vou sair



Por alguns dias vou sair. Vou até à Covilhã, fazer parte do enxame de professores de Matemática (no ProfMat). Não há melhor conforto.

Silêncio concertante

De vez em quando, lembro-me do Conservatório de Música de Aveiro. Há quem o veja como casa construída e instruída para a música. Mas olhando melhor, a casa da música foi devassada e devastada por uma fúria desconcertante. Da casa instruída para a música sobra um miolo dedicado à música. Lembra-me o conservatório que a música é um assunto incapaz de encher a sua casa, como se fosse a casa a apertar a música até esta se resignar à tacanhez. A surdez cultural é política, obra de políticos, tanto de ministros como de autarcas. Se em geral nos sabemos analfabetos, imaginem o que seria se contássemos a educação e a cultura musicais. A começar pelo primeiro-ministro, sabemos de que barro musical se fazem os responsáveis. Sobra-lhes o voto do espectáculo e esse, para ser notado, pode ser importado e ser pimba e pode até ser só pirotécnico para apagar as estrelas e os murmúrios da noite fecunda.

Nos últimos tempos, estamos preocupados (como é nosso dever!) com as desgraças das colocações dos professores dos ensinos básico e secundário. Mas alguém sabe como são colocados os professores dos conservatórios, se há quadro, que tipos de contratos celebram os professores, em que prazos, como são pagos? Ainda mais do que todos os outros, os músicos e professores de música têm quadros desajustados, contratos de favor ou quase, em completa desarticulação com os restantes segmentos de educação e ensino. Se existe, a vida dos conservatórios é desconcertante.

As escolas profissionais de música e os departamentos especializados no ensino superior não substituem nem sequer menorizam o papel das academias de música locais e os conservatórios regionais. Nada existe em Aveiro que possa substituir o Conservatório no seu papel.
Discutimos muito o ensino artístico e, em especial o sempre marginal ensino da música e formação do gosto, quando discutimos a revisão curricular nos governos de António Guterres. Já tínhamos discutido no tempo de Cavaco Silva e tinham-se dado passos tímidos na articulação geral e de contratações de professores. Não ouvimos falar do assunto nas alterações à revisão curricular. Ou tudo está bem, ou está tão mal que... o doente já não fala e... nem se fala disso.

Está aí alguém?


[o aveiro; 30/09/2004]

crítica improvisada

Fui (ou)ver os improvisos - space2004part#2 - a'o navio dos espelhos. A minha curiosidade ia para a forma em que caberia o sax do João Figueiredo e senti algum desconcerto confortável com a possibilidade de ter identificado monólogos amigáveis ao meu gosto e ter gostado de algumas discussões (improvisadas) a dois e a três. [Nas grandes peças(?), as discussões (entre instrumentos e instrumentistas ou mesmo entre naipes) são as minhas preferidas.] Gostei de ouvir e é verdade que fico convencido pela criação de ambientes sonoros electrónicos a partir de pequenas coisas como as que o João Martins faz. Há alguma delicadeza insegura nos gestos e na pose, entre o que não é e os saxofones que tanto melopeiam carícias de vento como atropelam todo o sossego. Gosto do João Tiago a oscilar entre o afago das peles esticadas e... a violência explosiva e logo contida pela desistência a dar lugar aos sopros e sussurros. Em alguns momentos, impovisamos não estar ali porque passamos ao que so(nha)mos e onde estamos não é mais que uma paragem na passagem para outro lado.


A vida modesta dos experimentadores é provada nestes espaços tipo "intensamente livre" que era o nome da povoação a ver-se por trás dos músicos. Há alguma coisa de mágico nestes pequenos senões e serões. E uma livraria pode mesmo ser uma "livreria", um navio para as viagens que fazemos mesmo aqui para o outro lado dos espelhos que nos reflectem no que vale a pena.

amarei

das patas
da aranha amarei os pêlos na sopa
quando a devolvo à copa
para que a aranha inteira a enriqueça

e eu, enfim, rejuvenesça

até andar de gatas


dos que improvisam no que é de improvisar.

Em Aveiro, na livraria o navio dos espelhos , mesmo ao lado do Teatro Aveirense, há música na próxima sexta feira. Eles esclarecem:


>>>24.Set.sexta. 21h00
Space 2004 # part 2 festival de música experimental e improvisada
Improvisação: João Figueiredo.sax, João Martins.sax, João Tiago.bat
Festival de MÚSICA onde procuramos abordar os novos rumos da música contemporânea, possibilitados quer pela via da experimentação/improvisação quer pelas novas tecnologias digitais. Uma plataforma de ensaio de formas e formações musicais.
Organização: Rock'n'Cave


Encontrei n'o navio dos espelhos alguns dos livros de poesia que tinha deixado de encontrar por aí. E alguns discos também. E encontrei-a aberta numa noite em que tentávamos (sem conseguir) encontrar o teatro aveirense aberto. Não é fantástico?

o lugar que arrefece.

Por aqui, sabemos que o verão está a chegar ao fim quando as escolas abrem as portas para as aulas. Vestimos camisas de manga comprida. Compomos o ar e tomamos fôlego para os pacíficos combates contra a ignorância. Sabemos que nos foi atribuído um mandato de passar para os estudantes alguma sabedoria e competências necessárias para o seu futuro e o nosso futuro colectivo. E preparamo-nos como qualquer profissional. Olhamos para os conhecimentos e competências, em geral e em detalhe, e planificamos os nossos compromissos de dever. Mas como o nosso trabalho é feito com e para os outros, é preciso saber com quem vamos trabalhar, anos de escolaridade dos estudantes, das condições e cultura da escola e dos pais dos estudantes, colegas professores das diversas equipas que vamos completar, etc. Só sabendo isso tudo é que sabemos o que vamos ensinar e como o vamos fazer, que ferramentas escolher. Não são sempre as mesmas e as nossas preferidas podem nem existir na nova escola, porque o nosso trabalho não é, a esse nível, tão rotineiro como o de quem muda de estaleiro e vai assentar tijolo sobre tijolo às ordens de algum capataz que segue instruções e desenhos de engenheiros e arquitectos.

A dignidade de uma profissão é medida pela forma como dominamos o conteúdo funcional e como manejamos adequadamente as ferramentas da profissão para fazer a obra, qualquer que ela seja. Sabemos que a atempada distribuição de serviço pelos trabalhadores de acordo com as suas qualidades e qualificações é fundamental e dela depende a boa condução dos trabalhos e a produtividade. Mais ainda assim será se pensarmos em serviços de educação e ensino. Não é?

Passámos gerações a hesitar e cometemos demasiados erros na definição das políticas educativas e das necessidades, na especialização funcional dos professores, nas formas dos contratos de trabalho docente, etc. Mas, mais do que antes, é a actual sucessão de erros na colocação de professores que projecta a mais crua luz sobre o valor atribuído à dignidade profissional dos professores e à escola pública pelos governantes que têm a "escola toda".

A incompetência dos mandantes poderá matar a dignidade dos professores, se não os contrariarmos com o óbvio - orgulho e dignidade são propriedade privada de cada um de nós.

Quem quer assassinar o ensino público? Os mais altos (ir)responsáveis dos serviços públicos têm feito de tudo para os desacreditar e (ar)rematá-los em leilão a favor de privados negociantes. Arrefecer os ideais de serviço público é feito com fingimento político. Mas é o que parece. E parece o que é: crime público.


[o aveiro; 23/09/2004]

a idade de QUINO.

Perguntaram-me pela idade do QUINO e eu não sabia. Mandei um palpite: 80. Agora já sei. Na biografia, publicada no "site" oficial do QUINO
pode ler-se:
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1932
QUINO, Joaquín Salvador Lavado, is born to Andalucian Spanish immigrants in the city of Mendoza, Argentina on July 17, although in the official records his birthdate is incorrectly registered as August 17. From the time he was born, he was called Quino in order to distinguish him from his uncle, Joaquín Tejón, a painter with whom Quino discovered his own vocation at the age of three.
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o que faz dele um setentinha.

É um lugar bom para ver alguns desenhos com o traço do Quino Lavado.

a velha mafalda

Li hoje na "Pública" que a mafalda (do quino argentino) tem 40 anos. Quantos anos terá o pai da mafalda? E o quino? E eu?

Abertura da época no jornal

Tudo começa às vezes por respeitarmos as pessoas envolvidas no lançamento de um jornal. Mas também pelo tamanho e pelo aspecto (mancha gráfica, tipo de letra,... ). O que é certo é que nos habituamos às coisas. Foi assim com o Público. Nós mudamos. E o Publico também foi mudando. Algumas vezes chegamos a odiar as políticas dos directores que influenciam drasticamente o jornal, mesmo não podendo alterar as opiniões dos cronistas e dos jornalistas. Amor e ódio. E enquanto ele não perder alguma da vitalidade que é garantida pelas opiniões diversas que ainda por lá se apresentam, que não é visível só pelas opiniões dos cronistas mas até pelos editoriais, lá continuamos a procurar o conforto do que já conhecemos. Lemos muitos jornais, mas há sempre um que nos dá mais conforto que outros e isso pode não ter a ver com os conteúdos principalmente. Há dias em que ocmpro o jornal por puro masoquismo ou para fazer alguma cena de ódio fechada na alma.
Da leitura da madrugada deste sábado, ficam-me alguns artigos de opinião que vale a pena ler. Para além de algumas notícias, claro. Não estou de acordo com todas as ideias expressas em qualquer dos que recomendo. Mas têm ideias. Neste sábado de Público há muitos assuntos, desde o nacional ao local, a valer visita. Foi uma colheita feliz. Não escondo os meus interesses óbvios para esta época de caça: o sector público e, em especial, a educação. E é por isso que recomendo vivamente a leitura
de Santos Silva, Onde o Cronista Se Transforma Num Temível Comunicador , que faz um exercício interessante sobre o sector público e a forma como o governo o olha e o trata;
da odiosa(?) Helena Matos, que fala das escolas públicas como sendo As Nossas Queridas Madrassas, criticando governo, pais, sindicatos, professores, ... e fazendo-me lembrar António Barreto, que ontem também zurzia em tudo e todos e até pedia a contratação de coreanos e afins para pôr ordem nisto, já que ele não sabia como é que se resolvia o problema (ele que é sociólogo, académico, fazedor de opinião, ex-governante-dirigente partidário-deputado, etc além de parvo - como toda a gente - quando a cegueira o ataca e ataca muitas vezes quem sente e tentou, pelo poder, a sorte de salvar a pátria e comeu à mesa dos poderosos mais que a sopa dos pobres);
de Santana Castilho, que também escreve sobre A Galeria dos Incapazes , ministro e ministra, e a fabulosa peça que nos pregaram com a colocação de professores. [Santana Castilho também já foi governante - Secretário de Estado do MInistério da Educação num governo do PPD].

Acho que é tudo boa leitura para todos. Como professor da escola pública, recomendo vivamente o Público de hoje. Os ex-maoístas (meus companheiros da luta contra o tempo em que se vivia) que dirigem o jornal agradecem, sem saber, o meu esforço.

E sobre a abertura das escolas, não há melhor opinião e melhor síntese noticiosa, que a de Luís Afonso, como quase sempre: Bartoon deste glorioso sábado, 18 de Setembro.

Pelo meu lado, tenho de voltar ao trabalho escolar, porque hoje é sábado.

das receitas para bem educar

Sob o título "Um mestre de categoria" a máquina de turing divulga algumas das pérolas de João Caupers sobre a arte de bem educar. Não resistimos a aconselhar vivamente a leitura.
Transcrevo um bocadinho do princípo da coisa:


[...] O Professor João Caupers, Director da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, distribuiu aos seus alunos de Direito Administrativo I neste ano lectivo de 2004/2005 uma nota introdutória que merece aqui um destaque.
O Prof. Caupers sublinha o "nível de exigência muito elevado" que se pratica na disciplina. Isso é bom. E avança a prova desse traço: "os elevados níveis de reprovação (entre 33 e 44%) aí estão como testemunho de tal nível de exigência". Lindo! Em qualquer escola decente, esses níveis de reprovação obrigariam o professor a explicar o que é que funcionou mal, exigiriam uma análise à qualidade pedagógica da actividade docente - até se concluir de que lado estaria o defeito. Neste caso, o Prof. Caupers, não contente com gabar-se desses níveis de reprovação, considera que isso é um indicador da exigência da disciplina. Isso quer dizer que as outras disciplinas da mesma faculdade têm um nível de exigência insuficiente, só porque não chumbam tanto? Aliás, o Prof. Caupers tem uma forma fácil de melhorar a avaliação da sua disciplina: reprova mais alunos e está feito. Nem precisa de fazer nenhum esforço para ser melhor professor. Basta reprovar mais alunos. E chega. [...]


O texto é grande. E esta parte pode não ser mais que um aperitivo. Só ganhamos em conhecer o pensamento de um ilustre mestre, comentado por "aquela máquina". Os meus agradecimentos ao Porfírio pela revelação.

A família

Há razões de sobra para estarmos todos felizes. O Ministro das Finanças disse-nos, a respeito de uma conversa sobre dinheiros, que somos todos membros de uma grande família a viver na mesma casa, contribuindo com dinheiro para a casa, que o estado português é a mãe que conta os tostões da família, decidindo as despesas a fazer. Quem não se sente confortado por fazer parte da grande família do Ministro das Finanças?

Alguns familiares andam zangados, e com razão, porque alguns filhos não contribuem para o bolo da família e não é que não possam. Podem e muito. O pior é que, embora não contribuam com a sua quota parte para o bolo, são os que dão as primeiras e maiores dentadas no bolo colectivo.

Mais zangados estão ainda porque a mãe trata uns como filhos e outros como enteados. Raios a partam! dizem alguns, os que não podem aceitar que a mãe desculpe os filhos mais ricos de não cumprirem com as suas obrigações e os trata por igual ou chega mesmo a favorecê-los quando chega a hora da distribuição da comida.

Pior ainda quando a mãe diz que, para alguns serviços essenciais, vai pedir mais contribuições e de acordo com o que cada um já paga, de tal modo que quem não contribuía continuará sem contribuir e quem já contribui ainda vai ter de contribuir mais. Todos os filhos que trabalham por conta de outrém contribuem e são afinal enteados. Os filhos da mãe não. Dizem os mais zangados que a mãe não devia procurar cobrar mais a quem já paga e que, se há falta de dinheiro, deve obrigar todos a cumprir com as suas obrigações.

Esta mãe diz que não dá mama aos filhos esfomeados para não os habituar mal. E deixa-se sugar por aqueles filhos da mãe que já só mamam por puras gula e inveja.

Não há moral nisto. Ou há e talvez seja esta: Mãe que maltrata a maioria dos seus filhos e protege parasitas acabará devorada pelas carraças das suas ideias. Ou esta: Tal mãe, tal filho das finanças.

[o aveiro; 16/9/2004]

Um prego no sapato da escola

Um prego no sapato fala de uma escola. E é alucinante a sucessão das histórias à volta dos umbigos dos zeros. Por vezes, custa acreditar, recusamos aceitar, mas ... que as há, há.

assuntos da escrivaninha

Actualizei a escrivaninha com a publicação autorizada do livro AS IMAGENS DOMINANTES de Luís Miguel Queirós. É um livrinho do século passado. Encarreguei-me de o devolver, a uma nova luz,


cego de amor
por ter disposto
as pedras todas
dos meus olhos
no teu rosto.



Sem dar quaisquer conselhos de leitura, afio (ou amolo?) curiosidades.

Palhaçada para gente graúda

Sobre a colocação dos professores e sob o título acima, o o dito cujo de aveiro escreveu:


A forma como o governo actual tem tratado os professores é para mim razão mais do que suficiente para dar um pontapé no cú do Portas, do Lopes e daquela trastalhada toda.

Acabei de ver a última no Público:
"Listas de professores podem não ser publicadas na próxima segunda-feira" seguido de: "O Governo reafirmou hoje que a abertura do ano lectivo irá ocorrer a 16 de Setembro, embora não seja ainda possível garantir a divulgação das listas de colocação dos professores na próxima segunda-feira".

Era uma boa altura destes gajos serem todos corridos. Que é que acham?



A todos indigna esta palhaçada. A quem trabalha no sistema educativo e acompanhou todas as dificuldades do crescimento da coisa, só nos resta o estupor(quase sem palavras)! Há dezenas de anos que nada de tão indigno acontecia. Indigno pelo que representa para os professores, mas também ofensivamente indigno no que representa de incompetência e... de arrogância que brota do poder ignorante que não se enxerga. Nem percebemos o que se passa no movimento docente e sindical - o espanto absoluto paralisa! E paralisa o país todo.

De Muito Obrigado a De nada!

É verdade que algumas vezes escrevo mensagens cifradas (com palavras e desenhos) para um só destinatário. É raro pensar em quem lê o que escrevo. Fico sempre espantado quando descubro que há uma ou outra pessoas que lê o que escrevo. E tenho a certeza disso, porque me referem até em pormenores que esqueci por não ser dado a detalhes na memória. E é certo que, por vezes, o que escrevo não é mais que um recado cifrado para uma das pessoas que lê, na esperança que possa vir a ler aquela mensagem em particular. O que é certo também é que, se escrevo por escrever como prova de vida, aqui não faço desenhos com as palavras. Os desenhos? Esses sim são incompreensíveis e desprovidos de lógica ou mensagem intencional, sendo quase sempre uma fuga para o lado escuro da sala onde quero ficar escondido.
E pronto. Não é este o exemplo de recado com destinatário? É. Haverá quem não veja qualquer razão para isto ter sido escrito e publicado. Mas pode acontecer que haja o leitor: aquele que dará sentido a isto e até, quem sabe!, lhe atribuirá o valor de explicação ou justificação.
Esta coisa da exposição pública tem uma verdade própria: quem escreve, fica sempre melhor quando sabe que foi lido e não se vira do avesso quando sabe a verdade das interpretações dos outros. No meu caso, não resistirei a tentar esclarecer, iluminar zonas de sombra e a defender os pontos de vista sobre o que é público e se tornou notório por alguma razão boa ou má.

A paz nunca vem depois.

Porque apressas o passo quando vês a multidão ali mesmo à frente da tua escola? Porque levas o ramo das flores? Ninguém falava dela, da tua terra. É, por isso, que vais seguro e confiante para o primeiro dia de aulas do teu filho. Seguras-lhe a mão, mas é só uma segurança de ternura. Talvez lhe vás a dizer que vale a pena pelo futuro, quando ele hesita em separar-se de ti e juntar-se aos outros.
Onde fica Beslan? Ossétia? Nunca vi tal nome nos mapas. No entanto, fala-se de Beslan e da Ossétia, tantas vezes, que é como se fosse algum lugar conhecido desde há muito. E vejo as ruas e as casas de Beslan. Vejo pessoas e parece-me que as conheço, vizinhas do meu mundo sossegado. Vejo a fotografia do quarteirão da escola nº 1 de Beslam no momento em que é tirada. Posso saber o que disseste ao teu filho em Beslam nestes dias, porque ganhaste a atenção do mundo inteiro. Nunca fizeste nada por isso, mas estás aterrorizado com o mundo inteiro a ver-te. O terror bateu-te à porta e logo bateu à minha porta. Isto muda tudo, não muda? Quer dizer que, se os terroristas tivessem escolhido a minha escola da minha cidadezinha de que nunca ouviste falar tu tinhas sabido imediatamente. Se tivessem vindo aqui até à minha escola, tinham o mesmo impacto e serias tu a ouvir falar de uma cidade impronunciável. Há ainda quem sossegue na sua vidinha neste lado do mundo, porque pensa que vocês afinal são mais vulneráveis porque estão na Rússia dos problemas que o Kremlin tanto se esforça por ter e que é tão frio. Que negócios e quanto dinheiro se esconde nas fraldas das causas do terror? Não é fácil vir até aqui? Não são só as notícias que são rápidas a tomar o mundo. Que queres que te diga? Estou tão aterrorizado quanto tu estás e vejo-me a chorar os teus filhos como se chorasse os meus. Podemos chorar ao mesmo tempo. Hoje, sou eu que ouço o teu grito por sobre o meu grito. Hoje és tu quem não ouve os meus gritos, porque eu grito sobre o que vi acontecer-te. Mas amanhã? Sou professor.Se calhar, na minha escola, não haveria tantas flores para comer. Não sei que mais te dizer.

[o aveiro; 9/9/2004]

no dia combinado

Tenho uma filha que nasceu no dia combinado para isso, faz agora trinta e um anos. Nem eu sei contar até tantos. Nasceu ainda durante o antigo regime,tinha eu saído para jantar. Não me lembro do filme que tínhamos ido ver quando ela começou a reclamar uma saída ao ar livre da noitinha de Espinho. Não me lembro da ementa do jantar. Se bem me lembro ela nasceu quase ao mesmo tempo que o meu serviço militar obrigatório. E faz-me lembrar a ordem unida, a marcha a contragosto e... a seguir, a liberdade das ruas por onde marchávamos com as gargantas limpas.

a forma nova

dizem que não há paixões humanas que prestem
e que todos os poemas foram já ditos e escritos

não mais que personagens de um fado bem passado
poetas são ratos de biblioteca a sobreviver
em buracos dos livros que não páram de roer

poetas são os que usam formas novas para cozer
em lume brando o poema mastigado e vomitado
até este ficar queimado pegado colado
e parecer que não tem nada a ver

nada para entender
e pouco ou nada para ler

dizem que já não há líricos tísicos nem sanatórios
e que os poemas são incerta forma para citações
ditadas e reeditadas experiências de laboratório

onde não entram nem saem emoções.

E já nem preciso é sequer manuscrever.

papel


tirania

não me digas que as comeste
porque ninguém

a começar pela tua mãe

te avisou que as lâminas
de barbear
não são para comer.

crime da razão futura

a história não vai falar dos nossos
mártires porque nela entraram carregando
o espanto sobre a pacatez da vida o desmando
do trágico navio que transporta ossos
para a história.


[o futuro só vai contar mártires entre
os agressores: tenham ficado vivos ou
tenham morrido abraçados a causa ou
seita com memória e os lembre entre
tanto...]

a história espalha o pó fino que sufoca
os gritos e simula na pedra funerária
que todos os outros morreram pela boca
de cena sendo actores da vida adversária
daquela história.

alto do erro

Quem vem pelos pirinéus, tomando o caminho a partir de Orthez para Pampelune (Pamplona ou Iruña?) passa por casas espantosas a desenhar contornos a pastagens (tanto para bestas celestiais como terrenas) e que nos enganam o olhar. É possível ver o que é impossível construção.
E há lugares com nomes que nos ficam. Erro! Melhor ainda: Alto do Erro!







Um pintor ingénuo não pode resistir à matemática da coisa.

O cinzento-escuro.

Os dias das semanas de verão passam cinzentos. São férias, senhor! - diz a semana quando a culpam de falta de assunto sério.

Assuntos escaldantes?
Houve incêndios, sim! Mortos na estrada, sim! Atentados longe daqui, claro! Genocídios de verão, também. Maus resultados nos exames. Notícias da falta de sono dos comentadores e doutores. Cassetes roubadas, cassetes publicadas, demissões do peixe miúda e do peixe gordo. Volta a Portugal. Volta à França. Pancada derrotada no futebol olímpico em directo na RTP1 e o resto dos jogos nos outros canais. A televisão pública derrotada em directo. E agora até já recomeçou o totobola!
Que é que nos pode faltar? Professores por colocar, por exemplo.

Houve quem quisesse tranquilizar a população, dizendo que o governo tinha ido de férias. Mas não foi. O que é inquietante neste verão foi ver o governo a não parar de governar. O "Independente" da semana que passou deu-me a dimensão da tragédia: eles nomeiam à velocidade de meio cinzento por hora. Até ao dia da saída do independente, 468 nomeações políticas dependentes. E lá me informou também das nomeações apressadas dos ministros de Durão. O mais exemplar é o caso do Ministro reconduzido da Saúde que, no intervalo entre governos, deu cargos de administradores aos seus colaboradores, não fosse o diabo tecê-las.

É impressionante o número de assessores, secretários, adjuntos, chefes, etc. que gravitam à volta de cada ministro e que podem ser nomeados. Ainda é para mim um mistério como se faz esta dança de cadeiras sempre que muda um ministro. Para onde vão quando saem? De onde saem quando entram?

Há mesmo pessoas que tratam só da imagem do nosso primeiro. Quem pensava que aquilo era beleza natural, ficou a saber que não, que há muito trabalho ali, muita "base" mesmo. Numa revista qualquer vi como a assessora de imagem se equilibra numa banqueta de pose. É um espanto.
Santana Lopes tem treze secretárias pessoais, oito adjuntos e quatro assessores. E pode nomear até sessenta colaboradores directos. Preparem-se. Até Paulo Portas nomeou mais que Santana: trinta e cinco. E tem só quatro secretarias pessoais e só seis motoristas.

Que é que nos pode sobrar? Ficar a ver navios. Ou algum navio em particular.


[o aveiro; 2/9/2004]

educar o falar sobre o ensino

A nossa escola é um lugar estranho aos cidadãos. Excepção feita às crianças e a alguns anciãos de colo, todos passaram pela escola. A escola é parte da normalidade das sociedades modernas e é uma casa comum. Sabe-se que é precisa mesmo quando não parece: bem ou mal foi por lá que se teve acesso a grande parte dos conhecimentos (e competências) que utilizamos todos os dias sem pensar na escola.
Nestes meses que medeiam o fim de um ano escolar e o início do seguinte, quem se preocupa com os assuntos sociais e o futuro não pode deixar de escrever sobre a escola de hoje. Para falar da escola e tentar influenciar a sociedade no sentido da escola melhor (a cada um a sua), utilizam-se as notas dos alunos (do secundário principalmente) como prova de que a actual escola não está bem. Em abono da verdade, dá-se razão a todos os que disseram no passado, dizem no presente e virão a dizer no futuro que a escola não está bem e tem de mudar para melhor. É claro que "estar mal" ou "melhorar" têm sentidos e significados diferentes, já que ela tem de ser adequada sistematicamente às condições da vida social, aos desenvolvimentos científico e tecnológico, etc. Alguns aspectos decisivos desta época nem a melhor escola do mundo passado podia antecipar.

Mas há assuntos em que devíamos estar todos (ou quase) de acordo. A escola de hoje tem de ser muito exigente. Se não quisermos ser cidadãos diminuídos no mundo actual precisamos de saber e de saber fazer muito mais e aprender muito mais do que no passado. O conjunto de ferramentas de que dispomos é muito maior e os protocolos para as utilizar, que fará para lhes compreender o funcionamento!, são tão diversos que não podem ser assimilados por exaustão. Esta asserção bastará para percebermos que a existência de novos meios (também de ensino) não torna a escola (como lugar de aprendizagem) mais fácil, torna-a tão só possível como instrumento social de uma sociedade que carece da escolarização de todos os seus cidadãos presentes e futuros (tanto do lado dos direitos como do lado dos deveres).
É preciso que cada um de nós (cada pai, cada mãe, cada jovem, cada professor) saiba que neste mundo complicado, a escola tem de ser complexa, mas tão simples que todos possam compreender o valor do conhecimento e consentir o trabalho exigente e disciplinado que isso representa para cada um de nós.

Mas será que isso tem alguma coisa a ver com o que se discute quando se discutem resultados? Talvez, mas pouco. Os professores e os processo portugueses são pouco exigentes? Se fossemos ver pelos resultados (reprovações, repetências, etc) o nosso sistema apresenta-se como um dos mais exigentes do mundo.

Não vou pelo caminho dos números. Mais vale educar a fala.

[o aveiro; 28/08/2004]

couve de bruxelas

1.
Eu bem tinha escrito que o ministro do turismo de verão ia governar para os lados da quinta do lago. Por uma revista do expresso, soube que a secretaria de estado fica muito perto. E descobri agora que o primeiro ministro foi para a quinta do lago para uns dias de veraneio e devaneio, acompanhado dos seus filhos. Não sei o que é a quinta do lago a não ser das referências das colunas das tias deles. Mas deve tratar-se daquilo a que os teóricos chamam uma nova centralidade.

2.
Os algarvios viram arder a serra e a terra. Reclamam apoios rápidos. O primeiro da quinta do lago não consegue declarar o estado de calamidade para a região. Porque será?
Felizmente temos chuva. Se não tivesse chovido, o que teria ardido? Quem diz que esta chuva estraga o verão, não sabe nada de salvação. Só sabe que é de um extremo mau gosto que chova onde é mais o sol o que convém. Quem nos dera o sol na quinta do lago e nas praias todas e chuva nas florestas (já que estas são mais pasto das chamas, também da incúria, e menos pasto para os seus habitantes).

3.
Pelas fotografias que vi, a quinta do lago deve ser a capital da cusquice do bronze. Por momentos, fiquei sem saber se o salvado passa os fins de semana a palrar com os jornalistas na quinta. Ele sempre se foi confessando como tecedeira de comentários sobre a actualidade. O director da judite dá-se a conversas de treta e, coitado!, nunca imaginou que os jornalistas do correio da manha chegassem ao extremo da perfídia de o gravarem para a sua posteridade. Quem nomeou este director da treta que quer passar de vítima da sua treta a vítima de uma conspiração de treta? Neste romance só há conspirações e cabalas! De cabala do salvado, a salvado da cabala? Neste verão cabalar, chovem cabalas.

4.
O independente publicou parte das conversas. A sua directora, conhecida por plantar papéis, vem plantar extractos de conversa gravadas sem autorização. Sem autorização, também ela. Concorrência desleal ao independente de portas e guedes! E lá se foram salvado e sara, com a água do banho. Provavelmente, o futuro dirá que não se passa nada de tão passado que está.

5.
E a pública, na falta de assunto, decidiu falar da história de sucesso dos ex-maoístas. Fui ver. O sucesso dos ex-maoístas é o barroso feito couve de bruxelas e o director do público ele mesmo, para além do lamego no iraque, da esther de israel, etc. Afiançam-nos que balsemão gostava de trabalhar com ex-esquerdistas, esquecendo-se dos gostos de belmiro. Aproveito para concordar com o morgado que ironicamente dá graças ao destino por não ter tomado o poder. Mais ainda por saber quem, de entre os ex-maoístas, perseguiu o poder até lhe tomar as rédeas . Como cavaleiros montam o poder. Como cavalos, lembram-se do freio nos dentes. Quem puxa as rédeas?
Se eles são assim na sua ascensão em democracia, imaginem o que seria se tivessem tomado o poder como ditadores do proletariado. Um pais que se deixa invadir por ex-maoístas só pode ser um pais atrasado.

Ex-maoístas a cair das nuvens é chuva ácida.


[o aveiro; 19/08/2004]

Por uma etiqueta da ética

A ética da politica é a ética da lei, é a ética do estado de direito - eis o que, no fundamental, diz Pina Moura ao Público, quando questionado sobre a critica à sua aceitação de um cargo de direcção na petrolífera espanhola Iberdrola, empresa com a qual, enquanto Ministro da Economia e das Finanças, negociou a privatização da Petrogal. Para Pina Moura, a verdade é que "a ética não pode ser outra que não a ética da lei e das instituições encarregues de interpretar e aplicar a lei".
Pina Moura não nos lembra (porque não se lembra?) que participou também no poder de fazer ou modificar tais leis que tão bem lhe servem para participar na bagunçada que é a promiscuidade do público e do privado - interesses e influência no público que podem ser tão só prestação de serviços a privados.
Mas basta consultar qualquer enciclopédia de trazer por casa (e Pina Moura conhece-as) para ler que "se devem distinguir as normas da moralidade, em sentido restrito, das normas meramente derivadas do direito, bem como das normas puramente convencionais do costume". As leis, derivam de alguma ética e, nesse sentido normativo, podem superar algum relativismo ético. Ora acontece que, no caso de Pina Moura e de outros políticos, as leis têm servido para justificar comportamentos morais reprováveis, em nossa opinião. Sendo a ética fundamento da lei, não é do direito que emana a ética. As faltas éticas são ilustradas por actos de pessoas que não desrespeitam qualquer lei. Os que desrespeitam a lei são acusados de ilegalidade e crime.

Os "arrivistas" que passam a ministros, secretários de estado,... não desrespeitam a lei. Podemos falar da falta de ética pessoal, profissional e de dever e presumimos sobre o prejuízo do interesse público. Um artigo recente, da revista Sábado, sobre Nobre Guedes (que afinal não é nobre, nem de nome) é extremamente revelador sobre estas questões. Trata-se de um frete, também revelador das relações promíscuas deste poder com o negócio da comunicação. Para além do folhetim que pretende relativizar até o nazismo à direita de Salazar, tudo releva da dica de que os críticos da nomeação de Luís Guedes para o ambiente se esqueceram de declarações, de há meses atrás, em que este afirmara à Antena 1 que os dois ministérios mais importantes numa democracia moderna são a cultura e o ambiente.
Quantas pessoas têm a certeza que estes dois assuntos dominam a vida moderna? São milhões os que assim pensam, por bons motivos (e por maus também - há séries de TV sobre os sopranos interessados no lixo). A maioria deles não aceitaria a nomeação, por ser eticamente reprovável aceitar um cargo que não se pode exercer bem ou no sentido do bem colectivo.

Afinal, o abrigo da lei está ao nível zero da ética nas democracias modernas.


[o aveiro; 12/08/2004]

Uma humanidade de coisas.

As últimas semanas falam-nos de pessoas como se fossem coisas e de coisas como se fossem pessoas.

No Paraguai, deflagra um incêndio num centro comercial. Aparentemente, para evitar pilhagens e fugas aos pagamentos, as portas de saída são fechadas. Pode não ter sido exactamente assim, mas se alguém o disse como coisa possível é porque há coisa. E a entrada de bombeiros e socorristas é também atrasada pelos seguranças. E morrem centenas de pessoas, como coisas, executadas pela coisa.

No Sudão, milhões de pessoas morrem ou passam fome às mãos da coisa, como coisas. Quando começa a escavar-se um pouco mais sobre o que emperra as Nações Unidas ou sobre as razões da falta de genica face à tragédia humanitária do Sudão, descobrem-se interesses da coisa norte-americana. Direitos humanos ou direitos da coisa? Para a coisa, as pessoas são coisas.

A coisa de que falamos é invenção dos tempos mais modernos. A coisa é um conglomerado de interesses que tanto salvam como destroem conforme as coisas em jogo. Ninguém sabe quem é quem na coisa, só conseguimos identificar uma ou outra coisa humana que joga esse xadrez: políticos que defendem a insensibilidade da coisa para as coisas humanas particulares em nome de uma lógica de benefício global que a coisa produz para as coisas humanas em geral. A coisa em geral não tem cara; toma as caras mais diversas: comentadores de serviço para as virtudes da coisa, recentes ?jotas? que saltam daqui para ali e para o poder enaltecendo a coisa em abstracto, enquanto fingem tratar de alguma coisa em concreto.

O mais engraçado de tudo isto é que todos nós sabemos que há coisas assim: nunca fizeram coisa alguma para alem de enaltecer a coisa em algum canto do poder da coisa, mas assumem lugares de governo das coisas concretas sem saberem coisa alguma além de generalidades sobre a coisa do poder em geral. E mal nos damos conta eles tomaram conta das coisas e certificam-se como especialistas em cada uma das coisas. E podemos vê-los mandando nas coisas todas, públicas e privadas, ministros ontem e administradores hoje. A explicar acidentes, por exemplo: - Logo, nesta obra, a primeira que a Petrogal estava a realizar tendo em vista a segurança dos cidadãos e não a rentabilização é que se dá o acidente? A pública Petrogal fez coisas que não consideravam a segurança dos cidadãos de Leça, esses coisas?! Estão a ver a coisa prestes a mudar-se para coisa incerta?


Estas coisas são o nosso problema e o problema do mundo. A lógica da coisa é a coisa de nos tratarem a todos como se fôramos coisas. Aqui ou ali, porque mundo é muito pequeno. A coisa é que é grande.


[o aveiro; 5/8/2004]

cores de julho

também pelo preço mais baixo, vendo




a um amigo que não tenha duas caras

a segunda feira de cor




ando a escolher as cores
que fiquem bem em corredores
e vendo pela oferta mais baixa
o quadro de que se mostram pormenores
nesta caixa







fico à espera do primeiro dedo de amigo no ar

se deixar endereço, trato do envio e não cobro nem portes de correio.



o passeio de domingo

quero ser o passeio
em margens
onde corra como um rio

ou ser preso na casa
de seda
em volta da mulher

e escrever o poema
numa pele de lençois
da cama por fazer



quero ser o passeio que ela faça
quando andar nas nuvens

quero ser o senhor dos passos

transumância

pelo pasto das chamas a dor
ladra avisos até ficar rouca

que já não cabe dentro da boca
a língua de fogo do pastor.

partida

Eu vou ver o branco dos olhos magoados
as madrugadas onde elas estiverem na preguiça
e em alguns dias dos mais desesperados
cantarei, pela salvação da minh'alma, uma missa

Se alguém sossegar a um canto da minha igreja,
gozando a solidão do fresco da nave lateral,
farei do meu canto um tal silêncio feito em cal
até não ser mais que estátua o que de mim se veja.

Modelos financeiros

O desenvolvimento económico e social coloca à disposição dos cidadãos uma enorme variedade de produtos e serviços. E, de cada tipo de produtos, a rentabilidade das cadeias de produção é assegurada pela produção de enormes quantidades que precisam de ser escoadas por serviços de distribuição eficazes. Dito de outra forma, as sociedades industriais desenvolvidas produzem cada vez mais (em diversidade e em quantidade) e criam serviços capazes de criar a necessidade social (soma de necessidades individuais) dos diferentes produtos para alem da sua distribuição por todos os lugares da terra.

Em sociedades como a nossa, para se garantir um acesso generalizado aos bens disponíveis (muitos ainda antes de haver deles necessidade real e sentida) criam-se outros tipos de serviços (por exemplo, serviços financeiros, banca, seguros) que antecipam meios, por via dos empréstimos (crédito), aos cidadãos para que eles comprem os produtos a todo o custo.

Os ciclos infernais de produção são acrescentados pela obtenção de lucros rápidos baseada também ela na rápida e brutal a exploração da mão de obra. A necessidade de vender é acelerada pela concorrência e por sistemas de rotação de produtos que os tornam rapidamente obsoletos. Esta necessidade de vender transforma-se em pressão sobre o conjunto dos consumidores que são cidadãos por terem acesso aos bens essenciais ao seu bem estar e são vítimas sem direitos logo que se deixam cair na passadeira rolante financeira de marcha mais rápida do que a marcha dos reais rendimentos do seu trabalho. O que há mais nas sociedades de consumo é má gestão de expectativas. E há os donos de tudo que precisam de ter cada vez maiores lucros e, de uma só vez, chegam a sacrificar produtores e consumidores. Cada produtor é consumidor e um desempregado não produz nem consome.


Os problemas sociais a este nível são de tal ordem e têm tal influência na vida pessoal, familiar e social, que os sistemas educativos tratam estes assuntos sob os mais diversos aspectos. Por exemplo, em alguns programas de Matemática portugueses, já aparecem os modelos financeiros e não só para que cada pessoa possa agir de forma mais responsável (e logo mais livre) quando recorrer ao crédito e para evitar o endividamento excessivo, mas também para participar nas decisões sociais sobre o endividamento das autarquias, dos governos, etc.

Estou em crer que poucos jovens se inscrevem em cursos com Matemática Aplicada às Ciências Sociais e continuaremos com uma população juvenil sem formação em modelos financeiros. Nem de propósito. A formação nestes aspectos é uma exigência da cidadania. Mas na falta dela, podíamos contar com o exemplo das autoridades e das instituições que mostrassem, pela sua acção, em palavras e em actos, que utilizam os seus conhecimentos sobre os modelos financeiros para fazer uma boa gestão da coisa pública. A sua imagem valeria mais que mil palavras dos professores.

Mas ... a manipulação contabilística e o manobrismo financeiro, praticados pelos governos e pelas câmaras, não ajudam a educação do povo. A Câmara de Aveiro é também um mau exemplo. Cobrar aos munícipes 3 milhões por um serviço de distribuição de um bem essencial (como é a água potável) sem pagar o que quer que seja ao fornecedor do produto acrescenta maldição de má-educação financeira genuína a tudo o que já condenámos como miséria politica em matéria de buracos negros para onde foram atraídos todos os fundos e todas as frentes da nossa ca(u)sa colectiva.




[o aveiro; 29/7/2004]

Fico parado a olhar

Creio que podia regressar e viver com os animais, são tão plácidos e autónomos,
Fico a olhar para eles longamente.

Não se impacientam, não se lamentam da sua condição,
Não jazem acordados no escuro e chorar os pecados,
Não me maçam com discussões sobre os seus deveres para com Deus,
Nenhum está descontente,
Nenhum sofre da mania de possuir coisas,
Nenhum se ajoelha perante outro, nem ante os antepassados que viveram há milénios,
Nenhum é respeitável ou infeliz à face da terra.

Revelam a sua relação comigo e aceito-a,
Trazem-me sinais de mim, provam claramente que contêm em si mesmos,
Pergunto-me onde terão adquirido esses sinais,
Será que em tempos remotos por aí passei deixando-os negligente cair?

Avançava então e avanço agora e sempre,
Juntando e mostrando sempre mais e depressa,
Infinito e de todas as espécies sou, e igual a elas sou,
Não escolho demasiado aqueles que me recordarão,
Elejo aquele que amo e fraternalmente com ele vou.

Um garanhão de beleza imensa responde logo às minhas carícias,
A alta fronte, os olhos afastados,
Os membros reluzentes e flexíveis, a cauda longa varrendo o chão,
A ferocidade nos olhos cintilantes, as orelhas finas, com elegância se move.

As narinas dilatam-se quando os meus calcanhares o apertam,
Os bem torneados membros estremecem de prazer enquanto galopamos e regressamos.

Só te uso um minuto, garanhão, e já te deixo,
Para que preciso do teu galope quando o meu te ultrapassa?
De pé ou sentado sou mais veloz que tu.



[Whitman; Canto de Mim Mesmo.
J. A. Baptista]

Homem ao mar!

Quem defende a vida, ama a natureza! - esta é a frase mais forte que Paulo Portas encontrou para justificar a nomeação de Nobre Guedes para ministro do ambiente. Não precisava. O povo sente que entrando Nobre Guedes, o ambiente logo se torna "chic" e mais "in". Sentimos isso na sua magistratura superior no conselho da dita. Telmo Correia especializou-se na promoção de viagens a destinos ideológicos duvidosos e é por isso e muito legitimamente ministro do turismo de um dia de verão, de preferência na quinta do lago.
Estes dois casos são dos que têm mais piada, logo a seguir ao Santana, promotor de missa simbólica e visita guiada ao cemitério, no primeiro dia de papel de primeiro! Benza-o Deus! que ele já esqueceu como é que se faz!
E há o problema da cultura que foi feita em cacos de Roseta para ser património à altura da tia Bustorff.

Eu não acho que um professor ou um pedagogo ou um cientista da educação, etc seja forçosamente melhor ministro da educação que outro qualquer cidadão politico que se interesse pelo tema e sobre ele (sobre o sistema educativo) tenha trabalhado e produzido opinião politica. Mas acho que é muito difícil defender a ministra da anacom. Sabemos que andou nas escolas e talvez conheça uma ou outra criança a frequentar um colégio deste reino unido por um primeiro mais ungido que indigitado. Ungido por Durao e indigitado por Sampaio!

Não há educação que resista a tanta falta de educação. Porque brincar aos ministros é falta de educação, estamos à espera que nos provem que isto das nomeações de Santana não foi uma brincadeira de mau gosto. Tem de haver alguma lógica nisto.

O que mais me intrigou nesta semana que passou foi o pedido de benefício da dúvida para o governo. Ora eu, não tenho nada além de dúvidas a respeito do dito. Podem contar as minhas dúvidas todas se isso melhorar a média do benefício.

O que me conforta é a "criação" segundo Santana. Para criar um homem é necessário barro e sopro divino. Para criar um ministro, basta que o sopro de Santana toque o nada.

[o aveiro; 22/07/2004]

verdade do amarelo





Parto para vilarinho das perdizes. Nunca vi amarelo mais perfeito que o amarelo das flores de tojo daqueles montes.

intervalo

quando me cansa a frase seguinte
do relatório que folheio
venho até aqui como pedinte
pedir esmola às pessoas em passeio

...

uma esmola, duas pepitas de memória
peço por uns instantes a mais de sossego
como se reclamasse o salário do cego
que canta uma lengalenga sem história

outras vezes canto tão alto um fado à janela
aquele que aconteceu ao pintor que assassinou
à facada o auto-retrato da sua última tela
esse rio de tinta para onde se atirou.

Passe-me o sal!

Entrámos na casa de pasto, quase ao mesmo tempo. Faz favor! O senhor primeiro! - disse eu, enquanto segurava a porta entreaberta. Muito Obrigado! - ouvi-o, numa voz sumida.
Quando habituei os olhos à sala e dei uma vista de olhos pelas mesas, comecei a arrepender-me de o ter deixado entrar primeiro. Nada que possa ser considerado indelicadeza; o facto é que eu tinha mesmo pressa e ele parecia-me um sujeito reformado, pacato e cheio de tempo ali a ocupar a mesa que tinha sobrado para um de nós. Durante uns momentos em que hesito - saio, não saio - fico a olhar para a mesa invejada. Quando ele levantou os olhos do papel rabiscado que passa por ementa, viu-me. E chamou-me com um gesto da mão.

Lá fui eu até à mesa, já aborrecido por ir perder o meu tempo. Mas, afinal, ele não fez mais do que convidar-me para almoçar. Em resposta às suas insistências, não mais que murmuradas, acabei por sentar-me à sua frente.

Que vai ser? - perguntou o empregado de mesa. Esperei que ele murmurasse: - Bacalhau, por favor! e água - para eu pedir - Tripas! e vinho -, claro, em voz alta. Ainda atirei: - Rápido! Com gás? - perguntou o empregado ao meu companheiro de mesa, que se riu levemente quando eu levantei a voz para dizer: - Agora têm gás na canalização ?

Enquanto esperava, pus-me a conversar. A conversar nem é bem o termo. Eu comecei a falar da vida, das ruas , do trânsito, do tempo, de futebol, ... enquanto ele me ouvia pacientemente e com atenção. Com tal ouvinte até me esqueci da pressa que tinha e continuei a falar ao mesmo tempo que comia. De vez em quando, ria-me das minhas próprias graças com a boca cheia, para que ele soubesse que era para rir. E ele sorria. Eu nem precisava de mais. Sentia-me bem.

A única vez que ele falou, na sua voz sumida, disse: Passe-me o sal! Eu bem o ouvi e logo lhe passei o sal, sem deixar de falar um só momento. Entre as coisas que disse, também pedi a conta e exclamei: à moda do porto? E, sem parar, passei para a politica. Aí foi um tal falar dos gajos de Lisboa e da pouca vergonha dos políticos, dos tachos, das reformas à nascença, dos filhos da ... Acabei a falar no Santana que era o indigitado do momento e andava a formar governo. Não podia faltar! Ainda a conta não tinha chegado e já eu estava a mandar bocas sobre aquela ideia de um ministério da economia no porto. E ri-me a bom rir. Quase me entalava com as minhas piadas. Para finalizar, ouvi-me a dizer: Tinha piada!

Você acha? - atreveu-se ele a perguntar. Então não acho! - respondi eu. O que é preciso é uma economia à moda do porto! Já estávamos à porta da tasca.

Um Mercedes encostou-se ao passeio. O condutor fardado saiu e veio abrir a porta mesmo ao meu lado: "Faz favor, senhor ministro!"
Ainda ouvi um murmúrio de boa tarde, antes de ficar sozinho na berma da rua.

[o aveiro; 15/07/2004]

a uma sombra

(...)
À volta da tua cabeça até o pó tapar os teus ouvidos,
A hora de provares essa aragem salgada
E escutares às esquinas ainda não chegou:
Dor que baste tiveste antes de morrer -
Parte! Parte! No túmulo estarás mais seguro.

[Yeats,
J. Agostinho Baptista]

os lados

o lado esquerdo de quem olha.

O abandono da poesia

Olha para mim! - disse ela, como se não falasse para mim. Até porque eu olhava para ela fixamente sem poder desviar o olhar.
No momento, eu não disse coisa alguma.
Então ela cuspiu uma frase assassina que me atingiu em cheio num ouvido. Não aguentei e disse: Porra! Ainda fico surdo.
Ela deu meia volta sobre si mesma e sussurrou-me um murro que, passados quinze anos, ainda me dói nas mudanças de tempo. Perdi-a nesse intante em que aceitei o murro como quem aceita um ponto final numa frase mal escrita e não acabada.
Foi ela mesma quem me disse que me dedicasse a outra coisa. Não usa moços de recados para o trabalho sujo.

Uns anos mais tarde, como se dobrássemos uma esquina, cruzámo-nos ao dobrar uma página do livro que eu tentava escrever contra o tédio.
Recomendo-te o descanso eterno! - foi o que ela me disse então. Lembro-me agora da nítida frase. E começo a arrepender-me de não ter seguido à risca o seu conselho. Também me lembro de lhe ter prometido que escreveria um pedido de resignação ou demissão, ao que ela respondeu secamente - Acho bem! Ao menos isso! - enquanto se afastava para a página anterior aonde eu teria vergonha de voltar, como muito bem ela sabia. Foi assim que eu soube que ela não queria mesmo voltar a ver-me.

Depois disso, ainda lhe telefonei, sabendo que telefonava para o meu passado. Em vão.