fim a gosto

lembro-me do tempo em que o mês de agosto aquecia ao rubro as pedras e a areia e eu cortava a respiração sem desfitar as lagartixas até elas desistirem da cauda entre os meus dedos
e isso foi antes de eu brincar ao jogo do sério


lembro-me também de haver assuntos que precisavam de tanto tempo para serem estudados que eu nunca estudava por não ter tanto tempo assim ou era o calor de agosto a entorpecer-me a vontade
e isso foi antes de eu brincar ao jogo da velhice

agora eu passo o mês de agosto a cansar-me numa banheira de água salgada na esperança de caminhar normalmente o resto do ano e não haver quem dê por ela até que mesmo eu pense que não há problema e tudo está bem
sabendo que tudo está bem quando acaba em bem

e isso é agora em que quem está a acabar sou eu :-)

o que diz que não ...

o homem que não diz que não não é o homem que diz que sim.

ouvir sempre?

mesmo quando deixam de falar comigo
e deixo eu de falar, continuo a ouvir

o que fiz de mim para ser esta algazarra dentro da minha cabeça?

do terceiro livro

(...)
6.

Senhor, dá a cada um a sua própria morte.
Morrer que venha dessa vida
Durante a qual amou, sentido encontrou, teve má sorte.

(...)

Rilke (Teresa Furtado), O livro da pobreza e da morte, em O livro de horas. Teofanias. Assírio e Alvim

somos nós

6)

Somos nós. A arrogância da fala como a lâmina que nos faltava para rasgar um véu, um nevoeiro, uma manta de chuva de verão sobre os olhos cansados. Somos nós, um dedo no ar para nos dar lugar a fazer uma pergunta por fazer, a pergunta nunca feita. Somos nós o dedo no ar que ninguém vê porque nós falamos dele para sermos ouvidos, para declarar que há sempre uma pergunta a que ninguém responde e há sempre uma pergunta por fazer. Não sabemos pronunciar essa pergunta. E é só por isso que não sabemos as palavras da resposta.

Somos também nós os que se calam.

somos nós

5)

Somos nós as férias de nós, a arrogância maior de nos vermos cansados de tudo e ao mesmo tempo capazes da arrogância de pensar que nos podemos retemperar até nos podermos ver com outros olhos, uns aos outros, um mês mais adiante. Somos nós quando adormecemos sobre os problemas que queremos resolver ou quando adormecemos para nos esquecer do que nos aflige agora na arrogância maior de jurarmos que o tempo cura como um esquecimento sem dor alguma. Somos nós na arrogância da absolvição dos nossos pecados quando os citamos em baixa voz para ouvidos cegos e mudos por definição. Só nós nos arrogamos o direito da possibilidade de esquecer a lista que ditamos de cor. A necessidade e a possibilidade são as formas que a nossa natureza assume como a arrogância última e a mais crédula e a mais cruel de todas. A necessidade e a possibilidade são armas de arrogância. A maior arrogância e os actos mais cruéis repousam sobre a necessidade e a possibilidade. E a absolvição dada por nós, uns aos outros.

Somos nós, também somos nós quando falamos disso como se tirássemos férias uns dos outros para nos amarmos mais adiante, para amarmos os outros como a nós mesmos, depois das feridas abertas por combates desgastantes e imorais, depois das cicatrizes fechadas por uma biologia animal, por uma oficina de pequenos concertos e uma indústria de cola tudo. Somos nós quando voltamos ao princípio e somos nós quando nos aproximamos do fim e somos nós quando remediamos, quando recomeçamos no meio de tudo como se acabássemos de nascer uns para os outros e virgens disponíveis para sermos aprendizes da vida, a mesma que maldizemos tantas vezes. Também somos nós.

somos nós

4)

Somos nós sentados nas varandas altas vendo todos os outros como formigas laboriosas lá em baixo. Com as mãos firmadas na balaustrada, somos nós, de pé sobre as duas patas traseiras que imaginamos todos os outros incapazes, como formigas de um destino curto ou de uma determinação menor que não é a sua, de cada formiga que não sabe mais que o seu lugar na fila do carreiro para um formigueiro sem emoções. Somos nós quando falamos de nós como um formigueiro de emoções. Somos nós capazes de chorar e de rir de si, por si e para si, como se nenhum outro ser houvesse capaz da tragédia e da comédia. Somos nós capazes de imitar todos os outros seres e de pensar conhecê-los, de os classificar e nomear como se eles não passassem de nomeações, isso mesmo, nomes de coisas. Somos nós, equilibrados sobre as duas patas como se isso nos tornasse outros, únicos e capazes de toda a criação e de toda a compreensão sobre coisas e criaturas, capazes de escrever as escrituras com as mãos livres para a acção inteligente, mesmo se vã. Somos nós. A arrogância de ser o criador, os criadores.

Também somos nós, arrogantes construtores das escolas que nos treinam para seguir a formiga que vai à nossa frente, quando descobrirmos o argumento que segue o argumento escrito pelo que vai à nossa frente e nos deixa o seu património como deixa as suas caganitas a marcar o caminho, o carreiro nos tempos mais escuros. Também somos nós os que sabem treinar os que nos seguem sendo nós, apesar disso ser o contrário da arrogância original e da individualidade felina, feroz, escandalosamente animal, escandalosa por ser humana.

somos nós

3)

Somos nós quando interpretamos o cheiro do mar e só nós contamos os cheiros, um depois do outro, distintos como agulhas de pinheiro caindo do ar a pique sobre as narinas abertas e ao mesmo tempo fechadas para tudo o resto, para todos os restos, para os restantes há quem diga cheiros que o não são. Haverá cheiros que o não são? Os nossos cheiros constituem-se na nossa arrogância. O que cheira bem é a nossa arrogância a dizê-lo. O que cheira mal é a a nossa arrogância a declará-lo. O que não é cheiro que se cheire é a nossa natureza a nomear uma estranheza, é a nossa arrogância a fechar uma fronteira, a levantar um muro intransponível. Somos nós a não querer cheirar, a não querer meter o nariz onde não fomos chamados.

Somos nós quando nos interrogamos sobre os cheiros que o não são e cheiramos as escondidas dos cheiros que o não são, de que ninguém fala, que ninguém quer cheirar, que ninguém cheira para todos os efeitos. Somos nós quando abrimos o laboratório para fabricar cheiros que ninguém quer cheirar. Somos nós quando somos curiosos até para o que nos ofende o olfacto. Também somos nós.

somos nós

2)

Somos nós quando ordenamos o nosso mundo em gestos que o representam. Quando aprendemos os gestos que ordenam a nossa compreensão e ensinamos uma forma de ver e de olhar, ou uma forma de dar a ver ou dar ao nosso olhar. Os nossos que são nós olham as coisas como se o fizessem pelos nossos olhos procurando uma visão igual à que espalhámos como nossa. A nossa visão do mundo é a nossa arrogância, a nossa natureza, a natureza que nos separa dos outros.

E somos nós quando olhamos alguma coisa, algum objecto estranho, como visão de outro mundo e nos atrai olhar para ele. E nos arrojamos ao desejo de subjugar a visão a outra visão mais global, como um novo continente que pode ser nosso por mergulharmos nele e sermos parte dele. O nosso olhar multifacetado a reconhecer na cabeça do insecto humano mais olhos que corpo, mais visão que mão, mais visão que linguagem, mais visão que uma unidade feita dos pequenos reconhecimentos no nosso território de conhecimentos em redor, em redil.

somos nós

1)

Somos nós quando aprendemos a balbuciar e somos nós quando imaginamos a nossa fala e imaginamos o nosso pensamento único ou superior quando não entendemos a linguagem dos outros e presumimos que lhes foi retirada a linguagem porque não têm pensamento que se exprima por palavras que entendamos. Não há pensamento sem linguagem inteligível para nós ou por nós. Nós temos o dom da nossa fala. A nossa fala somos nós e a nossa arrogância. A nossa fala é a nossa primeira natureza.

E somos nós quando nos arrogamos à coragem de aceitar outras linguagens e a derrota de as estudarmos até nos parecer que os outros, antes separados de nós, são agora como nós, diferentes nós. Também.



(...)

somos nós

0)

Nós damo-nos muita importância. A nossa arrogância é a nossa natureza , não é a nossa segunda natureza. A nossa arrogância somos nós, separados de todos os outros, para sermos e sentirmos a nossa diferença dos que nos parecem iguais.

E somos nós quando nos arrogamos à coragem de aceitar a derrota e sermos os outros numa comunidade de comuns, na comunhão pública de ideias e gostos, nos restos que escorrem do cadinho da fusão. Somos nós, sem rota, derrotados somos nós. Também.


(...)

silogismo?

Desde o princípio dos tempos, Deus tudo escolheu para nós, até as nossas gravatas.


[E.M. Cioran, Silogismos da amargura. Letra livre, Lisboa: 2009]
oferta de JCSoares

Zurbarán

(...)
Pensativa substância, a pintura
paralisa de luz a arquitectura.
(...)
A sala inteira silenciosa reza
uma oração que exalta uma certeza.
(...)
Nunca a linha vestiu peso mais grosso
nem a alma pano vivo em carne e osso.
(...)
Gira em tua eternidade a disciplina
de uma circunferência cristalina.


(A la pintura. Rafael Alberti. José Bento)

mundo com pernas

manuel tem dificuldade em acompanhar o mundo com pernas para andar. sempre gostou de andar de gatas, porque gosta do amarelo dos olhos dos gatos e das garras afiadas que sempre estiveram nas patas felpudas que o acariciam ronronando promessas. mas o mundo? só percebe o mundo sem pernas, não imagina o mundo com pernas nem sabe o que poderá ser o mundo de pernas para o ar. o manuel tem dificuldade em olhar a simplicidade sem garras e patas felpudas que escondam as garras da intimidade que um mundo com pernas para andar torna difícil demais. para o manuel há um nível de dificuldade inadmissível e um nível de simplicidade admissível. apontou no seu caderno de notas ou de noites de andar às gatas e sabe que, para ele, não há coisa alguma. o que não está referido no seu caderno de notas não existe, simplesmente não é. foi a mãe quem lhe disse isso mesmo e a mãe deu-lhe o primeiro gato para que ele pudesse acreditar em tudo o que ela soubesse balbuciar. mundo com pernas para andar? nah.

todos os dias

vejo-a na sombra.

um sorriso em contra-luz
fora de uma porta aberta ao sol

nem eu sei como a encontro
que eu não vejo mais que uma sombra
que assoma e desaparece
na mancha de uma sombra maior

a CABEÇa perdida

às três.

ainda me lembro disso. não era nada natural a maneira como ela pegava no gato. arnaldo comentava a antiga atitude de atirar os gatos ao poço. ninguém ligava e continuava toda a gente a beber a água daqueles poços cheios de gatos podres. o menino puxou de duas pequenas pedras bem redondas que trazia no bolso e atirou-as, primeiro uma e depois outra para o poço. viam-se as circunferências concêntricas se repetindo à superfície e lá no fundo dois olhos brilhantes e fixos como estrelas. voltámos as costas a todas as imagens e caminhámos para aqui, onde nada se reflecte. assim concluiu arnaldo a sua narração sombria. todos se calaram.

eunice desaparecera já há um bocado. voltou depois com arnaldo pela mão. este tinha perdido a cabeça. e tropeçava em todos os móveis. eunice, ao passar pela mesa do conde, poisou a cabeça perdida do arnaldo e disse: tem nome, chama-se arnaldo e não dá por outro nome. não te esqueças. o conde disse: eu sei.

desenho, logo existe




como um pesadelo

a CABEÇa perdida

ás duas.

afinal quem é você? - perguntou eunice. eu era camponês em abravezes, mas perdi as terras. disseram-me que iam construir uma escola na terra que eu tinha passado a vida a estrumar. fiquei marcado para o resto da vida. quer ver? mesmo aqui ao lado do mamilo direito. está a ver? - arnaldo sem parar - abandonei tudo e vim enriquecer para a cidade dos prazeres. eunice teve tempo de dizer qualquer coisa como fez bem antes de arnaldo continuar a sua história. agora já não acredito em nada. antes de vir para a cidade ainda acreditava em alguma coisa - peregrinei por santuários, escrevi versos a nossa senhora e estive até em frente de um rio que de mim corria, decidido a afogar a minha alma para que ela não perdesse a fé. tudo iso se passou em rio de moínhos quando eu caiava as paredes em grossas gotas. acrditava nas pessoas? - atreveu-se eunice a perguntar. arnaldo, sem parecer ouvi-la, continuou: eu não acredito, simplesmente não acredito. para mim as pessoas valem pelo que fazem e eu vejo fazer, pelo que dizem quando as ouço dizer, pelo que procuram com o olhar e eu vejo olhar. não sei para que servem os ideais. ser feliz é ter as mãos atadas enquanto contamos a nossa história e ela nos vai desatando, não acha? eu nem sei se a história que contam de mim é aquela que quero ouvir. de qualquer modo, não podem iludir o que contam de mim, que matei a minha família, que não quis lutar para conservar o meu pedaço de terra, que busquei a paz onde ela existia. que mal tem procurar a beleza entre as ruínas da beleza? que mal pode ter roer as unhas depois de ter limpado o esterco dos porcos? toda a vida antes desta vida me deeram ordens sem sentido, como podiam esperar que eu me defendesse e lutasse? ainda não percebi porque é que o meu irmão pegou na forquilha e foi ver as tripas do presidente do município. diga-me, eunice, que beleza podia esperar ele desse gesto? sabem que dizem que ele as lavou, muito bem lavadas, as pôs em vinho e alho e estava a comê-las quando a polícia veio buscar-nos? e eu a pensar que eram do porco da comadre etelvina. devo confessar que ainda agorinha senti o cheirinho desse tempo. para onde eu não quero voltar. você fala demais - disse o homem de bata branca que se aproximava, brandindo o que parecia um bisturi. eunice levantou-se e disse: gostava d eter uma bata branca como a sua. meninos está a acabar o recreio - ouviu-se ao longe. corriam, em fila, como um regato evitando as pedras. passado algum tempo, entrou uma imagem de cera com a cabeça a ardeer e os lavradores e o arnaldo, presentes na acção de fomração, entoaram em coro o hino da lavoura.

a CABEÇa perdida

à uma.

arnaldo virou-se para a mulher e disse: tire os olhos do pato! e não se debruce tanto! a mulher tinha nome e disse-o, em voz demasiado alta: chamo-me eunice de brito e tenho nove anos. arnaldo pendurou o enfado nos olhos e bocejou: aahahaahmanhã vai chooooover mais do que hoooooje. não se sabe porquê, mas o homem que acabara de chegar dirigia-se à mesa ao lado da rainha da prússia, sentou-se ao colo do conde de alenquer e gritou para o garçon que pairava acima das conversas e sempre atento aos desejos dos comensais: traga-me o lagostim mais suado. o garçon não respondeu. então o conde, sem deixar de cofiar o bigoe com a perna da lagosta, endireitou ligeiramente o olhar e, mal alvejou o garçon com os seus olhos aguados e frios, disse secamente: o menino quer lagostim mais suado. o garçon não ligou e abadonou a cena a caminho do hospital em que agoniza a sua amante marquesa de fonte seca que lhe vai deixar o título e uma carta de recomendação para o regente. há-de dizer-lhe com voz moribunda que não houve dias suficientes para pensar nisso antes da febre que a prostrou e que a invenção da bicicleta foi a sua morte. o garçon gritou-lhe para o ouvido: tenho nome, chamo-me alexandre da macedónia e soube hoje que sou seu filho. o médico chamou o cangalheiro e recomendou, em voz baixa, que não aplicasse a cruz no caixão daquela infeliz que tinha dormido com o seu próprio filho. disse o cangalheiro: que mal tem? também eu dormi com os meus filhos até à idade de irem para a a tropa. o médico deu de ombros e foi tratar da menina mercedes que se hospeda em sua casa nos dias feriados, para ser tratada do melhor de tudo. o menino do conde saltou do colo e, depois de beijar a rainha da prússia, correu em direcção à retrete. arnaldo pegou na mão de eunice e perguntou-lhe se ela se importava de tomar conhecimento da sua relação com o conde. disse ela: bem pelo contrário, meu marido é bem atraente e faz-lhe bem mudar de par. arnaldo espantou-se: mas você é de brito, como pode ser de alenquer? ela resmungou: alenquer é a terra do avô do meu marido. ele não sabe onde é, mas eu sei que já lá dormi com um chaufeur russo, de nome miucha. eu conheço-o - lembrou-se arnaldo, - era meu meio-irmão por parte d meu avô. como pode ser? - perguntou eunice, muiot coraada. pode, mas isso já não interessa, ontem matei a minha família toda, não quero mais ouvir falar dela - disse o arnaldo e olhou para o conde. este, absorto, mergulhava os olhos num pequena bacia de água. o menino do conde aproximou-se da bacia de água, pegou nos olhos, limpou-os a um guardanapo cuidadosamente guardou-os no bolso. ouviu: a luz voltou! com o dedo, o conde limpava os buracos dos olhos como quem limpa o nariz.


[o primeiro de três episódios publicados em Decotes, número um, de não sei que ano do século passado]

a tirania

esqueceram-se de ti num lugar perto deles e fingem tomar conta de ti, dia e noite,

tomam conta das tuas memórias até teres só memórias deles, as mais convenientes;
tomam conta das tuas coisas até deixarem de ser tuas ou até deixarem de ser

esqueceram-se de ti até seres uma santa de porcelana prestes a cair da prateleira
do jazigo em que vives tu e eles uma eternidade infantil.

desenho, logo existe



nos 100 anos do piolho

(...)

Não deixes entrar os americanos em casa.  Foi o que ele disse ainda não se tinha sentado na cadeira mesmo à minha frente. Com os cotovelos grudados na mesa onde o meu café tinha começado a tremelicar de medo, ele olhava-me fixamente nos olhos. Quando ele fazia isso para se sentir dono da minha mesa, eu mantinha os olhos ocupados a ler as placas das reuniões dos cursos antigos.

Graças ao meu amigo, que eu nunca tive o prazer de conhecer, decorei uma parede de placas. Não me deixes entrar os americanos em casa   - repetia. Mais baixo, reclamava: O que nós devíamos era correr com eles à bomba!   E voltava a fixar-me nos olhos, depois do elegante gesto de arrumar farripas treinadas para a intimidade reflexiva. Nestas alturas, eu deixava correr o tempo e lia placas, umas atrás de outras.

Uma eternidade de placas depois, ele falava de novo. Sabes se os americanos já chegaram?   ainda dizia antes de, finalmente, dizer o que eu esperava desde o início: Pagas-me o café?   Naquele dia, eu abri a boca e soltei a frase que ele nunca me tinha ouvido: Não tenho dinheiro. Desculpa.   Sem acreditar, levantou-se até chegar ao dobro da minha altura, virou-me as costas e saíu do Piolho para sempre ... o dia seguinte.


(...)

(depoimento pessoal pedido pelo Ciência Hoje - ora viva, Jorge Massada)

por onde eu vou

por onde eu vou vão as formigas
fazendo carreiro
quem sabe o que vai fazer ou para onde vai?
ou as coisas começaram um dia por acaso e daí
para cá cada um segue o da frente confiante
no carreiro.

para onde eu vou correm diligentes formigas

e eu.

os professores

1.
Quando são muitas as perguntas, temos de escolher algumas. Escolhemos aquelas para as quais temos respostas, mesmo sabendo que não temos respostas. Os professores são aqueles que tudo fazem para merecer uma boa pergunta, uma pergunta difícil sobre um aspecto aparentemente livre de todas as dúvidas, uma pergunta elementar.

Quem são os professores? O que fazem os professores que os distingue dos outros profissionais? Quem os emprega como professores, o que espera deles? Pode esperar tudo? Tudo, o que é tudo?

2.
A imensa maioria dos cidadãos já teve algum contacto com algum professor. Aparentemente todos sabem o que é um professor. Cada um sabe o que espera de um professor: alguma coisa entre a pessoa que nos ensinou alguma coisa ou com quem aprendemos o que pensamos não poder ter aprendido sem um professor. Alguém que nos vai esclarecendo o que é preciso saber mesmo de entre a infinidade de coisas com que contactamos por alguma via. Alguém que pode explicar algum detalhe científico, técnico e nos inicia no mundo das coisas que não conhecemos e que nos podem ser úteis agora e mais tarde. Há também quem diga que o professor nos disciplina o saber e a conduta ou que nos educa. Uma ou outra pessoa se lembra do professor que a chumbou ou a passou ou a levou a exame e participou de algum modo na construção de um diploma qualquer a garantir certas competências mais ou menos literárias.


Para a generalidade das pessoas, o professor estudou e deu a estudar, ensinou, aprendeu e deu a aprender, falou da descoberta do mundo que ajuda a descobrir. Claro que há muitos professores sob a designação de professor, mas o seu exercício é sempre reduzido a poucas "marcas".

3.
Pela minha vida de professor, passaram muitos professores, muitos modelos. Sob a minha pele de professor, já me parece que viveram muitos professores todos diferentes, ainda que para os outros apareça como um só professor. O exercício de muitas funções sociais, essas que passaram a viver na vida dos professores como em casa sua, fizeram dos professores outros professores. Do mesmo modo, a experiência de professor que reflecte (e escolhe alternativas ao adaptar-se à realidade em mudança) faz do professor passado um outro professor. O mesmo acontece por via da evolução científica e tecnológica ou por via da evolução das organizações escolares em que desenvolve a sua acção. Ou por via das mudanças nas comunidades educativas seja lá isso o que for.

Sempre que pensamos nas mudanças que sofremos, procuramo-nos no que se manteve invariante. Temos a certeza que há invariantes, não tanto pelo que sentimos, mas mais porque somos reconhecidos como professores quase do mesmo modo que há 20 ou 30 anos.

Agora que nos apoderámos da mudança como de uma forma de estar, agora que nos apoderámos da complexidade da vida que não suspeitávamos antes, procuramos uma invariante simplicidade de processos que afinal são os que nos definem quando nada parece ser o que era definitivo. O que é?

4.
O que é que persiste tanto no educador de infância, como no professor especialista disciplinarmente ou tecnicamente falando, do ensino básico, secundário ou superior? O que é que persiste apesar de todas as formações iniciais terem mudado? O que é que persistirá? Novos professores vão aparecer com formações completamente diferentes. Alguma coisa terão em comum com os professores que, com pontos de partida completamente diferentes, foram sofrendo adaptações, adequações, reconversões. O quê em comum? O que é que persiste nas mudanças?

5.
As organizações têm tendência para atribuir ao professor papéis cada vez mais diversificados a exigir cada vez mais registos para os quais não há definição precisa. Como os professores reflectem pouco sobre qual seja a sua função, a tal, facilmente se deixam enredar nas múltiplas funções, educativas ou não, que a instituição escolar tende a albergar em suprimento da falência de outros sistemas de apoio social. Dito de outro modo, se a instituição escolar se tornar mais complexa ou se auto-definir em autonomia organizacional prestadora de novos serviços, o professor pode ser o que não é até deixar de ser professor tal como é reconhecido pelos não professores? Ou já não há quem não seja professor?

6.
Como se identifica um professor? Como e o quê se avalia quando se pensa num professor? Precisamos de saber que não falamos de um número indeterminado de coisas quando falamos com decência sobre a docência.

[a página de educação; Verão de 2009]

convocatória

foste convocada e agora não sabes o que hás-de fazer.
ainda me lembro de te dizeres ansiosa pela guia de marcha e por isso sempre pensei que quando recebesses a convocatória ficarias contente ou mesmo eufórica a preparar uma mala de viagem para uma guerra que nem era a tua mas que tinhas tomado como sendo a tua guerra ou pelo menos a guerra a travar.
e agora vens dizer que não sabes o que hás-de fazer que já não sabes se queres ir para lá.
não foste tu que pediste?
e queres que eu acredite agora que não te queres ir embora porque não queres deixar-me para aqui sozinho.
a mim que nunca quis travar guerras. nem acelerá-las confesso.
a mim que não sinto nada é que dizes isso?
tu sabes bem que eu não posso defender-me por não saber falar.
e é a mim que dizes essas coisas?
tu sabes bem que escrever as coisas que quero dizer-te dura mais tempo que aquele que dura a dizê-las como tu o fazes sem me dar tempo para ouvir sequer as palavras que separas para me bater.

sabes que mais?
só quero que vás depressa para qualquer guerra que precise mais de ti do que eu para ser travada.
eu sempre estive quieto e isso é mais que estar travado.

agora também te calas?
ora adeus. não te esqueças de levar a convocatória.

a alma em exílio

há dias assim:

- a alma cansada de mim avisa-me que vai a banhos.
- a alma dá voltas numa campa sem corpo, pelo que ouço dizer.
- a alma abandona-me sempre que me vê a dormir profundamente e pensa que eu não dou por ela.
- a alma dança na minha cabeça e eu fico sem saber quem, eu ou ela?, rodopia.
- a alma despede-se ameaçando nunca mais voltar.
- a alma diz que se eu continuo assim ainda me mato.
- a alma grita que me mata se eu cair em mim mesmo e me magoar.
- a alma fica a olhar para mim espantada com a minha falta de bom senso comum.
- a alma fica a olhar por mim quando eu não estou a olhar.

o que farás tu?

- o que farás tu quando não tiveres que fazer?
- nada. sei lá.
- deita-te e descansa. o descanso eterno fica-te bem.
- vejo-me mais deitado no tapete rolante.
- no hiper?
- não. que horror! no forno crematório.
- ou a caminho do inferno?
- ou isso.
- suicídio?
- não. há uma série de papelada a preencher que nós não podemos assinar.
- quem pode?
- eu. quando não tiver mais que fazer. e me apetecer voar.
- terás asas então?
- a cinza não precisa de asas.
- mas também não voa, essa é que é a verdade.
- não?
- precisa de um sopro para se espalhar no ar.
- isso é voar?
- não. é um fingimento de voo.
- prometes que sopras?
- não posso. respondo. não tenho outro dom.
- a toda a gente?
- não. só a ti.
- só a mim?
- só.
- é por isso que nunca te ouvi fora da minha cabeça.
- pois.

lugar de sombra nula


Escrevo sobre um lugar de sombra nula.

Na pista em 8 do IPSB os carrinhos fotovoltaicos correm entre meta e meta. Sem sombra que atrapalhe, os carrinhos voam baixo e velozes. No júri ouvimos os jovens explicar as opções tomadas tanto ao nível da estética como da técnica durante a construção dos seus carrinhos..Voam mais ou menos velozes sobre as suas respostas. Uns mais, outros menos, voam autónomos. Este é o lugar de sombra nula onde o sol é livre para ajudar no voo e onde os jovens são livres de aprender com os seus projectos sem sombra.

Sabemos que por ali vagueiam algumas das melhores respostas às questões de aprender e ensinar. Incapazes de ver os processos, falamos sobre eles enquanto vemos os resultados. Os construtores ligam-nos pouco, porque vigiam os resultados construídos, tratando carinhosamente os seus carrinhos, barquinhos e chaimites feitos de restos de pequenas coisas já usadas antes. Se olho para os que ficaram pelo caminho, é para os ver ao colo dos seus construtores carinhosos. Carinhosos, fisicamente carinhosos, ternurentos.

À margem dos carrinhos podemos seguir as pizzas que cozem nos fornos solares e podemos seguir o carro a energia solar que convoca a GNR de Bustos para desimpedir as ruas. Por onde passa veloz o carrinho guiado por um jovem franzino, correm professores esquecidos do sol abrasador que é a fonte da energia do carro e fonte de cansaço para quem corre

E damos por nós paralisados neste forno solar, neste lugar de sombra nula. Cansados, agradecemos o momento.

os sólidos platónicos

passo bem por ti gritei-lhe para o outro lado da rua e continuei. sem parar, irritada como só ela sabe ser, disparou entre dentes: nem tentes! nunca mais te faças passar por mim! mas continuou em frente e eu senti-me sossegado a ver como ela entrava numa loja onde teria planeado ir.

somos muito diferentes, parece impossível que alguém nos confunda. eu sou um velhinho de barba branca e ela é obviamente uma mulher com ar de jovem que não engana, embora madura. e temos vozes bem diferentes, sem dúvida alguma. mas muitas pessoas acham que quando ouvem um é como se ouvissem a outra, como se esperassem de uma a voz de outro.
não sei como aconteceu, mas concluímos das conversas que ouvimos aqui e ali que as pessoas tinham ouvido a jovem no momento em que o velho falara e tinham ouvido o velho na circunstância segura de ter sido a mulher a falar. depois de termos verificado isso, começámos a falar coloquialmente com a preocupação de colocarmos acidentalmente a confusão entre os dois e recebermos por respostas e perguntas o que esperávamos: sermos tratados cada um como sendo o outro. e tudo nos divertia. até descobrirmos, num período de grande solidão, que não conseguíamos falar um com ou outro porque, quando abríamos a boca, já estávamos a ouvir ditado pela outra boca o que dizíamos. e isso fez do nosso convívio a solidão absoluta dos dois em cada um de nós. uma só ideia tinha feito de nós uma só pessoa.

enquanto foi assim aos ouvidos dos outros ainda nos divertimos. o problema todo aconteceu quando isso começou a acontecer aos olhos de cada um de nós nos momentos em que nos encontrávamos. e foi então que descobrimos que tínhamos deixado de trocar diferenças para trocar a ideia que não era mais que um enunciado a duas vozes. e então ficámos insensíveis e incapazes para o amor que nos unira e afinal tinha brincado às escondidas o tempo todo e fora de nós, no quintal de uma ideia vizinha a nós.

passamos agora um pelo outro, nunca pelo mesmo passeio da mesma rua e nunca no mesmo sentido. sinto que ela começa a odiar-me e a mudar de ideias. eu sou velho demais para mudar.

reflexões do medo no olhar

habituado que estou ao outro que no espelho
parece estar a espreitar para ver
me em tudo igual a este verme velho

demorei a perceber porque nunca olho nos olhos:

não pode ser medo do que vejo talvez seja medo
de ver o que outros vêem pelos meus olhos
ou medo do que eu possa ver pelos olhos dos olhos
que espreito detrás dos vidros da janela

as duas pastas

Trago sempre duas pastas dentífricas dentro da pasta onde guardo também alguma roupa interior e lenços de assoar. Nunca me foram úteis a...