca-se quando cerca os outros, separa com um muro os vizinhos. Super Ariel está em Israel - dentro ou fora de si mesmo? Não sabemos de qual dos lados do muro se está preso. E é por isso que as fronteiras que se erguem como muros fazem dos povos prisioneiros, vizinhos da loucura.

Duas favelas. Duas misérias maiores que a miséria. Dois bandos de narcotraficantes do Rio de Janeiro lutam pelo controle do negocio. Matam-se uns aos outros. E a policia tenta controlar ou contornar a onda de violência. O que disto interessa é a resposta à proposta de isolar as favelas da violência com um muro alto. A resposta do eleito da cidade é um rotundo não. O melhor é quando diz que não quer criar um parque temático da droga.

Há sempre os que se matam uns aos outros. A loucura toma uma forma sem dentro e fora. Cada morte é tanto uma vitória como uma derrota. Quem se separa com um muro, é preso e prende, está dentro e está fora. Ninguém está livre. A luta entre os traficantes das favelas do Rio e da polícia contra os bandos reduz a pouco as guerras do mundo dos loucos e faz de Ariel mais do que um construtor de um muro, um construtor de parque temático.

Desenho um muro a toda a minha volta. E descanso.

[o aveiro; 15/04/2004]

As folhas amarelas que sobrevivem.

Sem sair de casa, a árvore da minha varanda perdeu as folhas. Não sei para onde voaram as folhas. Não há rastos da fuga e nem uma ficou para trás que pudesse denunciar o lugar das outras. Fico por aqui à espera que a árvore da minha varanda se reconstrua no seu modo cuidado e lento. Todos os anos é a mesma coisa. Chego a convencer-me que morreu, para depois me espantar com a precisão da reconstrução. As novas folhas parecem-me sempre melhores que as dos anos anteriores. Também é verdade que a imagem que guardo delas é sempre a última e isso é memória de folhas velhas amarelecidas.

Hoje, na Pública, há uma viagem pelos alfarrabistas - Os Sacerdotes do Livro- HISTÓRIAS DE LIVREIROS-ALFARRABISTAS de Paulo Moura. Gostei das intercalares histórias falsas e verdadeiras contadas pelos alfarrabistas aos alfarrabistas. Lá aparece, citado repetidamente, um tal Tarcísio Trindade de que tive um livro de poemas (se for o mesmo!). Havia um poema que sabia de cor, penso que sobre nados-mortos, aqueles que viram o que os esperava e não quiseram passar para o lado de cá. É uma memória vaga. Vou ter de procurar o livrinho. Lembro-me que era um livrinho.

Se o encontrar, há-de ter folhas amarelas. De que me lembro eu?

Postolo

Postal para Parma


Escadas para nada

Postal para Parma


Se não temos onde ir, se não precisamos de subir, porquê as escadas? Imaginamos as viagens que fazemos para nenhures. Faz bem à saúde.

Amarramos a sombra

Postal para Parma


Alguma coisa nos vai amarrando. Embrulhamos as coisas que queremos mostrar e amarramo-las para que os outros tenham de as desamarrar. Porque nos ama(rra)mos? Para quê nos desama(rra)rmos? É como jogar às escondidas com a Raquel.
A Raquel é a sabedoria do estar fingindo não estar. Chama-nos a atenção enquanto se esconde, para ter a certeza que não nos esquecemos dela enquanto desaparece do olhar. Sempre que possível, deixa que a cortina tome a sua forma. E, impaciente, desoculta-se se nós demoramos mais que uma nesga de tempo a reagir. O que é a eternidade para ela? Não pensar nela.

Fortaleza.

Postal para Parma


Começo a arriscar a minha arte postal até Parma - Itália. Tenho os meus filhos todos emigrados no Centro Culturale Edison. Para além dos meus filhos, mais três companheiros ligados à "troupe" teatral "Visões Úteis" partiram para Parma. É a vida.

A intenção que voa

Na semana passada, em Beja, ouvi o Ministro da Educação dizer-se incapaz para falar com o sistema educativo. Em contrapartida, revelava ser capaz de falar e fazer propostas a uma escola em particular e prometia voltar ao Baixo Alentejo com propostas para aquela escola e para cerca de vinte escolas especialmente vocacionadas para o desenvolvimento de cursos tecnológicos. Ao mesmo tempo, revelava que muitas das antigas escolas técnicas tinham oficinas desaproveitadas e havia instalações e equipamentos em ruína… por haver falta de interessados nos cursos técnicos e tecnológicos. Não falava da falta de qualidade e quantidade da oferta dos cursos pelas escolas, mas de desinteresse dos alunos e suas famílias.

No início desta semana, o Primeiro Ministro torna públicos os planos do governo para reforçar o investimento público, ao mesmo tempo, que apresenta o plano de prevenção contra o abandono escolar. Entre as várias medidas, o Primeiro Ministro fala das 20 escolas de referência para o desenvolvimento do ensino tecnológico na base de parcerias de escolas, empresas e instituto de emprego. E fala no aumento de vagas para os cursos tecnológicos. Aparentemente, estamos no tempo da inspiração nos cursos certos, precisos ao tecido produtivo e desejados pelos jovens em idade escolar e suas famílias.

Eu quero que tudo dê certo. De facto, como o Primeiro Ministro diz, temos falta de formação dos jovens (e do povo) e os números do abandono precoce são eloquentes. Será que os portugueses não consideram importantes a escola e o sistema para o futuro dos jovens? Ou será que as escolas e o sistema não são o que deviam ser? Ou será que, apesar dos anos de separação brutal entre a sociedade e o conhecimento, nunca se fizeram os esforços necessários e faltou a inspiração para dar corpo a uma ideia nacional de inteligência baseada na cultura, no conhecimento ou no saber em geral?

Já temos a imensa maioria dos jovens nas escolas, como é natural e desejável à sociedade. Mas muitos jovens abandonam a escola antes de terem completado os estudos, e não temos conseguido inverter a situação com a urgência que a sabedoria recomenda. Ouvimos governantes, do PSD ou do PS, traçar planos para alterar a situação. Já nem quero criticá-los. Estou velho demais para não desejar que a algum deles, a qualquer deles, aconteça o milagre de uma correspondência entre as palavras da propaganda e a realidade social que eles simulam.

Uma dúvida me atravessa o espírito. Quem anuncia intenções para serem atingidas em 15 a 20 anos são os que, mal eleitos, torpedearam as intenções para 15 ou 20 anos dos anteriores governantes. E se perdem as eleições? Será mais um programa partidário de educação? Eles vão perder as eleições, ainda as palavras lhes estão a sair da boca.

As intenções têm asas e voam. Nós precisamos de qualquer coisa que seja semeada e tenha tempo para germinar e crescer a partir da nossa terra e da nossa gente.


[o aveiro; 8/4/2004]


Postolo

Este veio devolvido


Enviei este postal assim bonitinho para a neta de outro avô. Veio devolvido, com carimbos por todo o lado. Mando-lho por aqui. Também foram devolvidos os outros que lhe fui mandando. Os correios não adivinham as casas certas para os endereços errados que vamos escrevendo.

Postolo

Outro postal com fecho éclair e boca

Postal

Os postais de um avô mal formado


As reuniões servem para fazer bordados a tinta castanha. Não tem mal. O problema é que o bordado não fica apropriado para ser enviado a uma neta de tenra idade. Mas vai ser enviado, apesar disso. O que pensará ela mais tarde do seu velho avô? Esse é o desafio; mesmo que a surdez da cinza nos impeça de ouvir as imprecações, deixamos heranças destas como quebra-cabeças. São as únicas heranças.

O que se esconde

Tenho de reconhecer que José Manuel Fernandes é quem sabe
O Que Se Esconde por Detrás do Bloco.
Eu confesso que não me interessa saber o que se esconde por detrás do José Manuel Fernandes. Peço para não saber.
O Barnabé diz que o JMF leu e resumiu o Pacheco Pereira (com um atraso de 6 meses). Escondem-se atrás um do outro? Se assim fosse, não víamos (líamos) um e outro. Ou escondem-se, deixando rabos de fora?

Sulcos leves

António Brás escreveu
A Fixação Precária das Imagens

sobre dois poetas que eu conheço desde quando éramos todos rapazes. É bom saber que ainda há quem escreva sobre a oficina poética. Prefiro os poemas, mas que seria dos poetas com leitores como eu?

O céu dos pobres de espírito

Confirmaram o que já sabíamos: mais de metade das empresas e dos patrões portugueses não paga impostos. Ou aguentam com espírito de missão prejuízos imensos ou ficam ela por ela. Passeiam-se pelas ruas de corda ao pescoço. Houve logo quem viesse falar de fraude e evasão fiscal e da necessidade de as combater com o fim do sigilo bancário e cruzamento com os dados do património visível das famílias empresariais. Pelo meu lado, que conheço os princípios religiosos em que fomos formados, acredito em todo o povo católico. Eles eram lá capazes de cometer o pecado de roubar o estado de todos nós, mentir e exigir indevidamente serviços ao estado! Não. Eu fico é cheio de pena e rogo a cada um dos contribuintes que invente dinheiro para que o estado possa subsidiar os empresários que vivem abaixo da linha de pobreza. Penso mesmo que aqueles números horríveis sobre a pobreza estão a ser mal interpretados, já que o que devemos ter é uma bolsa de empresários sem abrigo e sem sopa e são precisas medidas de novo tipo. O nosso problema de pobreza é de um novo tipo: sabemos que o filho do patrão vai às aulas num bmwz3 da moda, mas, na privacidade das casas, é só pobreza envergonhada e falta de pão. A primeira medida de apoio aos nossos pobres empresários deve passar por acabar com rendimentos mínimos garantidos e similares. Penso mesmo que, caso o agravamento da carga fiscal sobre os trabalhadores por conta de outrem não chegue, se deve activar um pedido de ajuda internacional para debelar a pobreza persistente do nosso empresariado. Claro que, se algum confessar o pecado da gula e da fuga ao fisco, merece uma absolvição e “nada de propósitos firmes de emenda” que há muito a fazer com o dinheiro que, a cair nas mãos do estado, é mal gasto.
Pena que as semanas ricas não paguem impostos.

No Sameiro, Braga, algum diabo deitou fogo em vários locais ao mesmo tempo e o inverno fez-se inferno em vez de primavera. As árvores de Águeda, Sever do Vouga e Oliveira de Frades arderam porque alguém se deve ter posto a queimar os restos de alguma lida ao fundo de uma leira. Uma semana de vento pode abrir uma temporada de incêndios. Pobres bombeiros. Pobre mata. Não podemos atear fogueiras ao vento.

Banalizamos os gestos dos chicos espertos que fogem aos impostos e tolhem todas as iniciativas da sociedade. E banalizamos a coragem de fazer coisas erradas sem medo consequências. Na estrada quando conduzimos para matar ou se ateamos uma fogueira e pomos em risco a casa e a vida das pessoas. Se uma ponte cai e temos de chorar os mortos, porque haveríamos de chorar pelos culpados? Pobres de espírito, rica semana!

Absolvamo-nos uns aos outros!

[o aveiro; 1/04/2004]

Felgueiras

Em 1974/5, era eu aspirante ou alferes miliciano dos serviços de cartografia do exército, andei a fazer reconhecimentos em Felgueiras e Fafe. Passaram 30 anos até que lá voltei ontem. Encontrei Felgueiras, de novo, agora mudada, de vila em cidade. Não vi a Fátima. Depois da saída da autoestrada e até Felgueiras é que as estradas ainda devem ser bocados da antiga. Quando por lá andei tinha de parar amiúde para provar o vinho às portas ou na pensão onde me alojava. [Sabem quantas vezes tentei entrar em Fafe fardado
nesses tempos? Sem conseguir. Há mapas difíceis.]

No regresso, por razões matemáticas, recebi umas garrafas de vinho de Felgueiras. Como hei-de reconhecer alguma mudança no sabor do vinho?

;-)

As flores que enfeitavam de cores
o prado do teu cabelo
foram comidas pelos teus piolhos
hervíboros

Os pequenos esquilos que brincavam na floresta
dos teus cabelos
foram comidos pelas tuas pulgas
carnívoras

Os tubarões que nadavam no mar dos teus olhos
sob as franjas do teu cabelo
foram devorados pelas carraças
das tuas mesquinhas ideias

Tens tão pouca graça agora
que eu já nem sei se a gente inda namora.

:-)
[escrito vai para uma eternidade, reencontrado hoje]

Perguntas sobre o terrorismo.

António Aurélio Fernandes recomendou a leitura do artigo - Perguntas sobre o terrorismo - de Frei Bento Domingues, poublicado no Público de domingo. Eu acho que ele tem razão. Para o caso de alguém passar por aqui, fica a recomendação.

A eternidade.

Saio da escola para a manhã de vento. Inclinado para a frente, contra o vento procuro uma parede ao sol. Nos últimos dias, o vento mais forte mudou-se para Aveiro. Ouvimos as suas zangas dentro e fora de casa. Acabamos por nos habituar à sua presença intrometida em todos os lados da nossa vida.
Antes de alcançar a salvação da parede do Museu, ouço o meu nome. Viro-me para trás. Uma cara sorridente começa a dizer: - Claro que não se lembra de mim! E eu ensaio uma das minhas saídas de velho: - És o …! Ele corrige-me na primeira parte do nome já que eu tinha acertado na terminação. Também nunca consegui melhor em qualquer dos sistemas de apostas mútuas autorizadas e mesmo a terminação é rara.
A conversa não vai durar mais que uns momentos.
- Também não admira que não se lembre. Quando fui seu aluno, tinha 16 anos e agora tenho 38. Já lá vão 22 anos.
- E que fazes agora?
- Agora trabalho numa ETAR. E comecei a fazer trabalhos em madeira. Tirei um curso de carpintaria.
- A última vez que te vi, trabalhavas aqui perto no balcão da …
- Essa foi à falência há muito tempo! Depois disso, já andei 5 anos embarcado. Mas não era pescador. Trabalhava na copa.
- Estás muito mais magro.
- Estive doente. No mar, as condições das pessoas que lá trabalham são más e, quando o corpo estava mais fraco, apanhei-a. Fiquei parado e quis fazer uma grande dieta.
Depois de mais umas palavras para a troca, sobre a minha vida de sempre sem mudanças nestes 22 anos que passaram, despedimo-nos. Sigo até á parede do Museu que me esperava. Não chega e vou ter de me sentar encostado ao vidro da janela do café para poder ser acariciado pelo calor do sol.

Comecei a pensar nas notícias terríveis sobre a miséria em Portugal, que não pára de crescer nestes tempos de politicas promotoras do desemprego do presente em nome do emprego do futuro.

É então que fico a saber que Ariel Sharon assassinou o velho Ahmed Yassin, paralítico chefe espiritual do Hamas. Nem o velho Ahmed, sempre a contar o tempo em eternidades de vinganças, tinha conseguido fazer tanto pela guerra. Há dezenas de anos que Ahmed ansiava, sem o conseguir até agora, tornar-se um mártir da causa palestiniana. Uma rajada fria de estupidez criminosa varre as ruas do mundo, enquanto regresso à escola.

E o vento de Aveiro continua a soprar, mas já não presto a mínima atenção a qualquer das suas brincadeiras. Preciso que voltem a chamar-me pelo nome.

[o aveiro; 25/3/2004]

o outro

Por muitas razões que não vêm ao caso, António Florentino poderia ser considerado o outro. Não se sabe bem porquê, mas várias vezes ele declinou essa identidade e profissão. Da lista de mil nomes que lhe apresentaram à data de nascimento, ele assinalou a última linha correspondente a Outro. Quando, no nono ano, lhe pediram que assinalasse a profissão que escolheria entre as trezentas páginas de profissões presentes no cat?logo do orientador profissional, ele escolheu Outro. No estado civil, ele não escolhe solteiro, nem casado, nem viúvo, nem divorciado, nem separado de facto. Ele escolhe Outro. No que respeita ao sexo, incapaz de optar pelo M de masculino ou pelo F de feminino, ele desenha cuidadosamente um novo quadradinho, onde escreve a sua cruzinha e por cima Outro. Quem não o conhece, deve pensar que António Florentino não se enquadra nesta sociedade e é completamente marginal. Mas não é verdade. Ele é sociável, não morde e parece-nos feliz à vista desarmada.
Um psicoterapeuta, que o queria ajudar, deu-lhe a escolher um de entre os diagnósticos: "problemas na infância", "problemas na adolescência", "problemas na puberdade", "problemas na hipófise", "problemas na mão direita de deus". E ele, depois de muito pensar, escolheu Outro.

António Florentino é um caso. Dual é o caso do Outro, mas para este muito mais difícil. Sempre que Outro tem de efectuar uma escolha, escolhe António Florentino.

[pretextos 56; 1993]

embora

embora vibre
o dourado junco está morto:
à malícia do vento ainda obedece

o dourado vegetal é uma cor de moribundo
que se despede numa falta de ar e ao ar se esquece.


onde os cabelos são juncos e o meu corpo apodrece
a água parada transparece

tonino guerra

26. La dmènga specialmént

La dmènga specialmént
quant ch' u n gn'è niséun ad chèsa
e a sémm a là vérs la fóin ad zógn,
a vagh ad fura se teràz
par stè a sintói che adlà di méur
la zità la sta zétta.

26. La domenica specialmente

La domenica specialmente
quando non c'è nessuno in casa
e siamo là verso la fine di giugno,
vado fuori sul terrazzo
per stare a sentire che al di là dei muri
la città sta zitta.


41. La farfàla

Cuntént própri cuntént
a sò stè una masa ad vólti tla vóita
mó piò di tótt quant ch'i m'a liberè
in Germania
ch'a m sò mèss a guardè una farfàla
sénza la vòia ad magnèla.

41. La farfalla

Contento proprio contento
sono stato molte volte nella vita
ma più di tutte quando mi hanno liberato
in Germania
che mi sono messo a guardare una farfalla
senza la voglia di mangiarla.


[tonino guerra; il poverone]

Os olhos de Madrid.

Entraram nos comboios da madrugada dos trabalhadores e estudantes dos arredores de Madrid e neles abandonaram as suas mochilas carregadas de bombas. Que viram eles nas caras sonolentas daqueles filhos da madrugada no instante em que lhes encomendavam a morte? Na sossegada manhã das rotinas das multidões de trabalhadores, os assassinos disfarçam-se como peças humanas das mesmas rotinas.
O que o terrorismo tem de mais terrível é ser prova de que o homem, sentado no banco em frente ao meu sorriso confiante, pode ser o assassino da multidão de que faço parte. É a sua humanidade (ou a falta dela) que nos aterroriza. Porque é que voltamos sempre atrás, como se perseguíssemos a nossa própria sombra? Com que olhos olhamos por cima dos ombros?

De nacionalidades, culturas e religiões diferentes, duzentos inocentes foram sacrificados em Madrid, muitos deles imigrantes ilegais na fortaleza europeia. Todos morremos um pouco na manhã da última quinta feira de Madrid. E todas as pessoas vulgares se sentiram madrilenos feridos pela incerteza dos dias do ódio e das guerras sujas.

A frieza nas mentiras do governo de Espanha sobre os factos e os autores dos atentados dão uma medida do que é hediondo na luta politica pelo poder ou pela sua manutenção. Ficamos também a saber como os órgãos de comunicação social podem ser controlados pelos governos no poder.

E resta-nos a esperança da mobilização dos povos de Espanha. Já se tinham rebelado contra a participação da guerra no Iraque. E agora, nas ruas, esse mar de mágoas, exigiram a verdade ao governo do Partido Popular sobre o que se tinha passado de tal modo que se sobrepôs à manipulação do governo, tendo alterado o sentido de voto e derrotado o partido da guerra. A luta pela verdade derrotou o partido do governo e da manipulação mentirosa.

Aos nossos ouvidos, soam familiarmente (mas estranhas) as vozes de alguns analistas a estranhar que Zapatero do PSOE venha confirmar que vai cumprir a sua promessa eleitoral de retirar as tropas espanholas do Iraque. Dizem que é um perigo, já que tal gesto pode ser interpretado como uma cedência ao terrorismo e pode ser um incentivo a novos actos de terror. Devotados ao estilo de vida do consumo das suas ideias, achariam perfeitamente natural que a democracia fosse indiferente ao voto do povo. A sua sabedoria leva-os a pensar que só é democracia aquela que confirma, no plano do poder, a sua opinião, que é, espanto dos espantos!, a mais servida à mesa dos mais poderosos.

Somos todos madrilenos nestes dias. Tanto na mágoa e na radical oposição ao terrorismo como na oposição ao jogo sujo e à mentira como armas politicas. Contra quem somos madrilenos?

[o aveiro; 18/03/2004]

lata de bolachas

havia uma lata de bolachas. cheia dos trocados da infância.
tantos anos a esqueci que as poupanças da infância se perderam com as mudanças das moedas.
hoje lembrei-me delas e fui buscá-las, à infância e à lata.
despejei as moedas inúteis e, em seu lugar, para dentro da lata, amassei a esperança que me resta para dela me esquecer.
e guardei a lata, no lugar das coisas esquecidas, a lata de bolachas e a infância.

desde hoje sou madrileno e vivo num lugar povoado pela dor de saber.

portugal profundo

1.
Se o último livro de Cavaco Silva trouxesse uma página que fosse com um pormenor do Pulo do Lobo no Alentejo profundo, eu não resistia a comprá-lo. Em cada acontecimento que me lembre, há um detalhe que o lembra .

As viagens que fiz ficam perdidas no mapa de estradas da vida, a menos que um detalhe luminoso se transforme em sinal perene a piscar ao futuro. Não interessa nada ter ido a Moncorvo falar com professores de Matemática e ouvir o Presidente da Câmara falar do sentido do desenvolvimento, do betão em falta ou em excesso, das estradas que ainda não há, etc. Nem me marcou especialmente ver que há faixas à entrada e em frente à Câmara de Moncorvo a defender a Barragem do Sabor, tão combatida pelos defensores do rio selvagem e seus moradores sem voz. Há aqui algum desencanto com o falhanço do desenvolvimento de Foz Côa. Não acreditam em desenvolvimento feito sobre o património existente e o ambiente natural e, em troca de uma agitação desenvolvimentista ainda que efémera, não hesitam em afogar parte da vida natural que o esquecimento salvou do sacrifício ao progresso.
São poucas e de pouca monta para os interesses locais as pessoas que descem e sobem as encostas do Sabor selvagem. Não estão disponíveis para a vista desarmada do comércio e das ruas urbanas. Não contam, como não conta tudo o que não se vê à luz (que cega!) de um certo progresso,
Ali perto, no Freixo, alongamos o olhar para o céu já que o Douro se cerca de paredes altíssimas a toda a volta do olhar. Nem a mais leve agitação à superfície da água que parece(?) parada.. Na fotografia confundem-se as montanhas e o céu que vemos acima com as imagens das montanhas e do céu que vemos reflectidas no espelho das águas. Um lago entre duas barragens? Numa das encostas portuguesas, abrem-se janelas sobre o rio parado. Na margem portuguesa, há um café, um parque limpo e um cais para barcos de recreio com anúncios de viagens pelo douro internacional.
Qual é o detalhe que lembra? Sem guarda, as retretes públicas estão abertas e limpas com vários rolos de papel higiénico bem à vista. Não parece português.

Como é no Pulo do Lobo? Que terá ficado na memoria de Cavaco Silva?


2.
Mas profundo, profundamente português, é ter sido notícia de televisão (com entrevistas e tudo) o facto do filho de um comandante de policia de uma das nossas cidades do interior ter pago uma multa que lhe foi aplicada justamente. E o pai não lhe tirou a multa? Esta pergunta é portuguesa e profunda.

[o aveiro; 11/03/2004]

O prego no sapato

Um amigo que é pai preocupado e prego no sapato publicou no passado domingo um comentário sobre a avaliação no ensino básico. Para os professores, como eu sou, a leitura de notas dos pais sobre o ensino e a prática dos professores ajuda a olhar para o nosso mundo. Passo a minha vida a falar sobre os problemas que ele levanta. Ainda hoje me deram a oportunidade de falar com professores estagiários da Universidade de Aveiro e só posso dizer que as suas preocupações não me são estranhas e, tenho de o confessar, que as partilho (não para o básico só - para todo o ensino). Avaliação urgente? Pois claro! De quem, afinal?

Os pais que assim falam ajudam a escola e os professores. É para ler.

De regresso de Moncorvo

De regresso de Moncorvo, onde estive a cumprir um dever de ofício, falando para professores de Matemática, dei pelo recado de A.A. Fernandes a recomendar a leitura de uma coluna do Público de quinta feira passsada - Aborto - em Defesa da Moderação - escrita por João Pedro Henriques. Aqui fica o recado de A.A.F.

Segunda

Na segunda feira, fui surpreendido por um título de tipo que já não lia há muito tempo -- Tópicos Sumaríssimos Sobre IVG de Sottomayor Cardia. Recomendo.

Do mesmo Público, de segunda, também recomendo a leitura de A Conspiração de Helena Matos que Alexandra Lucas Coelho escreveu. Bate bem, em meu entender.

A chave dos sonhos.

Quando se juntam dois velhos, de que falam eles? A maior parte das vezes falam do passado, umas vezes tomados por estáticas lembranças do bom que foi (mesmo que não tenha sido bom), outras vezes falando sobre o que podia ter sido e sobre se podia ter sido como se tinha pensado que era bom que viesse a ser. Estranha frase!

Se juntarmos duas pessoas com 25 anos de sócios da mesma cooperativa de habitação, de que falam eles? Do que era a cooperativa e do sonho que morava nas casas da sua imaginação, do que afinal não foi, de quem e do que se perdeu pelo caminho. De passagem, falam de quem travou o quê, de quem fez o quê. Falam dos 15 anos de dança entre terrenos, desde a fundação da cooperativa até às primeiras chave e fechadura de casa construída no que é a sua urbanização.

Sabem que a Cooperativa não é o que inicialmente sonharam como obra cooperativa. Eles lembram-se bem do que defenderam, dos terrenos em direito de superfície, da propriedade colectiva, da casa para habitação própria e só transmissível de pais para filhos, etc. Também sabem que afinal adquiriram casas em regime de propriedade individual e que há pessoas que venderam as suas casas a preços do mercado(o que é isso?), ou que as alugaram, … Eles estão rodeados da vida inteira e não só dos seus sonhos feitos realidade.

Viram as pessoas mudar entre os valores cooperativos e os do mercado. Hoje em dia, as pessoas são sérias (e espertas!) se aproveitam as oportunidades de acordo com a lei ou legalmente e não são sérias por o serem simplesmente. Os governos empurraram a actividade social das cooperativas para o mercado e as cooperativas não podem controlar a vida e actividade individual dos seus membros. Podemos lamentar que parte dos sócios das cooperativas não actuem de acordo com a ética cooperativa? Podemos. Haverá sempre bons e maus cooperativistas e cooperativistas que têm valores muito diferentes dos nossos. Assim acontece com todas as actividades humanas.

Sendo uma actividade humana contraditória, como todas, as cooperativas construíram casas e nós sentimos que fizeram bem, mesmo que tenha havido quem delas se aproveitou para outros fins menos legítimos, não menos legais. A cooperativa é feita de sonhos também por não controlar consciências.

Em 25 anos, tudo muda numa cidade. A Cooperativa de Habitação de Aveiro, CHAVE, faz 25 anos neste mês de Março e é uma parte da cidade que mudou. Merece humanos parabéns!

[o aveiro; 4/2/2004]

Achas para a fogueira

Há fogueiras que devem manter-se acesas enquanto a noite for fria.
Rui Baptista, homem de amor e ócio e de Aveiro, passou pel'O lado esquerdo e deixou recado.

Falou da Ana S. Lopes, a mulher que escreveu que o aborto de que se fala não é só um problema de consciência, é também ou principalmente(?) um problema da lei, e lembrou-me o artigo -- Embirrações e Bom Senso que o Rui Baptista escreveu num dia da semana passada. Enquanto o tio passeia o seu ódio inteligente (como eu o compreendo!) pelos economistas, um economista, que toma conta da economia intelegível, acrescenta-nos dados para olhar o problema da IVG. Para ler, claro!

Boa dica!

Dicas para a memória na passagem.

Aconselho vivamente o texto de Ana Sá Lopes O Debate, da última página do Público. Porque sim.
E ver o que desenha Maitena -- na Pública -- sobre as mulheres

E o texto do A. Barreto - Ainda as escutas , sobre direitos humanos entre o que cada um sente e o que o Estado pode sobre cada um. Tratra-se de assunto essencial da democracia, mesmo quando não parece.
E todos os que escrevem sobre escutas daqui, dali e de todo o mundo, ... na ONU, por exemplo.
E a entrevista de Alexandra Lucas Coelho a J. Cutileiro sobre o Iraque, os senhores da guerra, a diplomacia, a mentira, etc.

E o que é o bartoon de hoje , artigo do meu cronista social preferido - luis afonso.

A. Fernandes lembrou-me que tenho em casa um livro da biblioteca da escola, que já devia ter sido devolvido. O livro de puyg adam sobre geometria projectiva olha para mim pedindo que o leia. Sem sucesso, tenho de reconhecer. Tinha sido esquecido, estando mesmo a olhar para mim todos os dias, como culpa e remorso. E, no entanto, ele vale mais do que os outros afazeres e tudo o que gasta o meu tempo. Mais me valera ler o livro do que os jornais.

Hei-de ver chegar o tempo em que me dedique (a todo o tempo) aos livros por ler e passe sem ler jornais? Porque tornar a vida no acidente do dia de hoje, 29 de Fevereiro - público, diário de notícias, expresso, ... ? Isto dos jornais passa e, em cada dia, torno-me o arrependido do meu dia de ontem.

Os dias que passam a correr

É bom escrever alguma coisa a 29 de Fevereiro. É coisa rara só por isso. Devia mesmo procurar um livro de poemas escrito a soluços, garantidamente só em anos bissextos. E nada melhor do que concentrar isso a 29 de Fevereiro. Escrever os bissex(t)os da vida deve ser uma vitória. Com a vantagem de poder descansar verdadeiramente entre cada poema ou texto ou pintura ou desastre. A vida nos bissextos. A vida num dia exclusivamente bissexto. Sacrificar a vida toda ao descanso para garantir um produção gloriosa e bissexta.
Daqui para diante, se acabar o meu relatório hoje, a 29 de Fevereiro, começo poupar-me para o próximo dia 29 de Fevereiro. Só a qualidade do que for esse longínquo dia passa a interessar-me. Dou de barato todos os outros dias dos próximos anos para que esse dia acorde luminoso, cheio de harmonia criativa, capaz da revolução, capaz de ser capaz. Posso esquecer-me mesmo de mim e das minhas óbvias e visíveis fraquezas no resto dos dias. Sofro menos com tal projecto de vida e talvez até dure mais. Só sobra um problema: e se eu me esquecer do que ando a preparar, do que me espera e para que me estou a guardar. Então toda a minha vida seria inútil, exactamente como é hoje.

o que não era para ser feito

Quando não consigo dar conta dos meus recados, dou por mim a fazer outras coisas que não têm tempo e podem não ter qualquer utilidade aparente. Umas vezes desenho o desconforto, que é o que faço na maior parte das reuniões. Outras, adormeço à espera de nova tentativa que dê frutos. Hoje decidi vaguear por alguns “blogs” e até acrescentar ligações à medida que os ia descobrindo.


não devia enviar isto à Raquel, mas não fiz outra coisa.



A ave e as asas: aveiro e o lado esquerdo

Raramente sinto necessidade de me explicar. Penso sempre que não sou objecto de curiosidade ou estudo. Muito menos o que escrevo ou deixo de escrever. Penso que pouca gente lê o que escrevo. Mas para evitar ideias erradas, embora bem intencionadas vale a pena explicar a origem dos títulos "O lado esquerdo" e "aveiro.blogspot.com".

O blog "o lado esquerdo" é nome herdado de alguma coisa que escreveu Carlos de Oliveira (em "Sobre o lado esquerdo"?) e que, se a memória não me atraiçoa, dizia-me ( a mim que o lia!) que me deitasse sobre o lado esquerdo se quisesse esmagar o coração. O título tem mais a ver com a poesia do que com a política. Mas já houve quem atribuísse a "o lado esquerdo" a representação oficial ou oficiosa do Bloco de Esquerda em Aveiro. Não é verdade.

E o endereço url - aveiro.blogspot.com – só tem a ver com o motivo proximo por que foi criado. Numa dada altura, o meus "G4 titanium - mac" de serviço abandonou-me com o correio às voltas. Uma das minhas obrigações era o envio semanal de uma crónica para "o aveiro". Para não ter problemas com mensagens perdidas e por não estar sempre no mesmo sítio e à mão de semear, abri o "blog" mais como depósito de crónicas de "o aveiro" que outra coisa. Só por isso, foi registado com aquele nome. Aveiro como endereço tem mais a ver com o semanário que esperava que eu escrevesse, mesmo quando contrariado, do que com a cidade ou o que nela se passa. É a vida.


Espero ter esclarecido os nomes "O lado esquerdo" e "Aveiro".

Como prevenção aos que possam esperar de mim respostas sistemáticas a críticas sobre o que escrevo, aproveito para denunciar a minha fraqueza na vontade de ir a guerras, que não travo, em torno das minhas próprias opiniões que não são mais do que isso. Salvo raras excepções, a exposição das diversas opiniões conrtraditórias permite a formação de juízos por quem lê.


E, já agora, aproveito para me disponibilizar a ajudar à resolução de algum problema que haja entre “macs” e “blogs”.

E aproveito para confessar que tenho a opinião que vinga em aviz , que leio, a respeito do trabalho de Paulo Querido e do weblog.pt. Eu cheguei mesmo a tentar migrar, mas houve uma grande quantidade de problemas com caracteres e, sem tempo para os enfrentar, abandonei a ideia. Um dia, hei-de voltar a ela.

A percentagem de nós

Não admira que haja tantos problemas nas cervicais do povo do meu pais. Começo a desconfiar que é mais por excesso de exercício que por falta. Nós damos voltas à cabeça para perceber o que passa pela cabeça de alguns governantes e políticos. Eles dão-nos volta à cabeça. Ficamos feitos num nó ou num (dois ponto) oito e aprendemos como uma dor difusa pode tomar a forma de um nó na garganta.

De um lugar da plateia do povo, vejo fazer operações financeiras puras, passes rascas de magia e fantasia. De facto, não conseguimos reduzir as despesas nem aumentámos as receitas e também não produzimos mais riqueza verdadeira. E sobre isto, todos estamos de acordo. Apesar disso, o governo da nação consegue diminuir o défice. Qual défice? O real excesso de passivo ou despesa relativamente ao real activo ou receita? Não. De facto. o que a imaginação contabilística faz é tapar o buraco de uma conta. Como é que se tapa um buraco destes num instante? Vende-se o máximo que se pode do que se tem e penhora-se, etc. O mandato para quatro anos de um governo pode dar-lhe tempo para vender o património público de dezenas, quando não centenas de anos. Abrem-se novos buracos para obter receitas extraordinárias, na falta das ordinárias. Sem falar, é claro, no que se foi deixando de pagar (por exemplo, à indústria farmacêutica) para diminuir a despesa. Se comprarmos sem pagar, não aumentamos a despesa? De facto, transformamos o que não foi uma despesa de hoje numa enorme despesa de amanhã. Não tem custos vender à banca, a despesa para que seja ela a pagar? Não tem custos vender à banca as receitas por cobrar?
Porque é que devemos ficar todos contentes com o “dois ponto oito”? A percentagem tem alguma coisa a ver com rigor? Que números nos importam?
Os números de desempregados, de falências da produção e do comércio, da formação, os números da sida, da droga e da gravidez precoce, os números da justiça, das prisões e dos suicídios nelas, os números da fraude e evasão fiscais e da corrupção, os números da dominação do futebol em coberturas noticiosas das televisões, … só nos dão a medida da nossa tristeza. Relativamente à Europa, cada um destes números faz de nós campeões em percentagem de nós cegos.

A realidade social não conta. O que conta são os números que a mostram ou a escondem, porque somos um pais de trespasses (e trespassados). O objectivo de muitas empresas não é a produção de bens ou a prestação de serviços – é o negócio do lucro no trespasse. Tudo tem de ser rápido, em pequenos prazos – vantagens e lucro a qualquer custo e para ontem. Quem fala de empresa governativa hoje, fala disto… e de "tangas".

[o aveiro; 26/02/2004]

O sexo dos educandos e dos educadores

E não resisto a recomendar a leitura dos diálogos entre filho e mãe-professora, escritos por Graça Barbosa Ribeiro, sob o título E alguém os vai ensinar? no Público de hoje. Quem não se reconhece na dúvida?

E já agora, vale a pena ler o artigo de hoje de Santana Castilho - Fazer bem e bater certo . A certa altura, escreve ele: "Agora é a educação sexual, como se tal não devesse e não pudesse ser tratado em várias disciplinas e programas já existentes. Antes foram as novas tecnologias, assunto do foro metodológico transdisciplinar, ridiculamente remetido para disciplina autónoma. Outrora trataram de ignorar o dever que qualquer professor tem de ensinar o aluno a trabalhar e estudar para entregar a tarefa ao designado "estudo acompanhado", orientado por dois docentes em tempo específico. Farão bem, em seu entender. Fazem errado, no meu." E sobre a nossa inefável e inestimável educadora-chefe, ele escreve: "Luís XIV é por certo o Sol que ilumina a inefável secretária de Estado Mariana Cascais. Não me admirarei mesmo se do retrovisor da sua viatura oficial pender um galhardete com guizos e a inscrição "L'État c'est moi". Li Sua Excelência no "Diário de Notícias" e pasmei. Disse a dita: "... Se eu quisesse, não havia educação sexual..." Para os mais distraídos, recordo que esta senhora é a mesma que foi à Assembleia da República afirmar que a religião oficial do Estado português é a católica. Estará ela convencida de que faz bem?"

E chamo a atenção para uma outra opinião de passagem, agora sobre a religião nas escolas, depois de uma primeira parte de critica à posição do governo de Chirac sobre a proibição de sinais exteriores de riqueza religiosa: "O segundo vem de Inglaterra e conta-se em três linhas. Lá, os programas escolares e as demais decisões curriculares não são remetidas para comissões "ad hoc", como nós, erradamente, fazemos. Outrossim, competem a um serviço autónomo, a "Qualifications and Curriculum Authority" que, atenta à crescente expressão dos agnósticos e dos ateus, decidiu recomendar que, no âmbito da educação religiosa, se passassem a estudar, também... as convicções não religiosas. Chamo a isto fazer certo. Bem podíamos seguir o exemplo."

A finalizar, Santana Castilho, denuncia: "Quando em Óbidos, com pompa e circunstância, o Governo anunciou mil milhões de euros para investir na ciência, mais não fez que mera propaganda. Sabem os mais informados que se trata apenas de uma redistribuição geral de capitais afectos a programas anteriores, cujo nome foi mudado. À boa maneira das manipulações contabilísticas das Finanças e da Saúde."

Em tempos, que já lá vão, tive oportunidades desgraçadas de me cruzar com Santana Castilho, quando ele era secretário de estado de um governo de Cavaco Silva, a respeito de modelos para a profissionalização de professores ao serviço. E ele fazia o seu papel. Lembra-me sempre a maior humilhação que sofri às mãos dos poder (que tanto está acantonado no governo como nos sindicatos de que, ao tempo, integrava a comissão de negociação técnica para o assunto como membro do conselho nacional da fenprof).

A vida não se cansa de me surpeender.

Já reparámos, claro

Já tínhamos reparado. Fomos ler no papel do nosso "Público" diário, por insistência de Aurélio Fernandes. Pouco pão e muito circo, diz o amigo José Pacheco Pereira, falando do circo do futebol e do círco da política. Deste último, a grande estrela é o Santana Lopes. Já repararam? - pergunta ele. Já tínhamos reparado.

Logo no dia seguinte, Miguel Sousa Tavares, com um lápis afiado de bandarilheiro espeta uma bela estocada no Santana Lopes, ao mesmo tempo que estabelece uma fuga ágil para longe de tal touro, caso ele ganhe força e poder. Diz ele: "Se algum dia Santana Lopes for Presidente da República, eu, pelo menos, vou passar a ter vergonha de ser português. Quero ser bielorrusso, apátrida, monárquico, anarquista, qualquer coisa, menos cidadão de uma República de que ele seja Presidente." E acrescenta, para explicar tal falta de patriotismo: " Para além de qualquer juízo subjectivo sobre o valor que fulano ou beltrano tenham como candidatos a determinado cargo, há um mínimo - um mínimo que toda a gente entende qual é - exigível a quem quer ser chefe de uma nação. E Pedro Santana Lopes não cumpre esses mínimos." Vale a pena ler o texto completo de MST - Só nos faltava esta .

Na mesma semana, estar de acordo com dois articulistas de "O Público" é obra. Só o Santana Lopes podia conseguir tal façanha.

Prisão de vento

Nas últimas semanas, muito se tem falado da produção e consumo de energia eléctrica. Por um lado, prepara-se mais um mergulho de paisagem para uma nova grande barragem. Mobilizam-se jovens cientistas a contrariar esse empreendimento que, para um tempo de vida útil de 70 anos, tem um impacto eterno de destruição de ecossistemas, extinção e redução substancial de espécies. Esses especialistas e activistas da “Plataforma Sabor Livre” acham que falta definir um plano energético nacional que identifique as necessidades do país e proponha um conjunto de alternativas de produção e gestão energética, abandonando de vez a opção por pontuais barragens. Consideram que deve ser dada prioridade total à implantação de políticas de incentivo à eficiência energética e às energias renováveis que não contemplem grandes obras hidroeléctricas. Finalmente acham que Portugal deve adoptar “medidas ao nível da indústria, transportes e habitação, de incentivo às energias renováveis, nomeadamente solar e eólica, de economia de energia”.

Ao mesmo tempo, as directivas de planeamento europeu apresentam prazos para que os países membros atinjam metas, impossíveis de cumprir por Portugal, no que respeita à produção de energias renováveis. A instalação de parques eólicos, que já vamos vendo, também não é pacífica para os que se preocupam com a paisagem e, dia sim dia não, somos informados de falhas de planeamento que impedem a realização de projectos.

É certo que o consumo de energia não pára de crescer. E os interesses do negócio da energia electrodoméstica apostam em artificiais novas necessidades de consumo de energia. Aveiro é uma cidade de vento e sol e é o exemplo mau. Os planeadores da cidade e os construtores unem-se vezes sem conta para inibir as famílias de expor ao vento a roupa lavada que é preciso secar. Os lençóis e os vestidos de todas as cores deviam corar ao sol da nossa cidade e, batidos pelo vento, ser sinais de poupança de energia. Fechadas nas casas, torturadas nas máquinas de secar, as nossas roupas e a nossa cidade só podem corar de vergonha.

As politicas para aumentar a produção de energias renováveis têm de ser acompanhadas de politicas que evitem consumos supérfluos. Não fazemos uma coisa nem outra. E começamos a suspeitar que há ganâncias combinadas. Há quem tente mudar à força os hábitos saudáveis das famílias. Com pequenos gestos se fazem grandes roubos. Cabe aos cidadãos desfraldar as suas roupas ao vento como antes… e, pelo futuro!, como bandeiras de revolta.


[o aveiro; 19/02/2004]

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