a coisa


Podes olhar e ver um espelho simplesmente um espelho decorado a ferro forjado ou ver uma janela que pode abrir-se ou a geometria da decoração em ferro forjado ou a transformação geométrica da árvore em imagem ao espelho ou imaginar e ver a forja a face tisnada do ferreiro o martelo nas mãos calejadas do ferreiro as faíscas saltando da bigorna a labareda como um sopro do carvão incendiado o ferro vermelho contorcendo-se de dor de queimado e torturado ou como uma cobra apanhada e depois sempre presa mergulhada na celha ou no ribeiro que ali passa para que se torne rígida a forma temperada na forma de uma encomenda desenhada por uma tradição vista num risco de pais para filhos ferreiros todos ou podes concentrar-te no vidro e do fogo que consumiu a areia até ser vidro e espelho. Podes ver o que quiseres. Assim o queiras ver.

quarta de cinzas

Há 70334 novos desempregados - escreve-se nos jornais destes dias, apesar de Janeiro ter sido simultaneamente o mês de mais oferta (8821) e mais colocações (4219). As empresas aproveitaram os fins dos contratos a prazo para os não renovarem. O exército de desempregados conta agora com quase meio milhão de portugueses (447966). E é no norte do país que o contingente de desempregados é maior.

A este respeito, os partidos que se têm revezado na governação fazem declarações de carnaval a roçar o obsceno. Para além das almofadas do emprego no sector público, os dirigentes políticos cansam-se em acusações mútuas sobre as políticas que cada um deles seguiu. De tal modo se cansam nisto que parecem cegos na realidade. A realidade que importa considerar está nas pessoas e famílias de pessoas em busca de solução para o dia a dia difícil e intolerável e não em abstractas considerações estatísticas de mais ou menos pontos percentuais. Todos os dias, dia a dia, os desempregados são pessoas que buscam uma oportunidade de trabalho produtivo pelo qual recebam salário que viabilize a vida familiar e dê curso a uma vida produtiva, socialmente útil.

O discurso directo de cada um não pode ser ensopado em caldo de estatísticas que se usam como espadas de brincar nas mãos dos foliões dos governos. Não há optimismo que subsista no mundo de cada desempregado se o seu mundo se mantiver em derrocada. E não há pessimismo que nos salve se o pessimismo sobre as políticas do aparente inimigo esconder o que ontem fizeram e querem voltar a fazer no poder a que anseiam voltar. Sem nada fazer para devolver à sociedade a vida produtiva de cada produtor e consumidor.

A época também revelou que das nossas empresas, registadas como tal, há 71882 que empregam ninguém. Máscaras? A maioria destas empresas não representa iniciativas familiares de auto-emprego a confiar na sua classificação por sectores de actividade. Empresas de nada e de ninguém? Ou é a sua força produtiva que mantém a lucrativa indústria de recibos verdes?

Carnaval? Quarta de cinzas..

[o aveiro; 27/02/2009]

o espelho

amanhã e depois de amanhã ainda lá estará o espelho



mas não ficará lá para sempre assim tão velho
como a árvore que nele se reflecte

os anjos de barro

os anjos de barro estão mais que mortos.

todos sabemos que foram amassados
carinhosamente e depois com crueldade
moldados em forma de anjos

antes de serem cozidos em forno ou inferno

como queiram.

raia de steiner



animamos um "lugar geométrico" ou dois.... para nos darmos uma curva ou duas onde se ajustem e descansem os nossos pontos pequenos como olhos e as nossas rectas como trágicas varas

as perguntas e as respostas

Caminho pelas manhãs dos dias, respondendo a cumprimentos vagos. Habitualmente. Mas agora, cada vez mais frequentemente, as pessoas que me conhecem acrescentam perguntas do tipo: Ainda está no activo? Ainda não se reformou? Porque é que tira o chapéu com este frio? Hoje assim aconteceu. Nunca sei muito bem o que responder. Mas respondo mais ou menos maquinalmente, porque todas as perguntas têm resposta. Não posso responder que não sei, mas também não posso responder que sei. Respondo que sim, que estou activo, que ainda não me reformei, que tiro o feio chapéu num gesto automático de cumprimento. Outras perguntas mais raras: Então a avaliação? Ainda vai querer ser avaliado? Para quê? Anda sempre a contestar políticas e leis e ainda vai cumprir a lei feita por um governo de que discorda e não elegeu? Podia responder: Sei lá. De facto, a minha vida democrática é feita de desacordo com os partidos de governo e com muitas das leis que são promulgadas. E, sem deixar de as discutir, cumpro as leis da minha república. Da república das bananas? acrescentam. Parece, mas não é. E eu, que só respondo pela minha cabeça em vias de reforma, digo que discuto as leis e as respeito quando aprovadas pela maioria dos eleitos. Se assim não fosse, não podia esperar dos outros que cumprissem as leis que, em minha opinião, são boas. E teria de achar que vivíamos numa república de bananas, onde cada intenção de grupo vale como lei ou mais que a lei. E nada vale, valendo tudo de igual modo. Por isso, vou cumprindo as leis desta república sem qualquer desejo de voltar ao tempo em que as leis do governo não passavam pelo crivo do parlamento, da presidência, do acordo constitucional, dos tribunais, das eleições. Está bem. mas para o seu caso, o governo já abriu excepção em lei. Pois, abriu excepção, mas não me retira o direito de ser igual aos outros que cumprem a lei geral. Já antes isso me aconteceu. Abriram excepções para os presidentes dos conselhos executivos e eu, presidente do conselho executivo, recusei ser tratado de forma diferente dos meus colegas de profissão que continuavam a ser avaliados com as regras da altura. Que me podem perguntar a seguir? Vai ganhar mais? Não. Então para que é que isso lhe serve? Para ser o mesmo. Isso não é grande coisa. Pois não. Mas sou eu. Diferente de todos os outro? Diferente, claro. Mas mais igual, me parece. E depois? Sei lá. As respostas não são boas? E as perguntas?

[o aveiro; 13/02/2009]

baile


uma e outra camada de negro veste o verso: na esperança que por uma fenda negra ensaia um passo de dança quando eu não sei dar conta do que tenho entre mãos e me dá para não chorar um pincel varre as lágrimas para debaixo do tapete negro e as esconder dos olhos.

vouga


naquele dia o vouga saltara do seu leito e trabalhava por ali perto animando os sapos a parecerem príncipes não vá aparecer a donzela que nos quebre o feitiço

memória e procura

Arrumamos a nossa vida em pequenos cubículos. Uma parte da minha vida passa-se entre papéis poisados em estantes. As estantes são sólidas e a maior parte dos livros aparecem poisados em lugares que não são disputados por outros papéis. Mas a maior parte dos papéis parecem ter sido despejados a esmo por cima de outros e a desordem que nos dão a ver não é aparente. A família diz que aquele lugar e outros dos meus lugares só merecem uma classificação na porta ou na lombada: DIVERSOS. Para toda a gente, a desordem. Para mim, a ordem. Sabia onde se encontrava este ou aquele papel e sabia onde entra o computador e onde se alimenta, onde as mãos cabem e podem esticar os dedos, onde está o papel em branco, onde estão as canetas, onde me posso sentar, como posso escalar até aos papéis do alto.
Mas, recentemente, dei por mim a ter medo de arrumar este ou aquele conjunto de folhas. Ali, naquele mundo ordenado na minha memória passada, passaram a suceder-se jogos de gato e rato. De gatas, procuro o rato que arrumei. Como um gato me vejo pendurado, gestos cautelosos de felino para nada ser mexido e meticulosos exercícios de rememorar os lugares do papel que arrumei antes com tal cuidado que nunca me esquecesse do seu lugar.
No meu mundo, sei agora que arrumar é esconder e perder. E descobri que foi assim no passado. Ao procurar os papéis que preciso hoje sem falta, descubro papéis que devo ter arrumado cuidadosamente no passado e de que nem me lembrava agora. A busca de um papel arrumado ontem é um exercício lento e laborioso hoje, mais lento porque encontro o que já nem existia por não poder ser nomeado por mim, que lhes dera existência.
O mesmo se passa com o que só existe em discos, vários ali perdidos entre os papéis e vários em outros países e paraísos onde memórias minhas ficaram guardadas e de onde podem ser visitadas. Quando procuro isto, aparece-me aquilo. As palavras que eu associo ao perdido não nomeiam o que eu perdi, mas nomeiam, muitas vezes, o que eu esqueci e, por isso, não existe.

Nestas condições, sigo com muito interesse e atenção, a campanha negra. Leio notas de jornal, ouço investigadores e procuradores sobre os rastos do dinheiro, das agendas e das vidas virtuais dos suspeitos. Algumas vezes, pensamos que eles tinham destruído os rastos quando afinal os tinham arrumado para os perderem. Rezo pelo sucesso dos investigadores e procuradores.

Confiarei num procurador para os “diversos” onde a minha vidinha se perdeu? Depende muito da campanha em curso.

[o aveiro; 7/02/2009]

o primeiro ciclo de um relatório

O Ministério da Educação encomendou um estudo internacional sobre os resultados das medidas de política de valorização do primeiro ciclo do ensino básico. O estudo foi encomendado a uma equipa de 5 especialistas (do Reino Unido que dirigiu, da Irlanda, da Holanda, da Hungria e de Portugal). Trata das medidas tomadas desde 2005 até 2008, que vão desde a reorganização escolar, à avaliação e à formação contínua dos professores do 1º ciclo.

Um prefácio da Chefe da Divisão das Políticas de Educação e Formação da OCDE aparece, aos olhos do público, como um acordo geral dessa organização com as políticas postas em acção. Normalmente, este estudo não levantaria qualquer problema e não passaria pela cabeça a ninguém levantar problemas à credibilidade do prefaciador e dos peritos envolvidos. Mas, no clima que se vive actualmente na educação portuguesa, a primeira reacção dos professores e educadores é questionar a validade da avaliação e das conclusões do estudo. E parte da comunicação social acrescenta desconfiança à desconfiança instalada, pressionando professores e outros responsáveis a fazer considerações sobre um texto que ainda não puderam ler. As declarações são muitas vezes feitas sobre as citações dos jornalistas que, apesar de serem o contexto das intervenções, desaparecem das notícias.

Na comunicação social generalista sobra um conjunto de ideias vagas que criam o clima encomendado e que vende. Raramente, estas notícias podem ser refeitas ou retomadas em reflexões publicadas pelos mesmos órgãos e que, por seu intermédio, integrem uma opinião de massas informadas. A encomendas de estudo pelo governo respondem encomendas dos interesses instalados noutro lugar de poder que visam contrariar o optimismo dos estudos do governo.

Nestas condições só nos resta apelar à leitura (crítica, claro) do relatório pelo público. E deixar claro que é natural um relatório desta natureza falar de aspectos positivos. Que diabo! bastará lembrarmos o que todos conhecemos e que sempre constaram das reclamações de professores e pais sobre o estado das instalações e equipamentos escolares, fracos e inexistentes sistemas de apoio e formação ou as condições de trabalho e estudo dos professores, crianças e jovens. O interesse do governo e as realizações não podem piorar o pior. Há muitas melhorias que devem ser saudadas com optimismo.

Não deixemos de criticar o aproveitamento político que pode resvalar para danças de melhores resultados escolares ou de proficiência de professores, que não podemos considerar estáveis e consequência desta ou aquela medida que pode mesmo ter sido vítima de realizações locais medíocres. Nem deixemos de ler o relatório que precisamos de ler, mesmo que seja para criticar e para... exigir mais.

[o aveiro;30/01/2009]

desenho, logo existo

o que se vê do alto

QUAD

Em textos matemáticos, escrevo muitas vezes “\quad” para forçar um espaço entre duas coisas que quero separadas. Ouço “quad”, por vezes. Já não sei quando foi a primeira vez, mas foi numa pequena sala da Fábrica da Ciência, que ouvi o “quad”. Não sei quando começou, mas passei a ouvi-los repetidamente. No fim da semana passada, fui ouvi-los ao “Performas”, depois de ter adormecido brevemente sobre uma viagem a reuniões sobre ensino de Matemática e associativismo profissional e passagem por um encontro de professores em Torres Novas.
Acordo para me forçar a um espaço entre afazeres que quero separar. Que interesse tem isto de falar dos intervalos na vida de um professor?

“Quad” é um clássico quarteto de saxofonistas. Três deles conheço-os desde muito jovens. Não, nunca fui professor de qualquer deles. Mas acompanham-me a vida de professor e são uma parte da vida da minha esperança na educação. Simultaneamente alunos da escola generalista e do Conservatório de Música, servem-me de modelo quando me ponho a pensar sobre ensino e educação, sobre escolas, sobre cultura e seus públicos. Olho para eles e decido-me a favor de umas políticas e contra outras. No mistério das suas vidas de pessoas que realizaram, com êxito, a sua formação geral, humanista e científica, e, com maior êxito ainda, se tornaram instrumentistas. De quantas horas diárias de treino precisa um atleta ou um instrumentista até estar capaz de ler, interpretar e executar um exercício complexo, sem falhas em frente do público que segue, com todos os sentidos alerta, a execução? De que professores e treinadores precisam os instrumentistas?

“Quad” é um moderno quarteto de saxofonistas. Quantas horas mais, quanta força mais, precisam os músicos (ou os actores) para compreender o seu tempo e forçar, pelas suas escolhas, a divulgação das obras que são novas e só habitam o espaço popular por obra de mãos magníficas que não ficaram paralisadas na teia de argumentos da aranha industrial do entretenimento, essa que vende sabores alisados sobre verdetes consagrados. A cultura musical é obra de cada nesga de tempo e ouço-os - Quad - também na escolha do estilo de vida difícil de educar públicos, criar públicos de novo e puro prazer. Sem sugá-los, nem segurá-los, antes soltá-los livres para o seu tempo. Alunos das escolas, colegas e professores uns dos outros como instrumentistas cultos, eles constroem-se como exemplo.

Como podem as comunidades conhecer e proteger os seus Conservatórios? E os “Quad”?

[o aveiro;23/01/2009]

o que se vê do alto

A escola e a escala do optimismo

Perguntaram-me recentemente se gostava de crianças. Respondi que obviamente um professor só pode gostar de crianças. Na vida profissional, acompanhei crianças diferentes umas das outras: sossegadas e traquinas, curiosas e desinteressadas, activas e passivas, pobres e ricas, ... A minha única lição de vida é que elas lutam por aprender o que lhes interessa e lhes parece vital e recusam aprender o que não lhes interessa ou que não lhes parece de utilidade alguma, sabendo que a escola é um mundo de transmissão de conhecimentos e construção de competências, em grande parte, estranhas às crianças. A grande luta é, pois, ganhar a sociedade toda para o interesse e a importância do saber escolar, para oportunidade e adequação das escolhas curriculares. Se é preciso e importante, aprende-se. Aprende-se com esforço e interesse. Se as famílias e a sociedade não sentem ou não sabem que a escola é um importante sistema de criação de riqueza, as crianças não aparecem motivadas para o esforço escolar.
Nesta semana, o exemplo de um jogador de futebol aparece mais uma vez como um contra-exemplo sobre a necessidade da escola normal. Só que um jogador de futebol não representa o futuro da população.
É, por isso, que aqui relembro o interesse de tornar claro para a população o significado da escola. No Público de 3ª feira, Desidério Murcho chama a atenção para os dados de um inquérito do INE realizado em 2003 e esses sim é que interessam: na mesma faixa etária dos 30 anos, quem tivesse concluído o secundário, sem ter uma licenciatura ganhava 400 euros menos que os portadores de uma licenciatura; e isso aumentava com a idade, sendo que aos 50 anos um licenciado ganhava em média 2000 euros mensalmente, para perto de 1000 euros se tivesse só secundário e não mais de 800 se tivesse só 9º ano. Estes são os dados que interessam à maioria dos comuns mortais. Desidério Murcho tira daí razões graves para admitir que os poderes estão a favorecer os jovens mais perto do sistema escolar por origem familiar em detrimento dos pobres e desfavorecidos que, se perceberem o interesse da escola, podem aprender e ser mais empreendedores, mais diligentes e mais competentes, caso percebam a vantagem, também económica, que a escola dá.
Os pais das crianças querem o melhor para elas. É preciso tornar clara a vantagem da escola para a sociedade toda e para que a competição entre competências seja justa. Melhor para cada pessoa comum, melhor para a sociedade. Nas sociedades em desenvolvimento, precisamos de todos e de cada um no seu melhor. As habilidades e as vantagens do berço não são uma benção para o país.

[o aveiro; 16/01/2009]

desenho, logo existo



desenho o copo do fel que ferve

os anjinhos e o anjo papudo

O nosso anjo mais sisudo está sentado no banco central. Nós olhamos para ele e sabemos que ali acontece o milagre. Não há melhor que ele no jogo do sério: mesmo nos momentos mais hilariantes, para o seu ponto de vista de rico menino, ele não se desmancha. Para o jogo do sério, ele é o ídolo popular. Nem as cócegas na consciência, que a miséria do povo é, o tiram do sério.

Quando ele se arma em nosso anjo da guarda e desata as contas do nosso rosário de tudo querermos para tudo perdermos, eu rendo-me e saio para a rua pregando a má velha e a boa nova:
“Pedintes, pobres de pedir, pobres de espírito, verdadeiros pobres, só pobres, pobres no desemprego e no emprego, pobres sem abrigo, pobres ao abrigo da caridade alheia, escutem a voz da razão, do deve e do haver. Concentrem-se em frente das televisões, aguardem a sua chegada e, repetindo em voz baixa as sensatas palavras e os piedosos conselhos do nosso anjo mais papudo, afastem para todo o sempre e para bem longe de vós toda a ganância, toda a inveja, toda a luxúria, toda a arrogância e toda a preguiça. Trabalhem mesmo que a fome aperte, mesmo que não recebam tostão, mesmo que reconheçam a mão que vos rouba, mesmo que a vossa vida fuja com outro. Sede ao menos uma vez sinceros e reconhecei que o anjo sisudo merece cada um dos tostões do seu salário, por seu sábio acompanhamento cego seguido de salvação do esquema de fraude geral até este patamar de crise global, soma esquecida das suas parcelas locais, a acabar no conselho avisado: invista-se tudo em ajuda aos cotados em bolsa e inventariem-se sacrifícios para os os coitados sem bolsa, de cotão no bolso cheio de côdea nenhuma!”

Habituados a todos os trampolins, os anjos papudos treinam-se para voar, se possível. para lá do fulgor caseiro . A estes anjos não foi a divindade a dar-lhes asas. As asas, que eles usam afiveladas, foram oferecidas por uma geração de peralvilhos, a de todos nós. Eles têm a escola toda e vergonha nenhuma. A sua indiferença foi ensaiada frente aos nossos espelhos de lata e é lata mesmo!
Cegos pelo brilho do sol na lata, louvamos os anjos que nos anunciam os seus termos e condições. E damos graças por arder no lume brando português.

[o aveiro; 08/01/2009]

sobre imaginar a vida

Uma vez por ano, um amigo traz uma garrafa de vinho e nozes colhidas em nogueiras de um lugar dele que eu não conheço. Em tempos, falei com ele sobre a luz coada pelas nogueiras, coisas da imaginação que acabei por nunca ver e por isso ainda é luz de um momento mágico.

Pelo meu lado, em cada ano, ofereço-lhe um livro que gosto de ver, mas não posso guardar. Este ano comprei um liivro enorme que não cabe em minha casa. Guardei o livro no carro, onde vou vê-lo às escondidas da minha família. Tomo todo o cuidado quando vou visitar o meu livro. Saio de carro e páro num lugar deserto. Tiro o livro do porta bagagens e deixo passar horas folheando o livro no banco de trás.
Se alguém espreitasse a minha leitura, estaria a oferecer um livro em segunda mão e isso nunca poderia aceitar.

há moelas?

O homem entra, batendo a porta. Senta-se a uma mesa, perto da porta. Sobre o silêncio que se instalou à sua entrada, ouve-se a voz forte do homem:
Já há moelas de coelho?
Ninguém responde. Passado o tempo preciso para nada ser resposta, em voz baixa, a todos, a dona do café diz:
Rua!

Saímos todos.

se pudermos apontar o dedo, podemos contar

Leio as notícias de Gaza. Contam-se os rockets, contam-se os bombardeiros, contam-se as casas abatidas, contam-se as vítimas. Perdi a conta aos assassinos? Ou não sei quem são? Talvez nem haja assassinos para contar. Ou talvez sejam incontáveis.

Se pudermos apontar a dedo, podemos contar.

shministim - do ano velho, por um ano novo

Em Israel, jovens com pouco menos de 20 anos são condenados a penas de prisão por se recusarem, enquanto objectores de consciência, a cumprir o serviço militar obrigatório.



A associação pacifista americana "Jewish Voice for Peace", que defende, entre outras causas, o entendimento pacífico entre judeus e árabes em Israel e na Palestina, está neste momento a dinamizar uma campanha de sensibilização mundial em que pede às autoridades israelitas a libertação de todos esses jovens shministim.

O site é o seguinte: http://december18th.org/

18 de Dezembro não foi o fim do processo, mas sim o início. Visitem e, se estiverem de acordo, assinem e divulguem a petição.



copiado da disciplina das argolas

Os shministim - importante não esquecer nunca e especialmente em dias destes

a fotografia

Ainda a família dorme, o homem sai. Entra no carro. Sentado ao volante, não sabe para onde ir. Devagar, o carro segue pela rua do bairro. Há um buraco mesmo no meio da rua. Embora hoje não o possa ver na rua inundada pelas chuvas da noite, ele sabe exactamente onde está o buraco. Hesita ao chegar e pára o carro na rua deserta. Se tivesse trazido a máquina, tirava agora a sua última fotografia.

a fúria entrou pela porta da frente

Ela estava a demorar demais o seu pequeno almoço.

A família já tinha saído a tomar ar e esperava à porta da rua. Nem podiam voltar atrás e entrar em casa, nem podiam partir. De facto, eles não tinham a chave da casa para entrar nem a do carro para partir. Começaram por entreter-se a conversar, mas, a partir de certa altura, cada um dedicou o tempo às suas coisinhas: o pai de todos foi até à esquina comprar tabaco e recomeçou a fumar depois de 5 anos livres de fumo, o rapaz agarrou-se ao compêndio de matemática e a canivete começou a esculpir o corpo da namorada de quem tinha saudades demais até que a matemática ganhou a forma que ele queria que ela tivesse sempre, as duas gémeas começaram uma disputa sem tréguas sobre qualquer coisa que já nem ao diabo lembra. A primeira rajada de vento dispersou-os.

Quando ela desceu finalmente e, sorridente, abriu a porta da rua, não viu a família assim ao primeiro olhar. Aliás não viu viv'alma. Olhou para o relógio e chamou. Nada de volta. É tarde, estamos atrasados não é altura para brincadeiras! Nem um som.Esperou mais um pouco. Depois, deu meia volta e entrou em casa pela porta da frente. Furiosa. Ninguém a esperava tão cedo.

aos meus relatórios ajuda-os deus; a mim não

Quando escrevia relatórios é que deus me aparecia:
olhava-me cheio de compaixão e eu insistia em largas frases judiciosas, porque ele ouvira falar sobre a bondade dos relatórios longos em que umas palavras mais sinceras e desagradáveis amaciavam outras que me davam um ar amigável de conselheiro.

Nunca deus me apareceu para a poesia:
deixou-me sempre sozinho e, por isso, nunca escrevi mais que dois versos cheios de nada, de palavras que procuram outras palavras incapazes todas para desenhar a face da divindade da vida humana.

as famílias adoptam velhinhos já velhos feitos?

Ia a passar quando ouvi a conversa: "O que nos fazia falta agora era um velho que quisesse ser adoptado como avô ou bisavô". Virei-me para a família que ali conversava, as mulheres arrumando a tralha do picnic, um rapaz arrastando o saco das sobras e o lixo dos embrulhos para o contentor-lixeira, duas crianças esfarelando entre os dedos um pão para os peixes e os patos do canal da ria ali ao lado. E sentei-me abandonado com os olhos tristes de velho fixos no conjunto da cena familiar. Uma das mulheres da família, pareceu-me a mais velha, veio até ao meu banco e perguntou-me: "Há quanto tempo está aqui? tem ouvido as nossas conversas?" E eu respondi: "Sempre por aqui estive, desde há muitos anos pelo menos, mas ninguém deu por mim até hoje". "O que espera aqui sentado?" perguntou a mulher. "Ser adoptado" - disse, sem grande entusiasmo. "Porquê?" "Não sei, nem gosto muito de crianças nem gosto de famílias grandes e só estas podem adoptar velhos como eu". "Tem sentido" - disse a mulher. E continuou: "Eu também me sentia assim, até ter sido adoptada por esta família, tão grande que nem dão pela minha falta quando falto, nem dão pela minha presença quando estou presente. E nem tive o trabalho de constituir família. Talvez o adoptem. Começo a gostar de si."

Quando os vi prontos a partir, fui ocupar um lugar que me pareceu vazio num dos automóveis da família. Tratam-me bem, de forma tão familiar que eu, sem pensar em morrer, sinto-me incapaz de viver ali porque não há quem goste de mim verdadeiramente. Só tenho uma certeza: vão chorar quando os deixar na minha primeira e última emergência médica.

as duas pastas

Trago sempre duas pastas dentífricas dentro da pasta onde guardo também alguma roupa interior e lenços de assoar. Nunca me foram úteis a...