Se for verdade que nós escrevemos o que somos, é também verdade que nós somos o que lemos e diferentes seríamos se tivessem sido outros livros os que nos conduziram até aqui. Quanto mais leio, mais me sinto desmentido e, por isso, mais necessidade tenho de mentir a mim próprio para que o meu mundo não entre em derrocada.
Há quem diga que nós olhámos a religião como ópio do povo e a religião é afinal baseada na crença da imperfeição do homem terreno e que isso sim é a humanidade que anseia pela perfeição noutra vida que não nesta. E que procurar na vida terrena a perfeição humana transformou-se numa nova religião, ópio dos intelectuais que não se habituaram ao ópio do povo.
Quem assim nos olha, está sentado no penhasco mais alto e mais aguçado enquanto lê um livro de viagens escrito por um cavalheiro, e, sem acreditar em coisa alguma, deixam à turba a esperança na salvação eterna e aos intelectuais a degradação no culto do ópio e da perfeição humana em vida.
pobre e pedinte
Não me penteio e, por isso, um espelho anda atrás de mim pela casa. Não sou capaz de o partir porque o barulho da sua choradeira acordava o prédio inteiro. De vez em quando vai à minha frente em marcha atrás com um pente na mão. O desgraçado do espelho é cego, mas eu não dou esmolas ao primeiro espelho que me aparece.
Praça de peixe
Outros poderão vender. Mas eu dou mesmo, dou de barato a verdade de quase todos os governos das autarquias portuguesas estarem em grande sofrimento. E eu, pequeno contribuinte, com eles sofro quando a dor deles é pontada de desgosto pela herança de dívidas acumuladas. A dor da dívida inicial curou-se com pêlo do mesmo cão: quanto maior o montante em dívida, maior a capacidade de endividamento! Até um certo nível. Acima dele, os cães invadem a rua. No espaço social exterior ao canil das dívidas do município, as vítimas dos cães e os cães uivam.
Ainda a procissão ia no adro, e aparecia em cena uma especialização em controle de cães e afins a que chamaram engenharia financeira para as primeiras perseguições e reengenharia financeira para as fintas à realidade. Não sei em que faculdade se formavam estes engenheiros nem sei que refaculdades especiais são exigidas aos reengenheiros. Nem sei se há ordem para estes casos e muito menos ouvi falar em qualquer reordem. Dou de barato que há por aí uma dor em redor da banca branca.
Dar de barato para a dor é uma coisa.
Engolir tudo o que nos dizem para esquecer a dor é outra. Já cheiravam a peixe podre as notas explicativas para a obra de encerramento da praça do peixe fresco. Como justificar que não há notícia a chamar à responsabilidade os técnicos suspeitos de terem cometido os erros de que fala o encerrador? Pior fedor tem a notícia de que, com apoio em técnicos certamente e tendo 9 talhos disponíveis no novo Mercado, a anterior câmara prometeu um talho a cada um de 13 talhantes. A verdade mente? Seja o que for que tenha acontecido ou tenha sido dito, o que está a ser dito agora é uma baforada de mau cheiro vinda de lá, desse lugar que começa a ser incapaz para um mínimo de decoro.
Há quem pense que os políticos podem usar de alguns descuidos na linguagem e que isso é normal na luta política. Chamam-lhes peixeiradas para ofender as peixeiras. Eu preciso de acreditar no que me dizem os responsáveis para formar opinião, estar de acordo ou em desacordo. Também não dou de barato enxovalhos aos técnicos da autarquia.
Não faço ouvidos de mercador. Disparates risíveis presos do lado de fora das minhas orelhas não fazem de mim louco, nem tão pouco mouco. Fazem de mim.
[o aveiro; 28/06/2007]
Ainda a procissão ia no adro, e aparecia em cena uma especialização em controle de cães e afins a que chamaram engenharia financeira para as primeiras perseguições e reengenharia financeira para as fintas à realidade. Não sei em que faculdade se formavam estes engenheiros nem sei que refaculdades especiais são exigidas aos reengenheiros. Nem sei se há ordem para estes casos e muito menos ouvi falar em qualquer reordem. Dou de barato que há por aí uma dor em redor da banca branca.
Dar de barato para a dor é uma coisa.
Engolir tudo o que nos dizem para esquecer a dor é outra. Já cheiravam a peixe podre as notas explicativas para a obra de encerramento da praça do peixe fresco. Como justificar que não há notícia a chamar à responsabilidade os técnicos suspeitos de terem cometido os erros de que fala o encerrador? Pior fedor tem a notícia de que, com apoio em técnicos certamente e tendo 9 talhos disponíveis no novo Mercado, a anterior câmara prometeu um talho a cada um de 13 talhantes. A verdade mente? Seja o que for que tenha acontecido ou tenha sido dito, o que está a ser dito agora é uma baforada de mau cheiro vinda de lá, desse lugar que começa a ser incapaz para um mínimo de decoro.
Há quem pense que os políticos podem usar de alguns descuidos na linguagem e que isso é normal na luta política. Chamam-lhes peixeiradas para ofender as peixeiras. Eu preciso de acreditar no que me dizem os responsáveis para formar opinião, estar de acordo ou em desacordo. Também não dou de barato enxovalhos aos técnicos da autarquia.
Não faço ouvidos de mercador. Disparates risíveis presos do lado de fora das minhas orelhas não fazem de mim louco, nem tão pouco mouco. Fazem de mim.
[o aveiro; 28/06/2007]
porque hoje é sábado
Quando a noite chegou, fumei um dos charutos da herança de Estrela Rego. A varanda enche-se de sinais de fumo. Que partam com o ar que passa! Não lembro o que leio, não lembro o que ouço nem o que vejo. Deixo que a noite tome conta de tudo. Embrulho-me nela e deixo-me ficar escondido, embrulhado numa dobra de tempo feita por uma ausência de luz.
16
Era uma vez uma palavra que estava sentada à porta de casa quando passou um rato. Bela palavra diz o rato. Como ia com mutia pressa deu-lhe umas dentadas e engoliu-a. Mal. A palavra ficou-lhe atravessada na garganta. Então os dentes começaram-lhe a crescer para dentro.
[Ana Hatherly. 463 tisanas. Quimera.]
[Ana Hatherly. 463 tisanas. Quimera.]
a praça do peixe
Temos para nós que as mães querem o melhor para os filhos. De um modo geral, queremos dizer com isso que as mães tudo fazem para que os seus filhos tenham acesso a mais conhecimento do mundo até que nada de essencial lhes falte e lhes seja mais leve a sua quota de criação. Ao mesmo tempo, cada mãe espera que os seus filhos transportem para o futuro a sua melhor memória, uma história de portadora dedicada e solidária de esperança na sua contribuição infinitesimal para um mundo mais fraterno. As mães sabem que entregam os seus filhos ao mundo que, já não sendo o mundo tal qual era o seu, é um mundo cheio dos sinais que elas reconhecem e integram a identidade do seu filho, a contribuição única que ele é para a riqueza colectiva - a diversidade como colecção e mistura das contribuições. Nenhuma mãe quer desaparecer da memória cultural do seu lugar e isso significa ideias, cultura, juízo, produtos agrícolas e industriais, trocas comerciais, etc... enfim, valores.
Que engano de mãe abençoa a mão do filho que apaga todos os puros sinais do seu tempo?
Nos nossos lugares, estamos sempre a procurar os sinais que acrescentamos. O nosso futuro tem um passado e um presente que é escolha do que interessa e rejeição do que não interessa ao futuro. Globalmente e localmente. A sobrevivência depende da diversidade em que nos reconhecem pelas diferenças. E isso obriga-nos a avivar os nossos sinais, a não nos disfarçarmos noutra identidade. Os eleitos locais devem ajudar a localizar os seus eleitores na sua história, no seu tempo, no seu lugar. Cidadãos do mundo, queremos saber qual a nossa contribuição exclusiva, ao mesmo tempo que queremos conhecer e saborear as contribuições dos outros. O comércio global pode e quer vender-nos tudo. Os eleitos locais não precisam de aprofundar essa globalização, precisam de preservar os nossos produtos e a memória do que fazemos e, talvez, ajudar à sua inclusão nas listas de vendas do mercado global.
A que cheira uma Praça do Peixe? A alguns dos nossos eleitos, a praça do peixe já só cheira a cerveja.
[o aveiro; 21/06/2007]
Que engano de mãe abençoa a mão do filho que apaga todos os puros sinais do seu tempo?
Nos nossos lugares, estamos sempre a procurar os sinais que acrescentamos. O nosso futuro tem um passado e um presente que é escolha do que interessa e rejeição do que não interessa ao futuro. Globalmente e localmente. A sobrevivência depende da diversidade em que nos reconhecem pelas diferenças. E isso obriga-nos a avivar os nossos sinais, a não nos disfarçarmos noutra identidade. Os eleitos locais devem ajudar a localizar os seus eleitores na sua história, no seu tempo, no seu lugar. Cidadãos do mundo, queremos saber qual a nossa contribuição exclusiva, ao mesmo tempo que queremos conhecer e saborear as contribuições dos outros. O comércio global pode e quer vender-nos tudo. Os eleitos locais não precisam de aprofundar essa globalização, precisam de preservar os nossos produtos e a memória do que fazemos e, talvez, ajudar à sua inclusão nas listas de vendas do mercado global.
A que cheira uma Praça do Peixe? A alguns dos nossos eleitos, a praça do peixe já só cheira a cerveja.
[o aveiro; 21/06/2007]
213
Era uma vez uma sala de espera. Havia várias pessoas que esperavam, mas calmamente. Porém, a certa altura começou a nascer a impaciência. A sala diminuíu imediatamente de tamanho.
[Ana Hatherly. 463 tisanas. Quimera.]
[Ana Hatherly. 463 tisanas. Quimera.]
A terra dos ...
No último ano, um Ministro andou a cantar aos quatro ventos que iria haver um aeroporto ali para os lados de Alenquer. Disseram-se coisas sobre interesses escuros, obscuros e claros relacionados com essa decisão política. Anda-se nisso há quantos anos?
Mudanças de interesses e de parceiros e o que era uma decisão política certa passou a sofrer da doença de moratória. Por iniciativa da indústria, acolitando a Presidência que ajudaram a eleger, acendeu-se uma nova luz e decidiu-se uma alternativa em Alcochete, ou melhor, numa pequena arena montada mesmo ali em plena Assembleia. Olé! - grita o inteligente.
Na apresentação da alternativa de Alcochete lá estava o autarca da nova opção aeroportiana a defender o desenvolvimento para Alcochete deixar de ser Alcochete.
No dia seguinte à declaração de que o governo iria prosseguir os estudos, os autarcas otários vieram reclamar de tal decisão por já se terem comprometido com investimentos na ordem da cruz de milhões. Hotéis, hospital, e, como jóia da coroa de todos os investimentos, um santuário. Já tudo me tinha passado pela cabeça, até voos rasantes de aviões ansiosos por oterrar, menos um santuário à maneira. Há tanta coisa para fazer quando o céu nos aterra no quintal!
Desde que anda o aeroporto no ar, nasce uma novidade em cada dia. Um dia ficamos a saber de quantos quilómetros de deserto se faz uma alternativa de sul, noutro quantos quilómetros cúbicos de terra temos de movimentar se formos otários, no seguinte quantos quilómetros por hora pode atingir o tgv para dar o passo que separa Alcochete do oriente, ou quantos minutos mede um metro entre Lisboa e a Ota. Os planos mais arrojados já falam da Lisboa que chega a Ota, de Lisbota. Alen...quer até ser Lisboa.
Já Alcochete arma todos os campinos. De varas afiadas apontadas ao céu de Alenquer, os campinos têm batido todos os recordes de lançamento de dardo e de salto à vara no assalto aos céus. De campinos a campeões é um passo.
Nada de parar, devemos procurar novas oportunidades e alternativas. Portugal só tem a ganhar em ter mais estudos - é o que dizem os estudos. E há exemplos a seguir.
[o aveiro; 14/06/2007]
Mudanças de interesses e de parceiros e o que era uma decisão política certa passou a sofrer da doença de moratória. Por iniciativa da indústria, acolitando a Presidência que ajudaram a eleger, acendeu-se uma nova luz e decidiu-se uma alternativa em Alcochete, ou melhor, numa pequena arena montada mesmo ali em plena Assembleia. Olé! - grita o inteligente.
Na apresentação da alternativa de Alcochete lá estava o autarca da nova opção aeroportiana a defender o desenvolvimento para Alcochete deixar de ser Alcochete.
No dia seguinte à declaração de que o governo iria prosseguir os estudos, os autarcas otários vieram reclamar de tal decisão por já se terem comprometido com investimentos na ordem da cruz de milhões. Hotéis, hospital, e, como jóia da coroa de todos os investimentos, um santuário. Já tudo me tinha passado pela cabeça, até voos rasantes de aviões ansiosos por oterrar, menos um santuário à maneira. Há tanta coisa para fazer quando o céu nos aterra no quintal!
Desde que anda o aeroporto no ar, nasce uma novidade em cada dia. Um dia ficamos a saber de quantos quilómetros de deserto se faz uma alternativa de sul, noutro quantos quilómetros cúbicos de terra temos de movimentar se formos otários, no seguinte quantos quilómetros por hora pode atingir o tgv para dar o passo que separa Alcochete do oriente, ou quantos minutos mede um metro entre Lisboa e a Ota. Os planos mais arrojados já falam da Lisboa que chega a Ota, de Lisbota. Alen...quer até ser Lisboa.
Já Alcochete arma todos os campinos. De varas afiadas apontadas ao céu de Alenquer, os campinos têm batido todos os recordes de lançamento de dardo e de salto à vara no assalto aos céus. De campinos a campeões é um passo.
Nada de parar, devemos procurar novas oportunidades e alternativas. Portugal só tem a ganhar em ter mais estudos - é o que dizem os estudos. E há exemplos a seguir.
[o aveiro; 14/06/2007]
asas para que vos quero?
Deixei de acreditar em asas para voar.
Casei-me para ter uma viúva capaz
de me ver voar sem asas como labareda no forno
ou como voa o fumo quando sai da chaminé
ou como voa a cinza no cume da liberdade
de um monte ventoso ou à porta de casa
em certos dias de cabeça perdida, de vento irrequieto
a desmanchar perucas, a levantar saias e a despedir
chapéus para as retretes públicas dos cães.
Outros animais de estimação, como eu, sem asas,
e até as crianças deixaram de poder brincar
nos ex-jardins públicos, privadas a céu aberto
Mas mesmo sabendo eu que o fumo da minha carne
e a cinza dos meus ossos podem cair num monte de caca
a minha esperança de voar sem asas permanece intacta.
Casei-me para ter uma viúva capaz
de me ver voar sem asas como labareda no forno
ou como voa o fumo quando sai da chaminé
ou como voa a cinza no cume da liberdade
de um monte ventoso ou à porta de casa
em certos dias de cabeça perdida, de vento irrequieto
a desmanchar perucas, a levantar saias e a despedir
chapéus para as retretes públicas dos cães.
Outros animais de estimação, como eu, sem asas,
e até as crianças deixaram de poder brincar
nos ex-jardins públicos, privadas a céu aberto
Mas mesmo sabendo eu que o fumo da minha carne
e a cinza dos meus ossos podem cair num monte de caca
a minha esperança de voar sem asas permanece intacta.
a escola em volta
Aqui moraram por tantos anos as tílias que cresceram abraçadas até naão caberem no abraço humano e se perderam em ameaças de força imensa à pequena oficina de artes que dá vida à esquina. Sobraram as ameixas.
olhar para a escola
Longe de mim pensar que trabalho num lugar sem luz e sem sombra.
Longe de mim pensar em não ver a beleza que rodeia os meus dias.
se a memória não me falha
O título da notícia diz qualquer coisa como "penedos quer estado fora das eléctricas". Se isso tivesse sido reivindicado há uns anos e posto em prática, o que é que "penedos" teria a ver com as eléctricas hoje?
um postal também pode mudar
a arte postal combinada com outras artes pode dar-nos conta das mudanças nas línguas bífidas entre duas reuniões.
só o código de barras ficou incólume.
de qualquer modo, já descobri a quem enviar o postal antes que se torne numa mancha castanha.
só me resta encontrar o endereço postal - rua, nº de porta, código postal - do jaime.
raramente
raremente escrevo sobre algum assunto que deseperte o interesse de muita gente nem o interesse de pouca gente que seja importante nem sirva para alimentar algum diz que disse que valha a pena seguir nos dias imediatos a ter sido escrito.
também raramente escrevo sobre os assuntos importantes ou ajudo à discussão de assuntos importantes com as frases importantes para a circunstância dos assuntos importantes e fico sempre nas margens da importância.
de facto, eu gostava de ser o verso em branco de uma página com uma linha que me tivesse marcado e a mais ninguém até eu ficar convertido a ser a página seguinte do verso irrepetível mas desconhecido por todos os anos do resto da minha vida.
raramente penso na minha vida como a página em branco que ela é para continuar a ser uma oportunidade perdida por mim e por ter escolhido uma forma simples de ser feliz não sendo coisa alguma mais que olhos capazes de ver o invisível ar quando ele passa por perto e se ri com aquelas gargalhadas que nem eu ouço.
também raramente escrevo sobre os assuntos importantes ou ajudo à discussão de assuntos importantes com as frases importantes para a circunstância dos assuntos importantes e fico sempre nas margens da importância.
de facto, eu gostava de ser o verso em branco de uma página com uma linha que me tivesse marcado e a mais ninguém até eu ficar convertido a ser a página seguinte do verso irrepetível mas desconhecido por todos os anos do resto da minha vida.
raramente penso na minha vida como a página em branco que ela é para continuar a ser uma oportunidade perdida por mim e por ter escolhido uma forma simples de ser feliz não sendo coisa alguma mais que olhos capazes de ver o invisível ar quando ele passa por perto e se ri com aquelas gargalhadas que nem eu ouço.
postal
De há uns tempos a esta parte, os postais dos correios têm código de barras na página da escrita ou de desenho. Ainda não me habituei.
Crítica da razão vazia
A avaliação de um ou outro programa de acção e de uma dada situação sectorial ou do desempenho global de uma dada classe ou sector trazem para a ribalta alguns especialistas. Como autores de estudos que (cor)respondem a encomendas de entidades e organizações é que os cientistas sociais são apresentados à generalidade dos cidadãos. Para apoiar alguma decisão controversa é que se realizam estudos. Para as encomendas, estes especialistas escolhem um quadro de referência, indicadores de resultado e de impacto, etc, e, como é óbvio, raramente chegam a conclusões diferentes daquelas que interessam às entidades que pagam o estudo. Estes trabalhos científicos de encomenda feitos com e sem a necessária seriedade têm um efeito devastador sobre a credibilidade do trabalho científico, lançando a suspeição sobre tudo o que seja ciência como método de apoio à decisão social, económica e política. Estes cientistas sociais estão a conformar o discurso político, impregnando-o de terminologia científica desnecessária que oculta retrocessos para a consideração da individualidade humana, de tal modo que ao analisar fenómenos como o desemprego fazem desaparecer cada pessoa concreta até ela ser uma unidade estatística ou um dano colateral de alguma guerra decretada pelo mercado livre.
Para gerir escolas (ou hospitais), para decidir e avaliar programas de acção escolar e até a acção dos professores, encontram-se pessoas que não têm qualquer experiência das escolas ou do ensino da disciplina que vão gerir ou avaliar. Estas não têm que saber coisa alguma sobre contexto e conteúdo em concreto, porque tudo sabem sobre teorias e práticas de gestão, técnicas de análise de conteúdo e de estudo de casos, etc. Equilibram-se numa corda esticada sobre o abismo de um aterro de palavras.
Trocam as pessoas por miúdos, pelas palavras que enchem os relatórios. E, na sua infinita ignorância citacionista, defendem como única síntese possível, a sua leitura vazia de experiência e de conhecimento, a leitura interessante para o dono da encomenda. E são a voz do dono.
Nota-se demais quando algum deles muda de dono. Os estudos estão publicados para nunca serem lidos por pessoas.
[o aveiro; 08/06/2007]
Para gerir escolas (ou hospitais), para decidir e avaliar programas de acção escolar e até a acção dos professores, encontram-se pessoas que não têm qualquer experiência das escolas ou do ensino da disciplina que vão gerir ou avaliar. Estas não têm que saber coisa alguma sobre contexto e conteúdo em concreto, porque tudo sabem sobre teorias e práticas de gestão, técnicas de análise de conteúdo e de estudo de casos, etc. Equilibram-se numa corda esticada sobre o abismo de um aterro de palavras.
Trocam as pessoas por miúdos, pelas palavras que enchem os relatórios. E, na sua infinita ignorância citacionista, defendem como única síntese possível, a sua leitura vazia de experiência e de conhecimento, a leitura interessante para o dono da encomenda. E são a voz do dono.
Nota-se demais quando algum deles muda de dono. Os estudos estão publicados para nunca serem lidos por pessoas.
[o aveiro; 08/06/2007]
os ciúmes
Abandonadas por seus amantes, duas mulheres almoçam sandes, num banco do jardim público. A solidão era tão forte que pensam viver juntas. A que primeiro oferecera a sua casa, ao preparar-se para dormir, sentiu a outra tão atraente que desejou fazê-la adormecer no lado do leito que, habitualmente, ocupava, tomando para si o lado do homem que amava. E ao perceber que olhava para a sua amiga como ele a teria olhado, sofreu com os ciúmes.
Tonino Guerra.
Tonino Guerra.
a arte de voar
como desenhar fronteiras
entre dois mundos?
planto laranjeiras
carregadas de frutos e de ninhos
carregados de aves prontas a voar
entre mim e ti e em ti
voam ligeiras as minhas mãos
fáceis alvos para atiradores furtivos
de primeira linha
de fronteira
entre dois mundos?
planto laranjeiras
carregadas de frutos e de ninhos
carregados de aves prontas a voar
entre mim e ti e em ti
voam ligeiras as minhas mãos
fáceis alvos para atiradores furtivos
de primeira linha
de fronteira
a arte de voar
Nos ombros da mulher de pedra e pranto
repousam os cabelos da árvore caída
e enquanto a ave de granito
de asas partidas
ensaia o voo de um grito,
da minha mão levanta voo a pedra.
repousam os cabelos da árvore caída
e enquanto a ave de granito
de asas partidas
ensaia o voo de um grito,
da minha mão levanta voo a pedra.
a arte de voar
Filtro os sons da água e a água
e mergulho uma folha rabiscada
para que se dissolva a sagrada
escritura da minha mágoa
e a tinta forme então a pomba
que bate as asas e desenha um voo
como um risco branco contra o céu.
e mergulho uma folha rabiscada
para que se dissolva a sagrada
escritura da minha mágoa
e a tinta forme então a pomba
que bate as asas e desenha um voo
como um risco branco contra o céu.
tisana 17
(...)
Era uma vez uma chave que vivia no bolso de um homem. Durante muito tempo desempenhou com honestidade o seu trabalho de abrir portas. Até que um dia descobriu que todo o seu trabalho tinha consistido sempre em abrir portas que já estavam abertas. Quando descobriu isso lançou-se corajosamente para fora do bolso. Caíu no chão. Ficou ali. Passa uma criança vê a chave e diz que coisa tão engraçada para fazer um carrinho.
(...)
Ana Hatherly.
Era uma vez uma chave que vivia no bolso de um homem. Durante muito tempo desempenhou com honestidade o seu trabalho de abrir portas. Até que um dia descobriu que todo o seu trabalho tinha consistido sempre em abrir portas que já estavam abertas. Quando descobriu isso lançou-se corajosamente para fora do bolso. Caíu no chão. Ficou ali. Passa uma criança vê a chave e diz que coisa tão engraçada para fazer um carrinho.
(...)
Ana Hatherly.
quotada
Hoje, duas mulheres puderam ouvir as notícias do costume e ocupar a viagem do dia na conversa sobre a forma como são tratadas: trabalham mais e recebem menos, são mais habilitadas e são mais desempregadas, etc. À distância, para quem me quisesse ouvir, eu ia murmurando que as mulheres eram responsáveis pelo acidente do presente. Argumentava eu que, há várias gerações, elas estão em maioria em todo o sistema educativo e escolar e, por isso, têm sido elas a reproduzir o sistema de ideias desfavorável (ou não) à afirmação das mulheres. Se as mulheres estão em maioria absoluta nas escolas, porque é que há um grande número de homens que são dirigentes no sistema educativo? Se a gestão dos homens tem sido a desgraça que se sabe e em desfavor das mulheres, porque é que as mulheres não tomam as rédeas? Elas lá conversavam sobre o assunto enquanto eu lhes aquecia as orelhas com o meu feminismo. Mas, das duas, a que me parecia mais radical começou a discursar contra o sistema de quotas. Ela acha que as mulheres devem ser consideradas pelo que valem e em todos os lugares que ocupem seja claro que é pela competência demonstrada e não por serem mulheres. Estive quase para desistir. Mas não me contive. E lembrei-lhes que os homens mantêm o poder com um apertado sistema de quotas. Já tentaram ver se há homens da multidão do poder e da gestão a ocupar cargos por critérios de competência? Uma boa parte desses lugares são protegidos por um sistema de quotas rígido entre as diferentes tribos de tótós dos partidos do poder. Uma autêntica quotada. Nem concursos, nem provas dadas... Ou melhor com provas dadas... a denunciar a borrada da sua própria acção no poleiro que abandonam quando sobem para outro poleiro, a enriquecer enquanto arruinam o país, etc. De alguns dos espécimes protegidos pelo poder, só sabemos que parecem homens pela forma de andar. Mal os ouvimos falar, a opinião piora. Adquirem notoriedade pelo disparate, para logo depois fazerem o que eles chamam gestão de silêncios. Tornam-se discretos até passarem à fase madura em que definitivamente não falam ... porque estão em segredo de justiça. Ouvimos falar deles como suspeitos. Uma suspeita? Também.
[o aveiro; 31/05/2007]
[o aveiro; 31/05/2007]
As políticas vão a exame? Nós também
Nenhum dos últimos governos ignorou a importância do ensino da matemática. Não se trata de mera propaganda política. É antes sinal do reconhecimento da necessidade de formação matemática de todos os cidadãos. Os governos têm sido obrigados pela opinião pública (o que quer que isso seja) a prestar contas, informar os resultados e prometer políticas para superar deficiências.
Nenhuma destas considerações pode iludir a necessidade de avaliar as intervenções locais pelos resultados obtidos. Não são os exames? Não são. Cada plano de escola deve responsabilizar os respectivos professores pelo compromisso que assumiram. Não se espera mais, mas isso é o mais importante. Até porque é sobre isso que, ao fim de cada ano e dos três anos de aplicação, estaremos a medir o impacto das iniciativas do governo.
[Educação & Matemática. APM. Agosto de 2007]
A generalidade dos eleitores pouco reclama sobre a qualidade da formação e a natureza das aprendizagens e mede o desempenho estudantil por resultados das provas nacionais. Nos últimos anos, os governos que tentaram eliminar provas nacionais de português ou matemática esbarraram em oposições poderosas. Essa oposição é exterior às escolas básicas e secundárias e ao conjunto dos agentes educativos. Os governos e os agentes educativos sabem que não é possível obter resultados globalmente positivos em provas de aferição dos conhecimentos essenciais pré-definidos. Resultados positivos só pelo reconhecimento das aprendizagens que a primeira aferição validasse. Os exames nacionais esquecem as diferenças entre escolas e esquecem a diversidade de condições sociais dos jovens chamados a prestar provas, bem como esquecem a diversidade das interpretações e das práticas dos professores no cumprimento dos programas nacionais em contextos diferenciados.
Pode estar a acontecer um acerto feito pela realização estável de exames, se estes estiverem a ser acompanhados de estudos detalhados sobre resultados consolidados e as respostas dadas ao longo de vários anos. Reconhecermos que os governos podem aplicar exames leva-nos a recomendar aos professores que mobilizem a favor do ensino todos os materiais publicados pelo GAVE para os diversos níveis de ensino. Para aumentar a compreensão dos problemas e exercícios que podem ser objecto de exame sem que possam ser enfrentados com êxito por rotinas, pela execução acrítica e pobre em compreensão dos conceitos e técnicas matemáticas.
As iniciativas dos governos viradas para um ou outro aspecto do ensino da matemática, sejam elas adaptações curriculares, formação de professores, apetrechamento das escolas ou ampliação dos impactos dos resultados dos exames nacionais e testes internacionais, aumentam a pressão sobre as escolas e os professores no sentido do cumprimento de programas escolares. Tem força a ideia de que os professores tendem a abordar os conteúdos aque mais lhes agradam e se demorem em temas que consideram importantes. Sempre que as competências a desenvolver apareceram independentes de um corpo completo de conhecimentos, conceitos e técnicas, os professores têm tendência a empobrecer a variedade de conceitos leccionados. Sem exames nacionais, há áreas de conhecimentos básicos em matemática automaticamente prejudicadas. A existência de exames condiciona fortemente a acção dos professores que mantêm, ainda assim, uma separação artificial entre a sua acção e os resultados dos exames. As medidas dos governos na melhoria das condições das escolas tende a criar na opinião pública uma exigência maior sobre os resultados e pretendem passar a responsabilidades para o corpo dos professores, enquanto procuram separar a acção dos professores dos resultados de outras acções (ou inacções). Chegam a sugerir que os resultados dos exames são independentes das condições económicas, diferenças culturais e de escolarização das famílias.
Iniciativa central, os planos de acção para a matemática escolar básica tornaram-se planos locais por adesão voluntária(?) de escolas espalhadas pelo país. Mais de um milhar de escolas aceitaram tomar iniciativas locais com vista à melhoria dos resultados a matemática. As escolas puderam escolher as oportunidades e os grupos de estudantes sobre os quais se comprometeram a intervir especialmente. Assim, esta iniciativa central constituiu-se numa grande variedade de aplicações locais - variedade de públicos, variedade em estratégias de intervenção, variedade na distribuição no tempo, etc - o que retira todo o sentido a que se considere que influencia qualquer melhoria dos resultados de exames ao fim do seu primeiro ano de aplicação. Cada escola deve responder pelos resultados da sua iniciativa local que, em muitos casos, pode ter sido intencionalmente dirigida a estudantes em início de um dos ciclos do ensino básico e que, obviamente, não estão a prestar provas ao fim do primeiro ano. Pode mesmo ter acontecido que esta primeira candidatura tenha correspondido mais a compromissos de gestão do que a compromissos dos professores sobre as suas práticas.
Nenhuma destas considerações pode iludir a necessidade de avaliar as intervenções locais pelos resultados obtidos. Não são os exames? Não são. Cada plano de escola deve responsabilizar os respectivos professores pelo compromisso que assumiram. Não se espera mais, mas isso é o mais importante. Até porque é sobre isso que, ao fim de cada ano e dos três anos de aplicação, estaremos a medir o impacto das iniciativas do governo.
[Educação & Matemática. APM. Agosto de 2007]
onde?
subi até aquele buraco na encosta escondido por não ter falado disso com ninguém.
e por lá me deixei ficar, dormente, até ter a certeza que ninguém dá pela minha falta e ninguém me procura
até me convencer que não vale a pena procurar migalha de pão no saco, restos em lata de atum, uma folha de papel. também é verdade que começava a custar-me fazer a ginástica de ir ao buraco ao lado para todas as necessidades. a minha descida pela noite começou logo após ter desabado uma tempestade de lágrimas sobre o papel que embrulhara o último quadradinho de chocolate.
A reunião, lá longe
Espero. E a vida suspende o seu voo. Ou esqueço as asas abertas. E que sejam as mãos do vento a decidir o que serei: instante a instante pairo sobre o futuro que serei. Espero.
Outra vida toda a vida.
“Quando dei por ela, já tudo aconteceu. Não sei quando começou, nem como e muito menos porquê. Como se às escondidas do tempo, um pequeno senão de coisa nenhuma tivesse aparecido não se sabe de onde e por ter tropeçado no pequeníssimo e desconhecido obstáculo tivesse desenrolado outra passadeira de descer escadas até aos altos céus. E o que é certo é que quando procurei olhar para trás para ver o tropeço, o tal pequeno senão, não havia nada para ver. Quando falo disto, não há nada para dizer em minha defesa e já estou cercado por tantas dúvidas que mais vale acreditar quando me dizem que ainda sou professor.
Apareceu alguém a dar-me a mão a puxar-me de um passeio para o outro lado da rua por onde nem pensava ir, e eu dei por mim a agradecer a passadeira estendida só para mim e mudei de passeio, de professor ao espelho, para professor do outro lado do espelho.
Como é que é possível que eu não tenha percebido quando deixei de ser professor? Não dei aulas nos últimos 20 anos e sou professor? O que é que me aconteceu, durante os últimos 20 anos, para ocupar um cargo na administração pública da educação? Sem qualquer concurso e seleccionado por ser obediente militante de um partido do poder, deixei-me estar até me deixar sobressaltar por uma piada sobre o inominável. Quem me suspendeu também se diz professor e anda pela administração pública ou sindicatos, por outros partidos. Também não deu por nada?
Quem é que me fez assim funcionário deste modo desmemoriado da vida até que tenha deixado de ver o ridículo da situação? A piada é que sou professor sem exercício. Foi acontecendo. Às tantas, já respirei tanto gás ridicularizante que perdi o norte. Eu e os outros como eu.”
Professores de quê? Educadores? Que doença ataca os partidos que transformam pessoas até elas se convencerem a ser o que não são e, para serem alguma coisa, dizem-se professores de uma vida inteira sem escolas, sem aulas e sem alunos.
Sem espanto algum, damos pelo disparate. Nos últimos trinta anos alguns deuses menores e portugueses andaram a criar um mundo paralelo e só deles, como contra-exemplo, para desmentir tudo o que disseram, dizem e dirão.
No nosso mundo, ouve-se uma campaínha de alarme. Na escola real, o professor dá corda aos sapatos, com o livro de ponto na mão, toma o seu lugar no corredor cheio de crianças e jovens. Nas próximas horas, a profissão toma conta de tudo o que dá sentido ao título de professor. Pode ser fácil. Pode ser muito difícil. Tem de ser. E tem muita força.
[o aveiro; 24/05/2007]
Apareceu alguém a dar-me a mão a puxar-me de um passeio para o outro lado da rua por onde nem pensava ir, e eu dei por mim a agradecer a passadeira estendida só para mim e mudei de passeio, de professor ao espelho, para professor do outro lado do espelho.
Como é que é possível que eu não tenha percebido quando deixei de ser professor? Não dei aulas nos últimos 20 anos e sou professor? O que é que me aconteceu, durante os últimos 20 anos, para ocupar um cargo na administração pública da educação? Sem qualquer concurso e seleccionado por ser obediente militante de um partido do poder, deixei-me estar até me deixar sobressaltar por uma piada sobre o inominável. Quem me suspendeu também se diz professor e anda pela administração pública ou sindicatos, por outros partidos. Também não deu por nada?
Quem é que me fez assim funcionário deste modo desmemoriado da vida até que tenha deixado de ver o ridículo da situação? A piada é que sou professor sem exercício. Foi acontecendo. Às tantas, já respirei tanto gás ridicularizante que perdi o norte. Eu e os outros como eu.”
Professores de quê? Educadores? Que doença ataca os partidos que transformam pessoas até elas se convencerem a ser o que não são e, para serem alguma coisa, dizem-se professores de uma vida inteira sem escolas, sem aulas e sem alunos.
Sem espanto algum, damos pelo disparate. Nos últimos trinta anos alguns deuses menores e portugueses andaram a criar um mundo paralelo e só deles, como contra-exemplo, para desmentir tudo o que disseram, dizem e dirão.
No nosso mundo, ouve-se uma campaínha de alarme. Na escola real, o professor dá corda aos sapatos, com o livro de ponto na mão, toma o seu lugar no corredor cheio de crianças e jovens. Nas próximas horas, a profissão toma conta de tudo o que dá sentido ao título de professor. Pode ser fácil. Pode ser muito difícil. Tem de ser. E tem muita força.
[o aveiro; 24/05/2007]
ele só mente a penas
onde o aviso
no ar não cabe nem mais um sopro
nos diz só
que mais nada há
a dizer
fazer
ver
a
haver
no ar não cabe nem mais um sopro
nos diz só
que mais nada há
a dizer
fazer
ver
a
haver
a sorte dos pais
Embora haja alguns estudos sobre a evolução da relação dos pais com os filhos ao longo da escolaridade destes, as crenças dos professores são dominantes para integrar a acção dos pais e outros agentes na cultura da escola. Tanto para estabelecer um padrão de comportamento que pretende assinalar como aceitável ou inaceitável esta ou aquela acção dos pais e encarregados de educação no quadro da relação com a escola, como para dar sinal da rotina da escola. De certo modo, podemos dizer que os professores estabelecem, com os seus discursos, a rotina das relações, promovendo ou despromovendo o papel dos pais e encarregados de educação.
Parece acertado para muitos professores aceitar que os pais acompanham com tanto mais empenho a vida escolar das crianças, quanto mais elas dependem da sua protecção e que o acompanhamento pessoal dos pais vai diminuindo na adolescência até ser substituído completamente pela ausência ou pela contratação de serviços especializados.
Os professores podem afirmar que há um fenómeno de abandono pelos pais da escola dos filhos. A rejeição dos filhos a esse acompanhamento como forma de afirmação no seu crescimento soma-se à incapacidade dos pais para acompanhar as novas competências (tecnológicas, também) escolares e não escolares adquiridas pelos jovens. Assume especial importância a falha de conhecimentos científicos e literários de uma geração menos escolarizada que se sente incapaz para compreender e ajudar o crescimento em graça e sabedoria dos filhos.
As escolas esperam muito (e isto é uma forma de dizer que os professores esperam muito) da acção dos pais nas escolas do ensino básico e chegam a desesperar sobre essa acção no ensino secundário.
Esta afirmação precisa do seu contexto. Pode ser diferente e referida a níveis etários diferentes conforme é dita no ambiente rural ou num ambiente urbano e citadino. Assim como é diferente o sentido que se dá a “básico” e “secundário”. Sendo que, para os estudantes que querem e são empurrados para o mundo do trabalho aos 15 anos (se não antes), o último ciclo do ensino básico é já um ensino secundário (tanto para os jovens como para os pais), enquanto que para outros jovens que não imaginam a sua vida sem prosseguimento de estudos superiores, aquilo a que convencionamos chamar ensino secundário é, de facto, básico.
Talvez pudéssemos dizer que o abandono escolar de hoje foi precedido do abandono escolar dos pais quando jovens e é denunciado pelo abandono a que os pais votam a escola dos filhos. Podemos mesmo dizer que o abandono escolar de hoje é a confirmação de outros abandonos. E é a mais desgraçada confirmação do abandono dos filhos pelos pais, mesmo quando não parece.
O mais dramático deste fenómeno de abandono das escolas pelos pais é que ele significa a incapacidade para os pais de acompanhar culturalmente a escola dos filhos. Os pais não têm tempo e principalmente não estão no tempo dos filhos e não compreendem a matéria de que é feita a escola dos filhos. Incapazes de conversar sobre o que os filhos aprendem ou deviam aprender, deixam de conversar com os filhos e não são exigentes (nem com os filhos, nem com a escola) ao nível das aprendizagens, dos conhecimentos e técnicas, da utilidade do que aprendem, etc. Confundem-se até ao ponto de perder o sentido da educação para a responsabilidade social.
E substituem tudo pelo único indicador escolar de que compreendem uma utilidade: as classificações numa escala numérica. Em vez da compreensão da complexidade e da qualidade das aprendizagens, os pais pressionam a escola sobre as classificações que, ainda que sem conteúdo, permitem a transição para o ingresso no mundo do trabalho ou no ensino superior.
Neste tempo, os pais são eleitores. A preocupação dos eleitores reduzida a classificações escolares é uma tentação para os políticos no poder que, na luta pelo poder, abrem campanhas com o único fito de melhorar classificações em vez de tomarem medidas de longo fôlego sobre as condições de vida das populações e sobre as condições das escolas onde os jovens aprendam a viver melhor, responsáveis e... livres.
Há escola dos pais dos estudantes na escola dos estudantes e professores? Abandonados à sua sorte, saberão os professores que as escolas não podem abandonar os pais à sua sorte?
[a página da educação; Junho de 2007]
Parece acertado para muitos professores aceitar que os pais acompanham com tanto mais empenho a vida escolar das crianças, quanto mais elas dependem da sua protecção e que o acompanhamento pessoal dos pais vai diminuindo na adolescência até ser substituído completamente pela ausência ou pela contratação de serviços especializados.
Os professores podem afirmar que há um fenómeno de abandono pelos pais da escola dos filhos. A rejeição dos filhos a esse acompanhamento como forma de afirmação no seu crescimento soma-se à incapacidade dos pais para acompanhar as novas competências (tecnológicas, também) escolares e não escolares adquiridas pelos jovens. Assume especial importância a falha de conhecimentos científicos e literários de uma geração menos escolarizada que se sente incapaz para compreender e ajudar o crescimento em graça e sabedoria dos filhos.
As escolas esperam muito (e isto é uma forma de dizer que os professores esperam muito) da acção dos pais nas escolas do ensino básico e chegam a desesperar sobre essa acção no ensino secundário.
Esta afirmação precisa do seu contexto. Pode ser diferente e referida a níveis etários diferentes conforme é dita no ambiente rural ou num ambiente urbano e citadino. Assim como é diferente o sentido que se dá a “básico” e “secundário”. Sendo que, para os estudantes que querem e são empurrados para o mundo do trabalho aos 15 anos (se não antes), o último ciclo do ensino básico é já um ensino secundário (tanto para os jovens como para os pais), enquanto que para outros jovens que não imaginam a sua vida sem prosseguimento de estudos superiores, aquilo a que convencionamos chamar ensino secundário é, de facto, básico.
Talvez pudéssemos dizer que o abandono escolar de hoje foi precedido do abandono escolar dos pais quando jovens e é denunciado pelo abandono a que os pais votam a escola dos filhos. Podemos mesmo dizer que o abandono escolar de hoje é a confirmação de outros abandonos. E é a mais desgraçada confirmação do abandono dos filhos pelos pais, mesmo quando não parece.
O mais dramático deste fenómeno de abandono das escolas pelos pais é que ele significa a incapacidade para os pais de acompanhar culturalmente a escola dos filhos. Os pais não têm tempo e principalmente não estão no tempo dos filhos e não compreendem a matéria de que é feita a escola dos filhos. Incapazes de conversar sobre o que os filhos aprendem ou deviam aprender, deixam de conversar com os filhos e não são exigentes (nem com os filhos, nem com a escola) ao nível das aprendizagens, dos conhecimentos e técnicas, da utilidade do que aprendem, etc. Confundem-se até ao ponto de perder o sentido da educação para a responsabilidade social.
E substituem tudo pelo único indicador escolar de que compreendem uma utilidade: as classificações numa escala numérica. Em vez da compreensão da complexidade e da qualidade das aprendizagens, os pais pressionam a escola sobre as classificações que, ainda que sem conteúdo, permitem a transição para o ingresso no mundo do trabalho ou no ensino superior.
Neste tempo, os pais são eleitores. A preocupação dos eleitores reduzida a classificações escolares é uma tentação para os políticos no poder que, na luta pelo poder, abrem campanhas com o único fito de melhorar classificações em vez de tomarem medidas de longo fôlego sobre as condições de vida das populações e sobre as condições das escolas onde os jovens aprendam a viver melhor, responsáveis e... livres.
Há escola dos pais dos estudantes na escola dos estudantes e professores? Abandonados à sua sorte, saberão os professores que as escolas não podem abandonar os pais à sua sorte?
[a página da educação; Junho de 2007]
dar a volta ao texto
Não sabia que tinha saudade das salas de espera, mas sei hoje que a leitura das salas de espera pode tornar-se um vício. Enquanto esperava uns minutos pelo futuro, fui atraído para o turbilhão de inteligência e vida palpitante de um suplemento que, não podendo ser vendido separadamente, sobrevive nas mesinhas de apoio das salas de espera ao tal jornal que o transporta até nós. Os minutos da liberdade que me deram não deram para ler mais que as chamadas à capa ou à primeira página. Mas fiquei com a alma consolada e não resisti a apontar as frases no meu caderno de viagem por este vale feliz.
a) Enchia a capa um cromo de rapariga pateta com jeito para o negócio de promover e vender tudo, desde fraldinhas ilustradas e roupinhas até bochechas e covinhas de queixo. A legenda punha-lhe na boca a frase: “Gostava de fazer uma personagem perturbada para mostrar que não sou só a flor”. Lá na sic-shop não há quem lhe explique devagar que é a mais perturbada das personagens e que a frase solta é prova de que ela não se enxerga, não é flor que se cheire e foi inventada para as tele-vendas?
b) Outra notícia balsâmica rezava assim: “O leão marinho é uma espécie em alta no zoo de Lisboa. Depois de ter recebido uma visita calorosa da actriz patrícia tavares, o bicho foi adoptado pela banda d’zrt. Há famosos que começam com muito menos.” Fico cheio de pena do leão marinho e dos golfinhos que, para sobreviver em cativeiro, têm de aturar estes bichos que vão fazer habilidades e tirar fotografias ao zoo. Estes famosos podem começar com muito menos, mas com muitos mais tiques, mais saltos e gestos disparatados que os que se podem ver na aldeia dos macacos. Ninguém pode começar com menos vogais que os d’zrt.
c) Numa das chamadas ao sumário da coisa, escrevia-se: “helena coelho separada e feliz nega novo namorado”. Estava a tentar ver se chegava a alguma fotografia do coelho desta cartola quando me acordaram do sonho em revista que não pode ser vendida separadamente.
Enquanto respondia a perguntas sobre novas configurações das famílias e sobre os problemas das crianças nas famílias e nas escolas, dei por mim a querer saber quem será a helena da família dos coelhos. Não descanso enquanto não souber.
[o aveiro; 17/05/2007]
a) Enchia a capa um cromo de rapariga pateta com jeito para o negócio de promover e vender tudo, desde fraldinhas ilustradas e roupinhas até bochechas e covinhas de queixo. A legenda punha-lhe na boca a frase: “Gostava de fazer uma personagem perturbada para mostrar que não sou só a flor”. Lá na sic-shop não há quem lhe explique devagar que é a mais perturbada das personagens e que a frase solta é prova de que ela não se enxerga, não é flor que se cheire e foi inventada para as tele-vendas?
b) Outra notícia balsâmica rezava assim: “O leão marinho é uma espécie em alta no zoo de Lisboa. Depois de ter recebido uma visita calorosa da actriz patrícia tavares, o bicho foi adoptado pela banda d’zrt. Há famosos que começam com muito menos.” Fico cheio de pena do leão marinho e dos golfinhos que, para sobreviver em cativeiro, têm de aturar estes bichos que vão fazer habilidades e tirar fotografias ao zoo. Estes famosos podem começar com muito menos, mas com muitos mais tiques, mais saltos e gestos disparatados que os que se podem ver na aldeia dos macacos. Ninguém pode começar com menos vogais que os d’zrt.
c) Numa das chamadas ao sumário da coisa, escrevia-se: “helena coelho separada e feliz nega novo namorado”. Estava a tentar ver se chegava a alguma fotografia do coelho desta cartola quando me acordaram do sonho em revista que não pode ser vendida separadamente.
Enquanto respondia a perguntas sobre novas configurações das famílias e sobre os problemas das crianças nas famílias e nas escolas, dei por mim a querer saber quem será a helena da família dos coelhos. Não descanso enquanto não souber.
[o aveiro; 17/05/2007]
os gestos mais simples
se um dia quis passear com uma mulher de mãos dadas
não fui quem digo que sou porque fiquei morto por amor
e não o soube fazer ou não tirei as mãos dos bolsos do medo
se um dia quiser tocar o céu da boca da mulher e a nuvem
da humidade do hálito do desejo tolher a minha língua é para sempre
e sempre é uma vida toda longa para ficar assim mudo e quedo
se um dia tocar a ponta do teu nariz com a ponta do meu dedo
e ele riscar o vento como um giz que escreve no quadro
a cor do ar e com ela o teu nome então volto a ser quem sou
para que possas partir sem olhar para trás sem olhar
para a porta da casa para a porta do sonho para a porta
onde se escondem os meus olhos à espreita do andar que se afasta
enquanto me afasto mãos dadas atrás nas minhas costas
não fui quem digo que sou porque fiquei morto por amor
e não o soube fazer ou não tirei as mãos dos bolsos do medo
se um dia quiser tocar o céu da boca da mulher e a nuvem
da humidade do hálito do desejo tolher a minha língua é para sempre
e sempre é uma vida toda longa para ficar assim mudo e quedo
se um dia tocar a ponta do teu nariz com a ponta do meu dedo
e ele riscar o vento como um giz que escreve no quadro
a cor do ar e com ela o teu nome então volto a ser quem sou
para que possas partir sem olhar para trás sem olhar
para a porta da casa para a porta do sonho para a porta
onde se escondem os meus olhos à espreita do andar que se afasta
enquanto me afasto mãos dadas atrás nas minhas costas
fazer o meu número
Em tempo de eleições na Madeira, Jardim abre uma clareira na floresta de enganos que o sistema democrático representativo pode ser. O espectáculo rasca do candidato Jardim é a verdade, parte da verdade, toda a verdade? Vale tudo para vencer eleições? O caso da Madeira é o modelo que todos seguem, fingindo cada um ser outro em tudo diferente do Jardim? Em cada voto, quantas caras há? A pose do recém-eleito presidente de todos os governos regionais da Madeira representa o quê?
Logo a seguir às eleições, passam-nos como boa uma ideia que separa o Jardim eleiçoeiro do outro presidente vencedor. Ainda ontem todos se maltratavam e hoje cumprimentam-se formalmente e felicitam o vencedor. Se ele é o que parece e o que dizem que é, porquê e para quê se deve felicitá-lo? Ele entende o que disse? Saberá ele o que representa o espectáculo que montou? Ele entende o que dele dizem? Eles entendem-se?
Espalha-se a ideia que tudo é permitido para ganhar votos e que não há mal em ganhar votos pelo disparate e pelo crime que se dispara boca fora. De tal modo assim é que, mal acaba o processo eleitoral, há comentadores e analistas prontos a desvalorizar como excesso “natural” de campanha qualquer ideia xenófoba, racista ou até ilegal que tenha sido debitada durante a campanha. Há mesmo quem afiance a insinceridade como uma boa característica dos candidatos.
As ideias radicais de direita que Sarkozy não se cansou de repetir durante as campanhas para a eleição de Presidente da República de França nada representam senão uma mentira inteligente para captar os votos que, a não ser assim, acabariam votos em LePen da Frente Nacional. Devemos ficar descansados já que Sarkozy não foi eleito pelas ideias que exprimiu, mas antes por aquelas que não chegou a exprimir. De certo modo, dizem-nos que o espectáculo eleitoral é um espectáculo e que as ideias de nada valem a não ser para serem sopradas quando servirem para ganhar um voto.
Já houve fraudes eleitorais e foi triste. Mas nada pode ser mais triste do que ouvir que só temos farsas eleitorais nos nossos sistemas democráticos. Ou não há nada mais alegre? Ou não há nada?
[o aveiro; 10/05/2007]
Logo a seguir às eleições, passam-nos como boa uma ideia que separa o Jardim eleiçoeiro do outro presidente vencedor. Ainda ontem todos se maltratavam e hoje cumprimentam-se formalmente e felicitam o vencedor. Se ele é o que parece e o que dizem que é, porquê e para quê se deve felicitá-lo? Ele entende o que disse? Saberá ele o que representa o espectáculo que montou? Ele entende o que dele dizem? Eles entendem-se?
Espalha-se a ideia que tudo é permitido para ganhar votos e que não há mal em ganhar votos pelo disparate e pelo crime que se dispara boca fora. De tal modo assim é que, mal acaba o processo eleitoral, há comentadores e analistas prontos a desvalorizar como excesso “natural” de campanha qualquer ideia xenófoba, racista ou até ilegal que tenha sido debitada durante a campanha. Há mesmo quem afiance a insinceridade como uma boa característica dos candidatos.
As ideias radicais de direita que Sarkozy não se cansou de repetir durante as campanhas para a eleição de Presidente da República de França nada representam senão uma mentira inteligente para captar os votos que, a não ser assim, acabariam votos em LePen da Frente Nacional. Devemos ficar descansados já que Sarkozy não foi eleito pelas ideias que exprimiu, mas antes por aquelas que não chegou a exprimir. De certo modo, dizem-nos que o espectáculo eleitoral é um espectáculo e que as ideias de nada valem a não ser para serem sopradas quando servirem para ganhar um voto.
Já houve fraudes eleitorais e foi triste. Mas nada pode ser mais triste do que ouvir que só temos farsas eleitorais nos nossos sistemas democráticos. Ou não há nada mais alegre? Ou não há nada?
[o aveiro; 10/05/2007]
solavanco
Confesso que gritei sempre, antes e depois de Abril. Podia não saber muito bem o que gritava, só sei que antes de Abril de 1974 me sabia bem gritar o que era proibido: tremendo berro clandestino de um corpo pequenino. Crescia com o grito, crescia ainda mais quando o meu grito podia ser lançado da boca de uma multidão inquieta que me escondia durante a rajada do discurso urgente. Enquanto o eco da rajada do discurso procurava os ouvidos da multidão em festa, desaparecia no lugar onde sempre tinha estado para não ser visto nem achado por eles. Por eles, os outros, os que viviam no meu medo sem que eu os conhecesse, que me procuravam para me encontrar sem marcar encontro.
Depois do 25 de Abril, deixei que a alma gritasse descompassada e com tal intensidade que me sobrasse esperança de ser escutado pelo passado até que ele me adivinhasse, a voz que eu era no grito desfeito em fumo. Depois do 25 de Abril deixei-me ser quem eu era, sem culpa e sem medo.
Haverá alguma história por contar? Não, não há. A minha vida sempre viajou como hoje viaja ainda em segunda e distraída vai contando solavancos.
Depois do 25 de Abril, deixei que a alma gritasse descompassada e com tal intensidade que me sobrasse esperança de ser escutado pelo passado até que ele me adivinhasse, a voz que eu era no grito desfeito em fumo. Depois do 25 de Abril deixei-me ser quem eu era, sem culpa e sem medo.
Haverá alguma história por contar? Não, não há. A minha vida sempre viajou como hoje viaja ainda em segunda e distraída vai contando solavancos.
essa é que é essa
Finco os olhos no chão para seguir os passos dados nos dias entre o 25 de Abril e o 1º de Maio de 1974. A partir de certa altura, o movimento era tudo até ser voo. E eu não guardo memória do momento em que levantei os pés do chão e muito menos me lembro do tempo em que poisei o corpo para viver o seu cansaço. Deixei-me levar pela pura euforia e só sei que fui levado por rios de multidão, saltando da minha pacatez tímida até aos gestos insensatos de correr as ruas e as veias do meu país. Com receio de ser encontrado, antes mudava de passeio muito frequentemente. Depois deixava-me voar nos encontrões do movimento.
Muitas vezes, me pergunto porque é que fui por aqui e não fui por ali, porque é que fiz isto e não fiz aquilo. Deixei-me tentar pela resposta que me dizia que eu sabia o que fazer e o que queria e para onde ia. Mas, depois, dei por mim a procurar a verdade e a aceitar que nos caminhos que ia percorrendo encontrava os meus amigos e eles não deixavam de me ver. Porque afinal eu queria ser visto. Todos nós queremos ser vistos e achados, penso eu agora.
Não me parece um erro seguir uma margem da multidão, ser parte de um cordão humano que procura constituir-se em fronteira entre a maldade que não poupa a miséria e a miséria filha da maldade humana. Lembro-me dos olhos e de lágrimas de dor. Mas também me lembro dos olhos para me lembrar das lágrimas de alegria, lembro-me das bocas e dos punhos erguidos para me lembrar das palavras que antes não podia gritar. E estou sempre a lembrar-me dos meus amigos, muitos deles perdidos na distância onde se guardam todos aqueles que vivem connosco mesmo quando não lhes pomos a vista em cima há décadas, que vivem connosco porque fazem parte da nossa história simples, talvez sem o saberem. Talvez sem o saberem, eles fazem parte de um sonho que não morre embora se vá refazendo noutro sonho. Olho para esse passado e é como se visse um álbum de retratos. Há quem veja acontecimentos determinantes e dentro deles os seus protagonistas. Eu só consigo refazer a pura euforia com uma galeria de retratos que só importam a mim. Porque foram eles que se fizeram ao caminho comigo até eu continuar a ser o que podia ser - sem me obrigarem a ser outra coisa que não fosse o que podia ser.
Não havia tempo a perder, não perdemos tempo, nem nos perdemos no tempo. O que passámos para aqui chegar! Onde?
[o aveiro; 03/04/2007]
Muitas vezes, me pergunto porque é que fui por aqui e não fui por ali, porque é que fiz isto e não fiz aquilo. Deixei-me tentar pela resposta que me dizia que eu sabia o que fazer e o que queria e para onde ia. Mas, depois, dei por mim a procurar a verdade e a aceitar que nos caminhos que ia percorrendo encontrava os meus amigos e eles não deixavam de me ver. Porque afinal eu queria ser visto. Todos nós queremos ser vistos e achados, penso eu agora.
Não me parece um erro seguir uma margem da multidão, ser parte de um cordão humano que procura constituir-se em fronteira entre a maldade que não poupa a miséria e a miséria filha da maldade humana. Lembro-me dos olhos e de lágrimas de dor. Mas também me lembro dos olhos para me lembrar das lágrimas de alegria, lembro-me das bocas e dos punhos erguidos para me lembrar das palavras que antes não podia gritar. E estou sempre a lembrar-me dos meus amigos, muitos deles perdidos na distância onde se guardam todos aqueles que vivem connosco mesmo quando não lhes pomos a vista em cima há décadas, que vivem connosco porque fazem parte da nossa história simples, talvez sem o saberem. Talvez sem o saberem, eles fazem parte de um sonho que não morre embora se vá refazendo noutro sonho. Olho para esse passado e é como se visse um álbum de retratos. Há quem veja acontecimentos determinantes e dentro deles os seus protagonistas. Eu só consigo refazer a pura euforia com uma galeria de retratos que só importam a mim. Porque foram eles que se fizeram ao caminho comigo até eu continuar a ser o que podia ser - sem me obrigarem a ser outra coisa que não fosse o que podia ser.
Não havia tempo a perder, não perdemos tempo, nem nos perdemos no tempo. O que passámos para aqui chegar! Onde?
[o aveiro; 03/04/2007]
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