o telhado de vidro


olhamos para o rectângulo tão limitado
e tão aberto
que podemos imaginar como é fora dele,
olhar para cima e para baixo,
para a direita e para a esquerda

sem cuidarmos de saber onde começa
nem onde acaba
a multidão de telhas

que importa saber quantas
se vemos como são tantas
e vão encaixadas
de mãos dadas

das ruas, a mais bela, a nossa


a beleza das ruas é a nossa beleza

a primitiva forma lembramos como era sem a forma
do que agora é não era mais que um desenho ou um desejo
a cor da vida que veio morar em nossa casa
tem hoje idade e boca para o outono do beijo

para darmos graças ao arquitecto de então agora
pelo detalhe das cores impressas no ar
por esta instantânea felicidade no lugar e hora
da ave que ensaia num bater de asas o nosso olhar

a beleza da nossa rua está ao nosso espelho

do alto, as oito e vinte e cinco

desenho, logo existo

A cauda da causa

Por estes dias, não há notícia que não fale do pavão.

O passarão adorava passear-se e pavonear a poderosa cor do seu papo. Sabemos como ele lamenta que as convenções não lhe permitam que exiba a sua magnífica cauda quando ele a abre no máximo esplendor de cauda de pavão. Para as visitas, apresenta-se o ministro com cauda tão brilhante como um piano de cauda.

Mas hoje, as notícias não dão margem a dúvidas e é do domínio público que os negócios do pavão ou são escuros ou são sujos. Alguns passarões ainda passam pelo desfile de vaidades, com a cauda de boca fechada.

O pavão de hoje está discreto, mais do que é seu costume. Não tem comentários a fazer, espera para ver que nada do que parece é. Quando chega a tarde, já a cauda o incomoda, uma manhã inteira trilhada no trânsito dos acontecimentos. Também lhe dói a inacção do papo. As televisões fazem-lhe perguntas sobre o tempo que faz nos paraísos fiscais, sobre o dinheiro que desapareceu, sobre a cauda da causa. Não responde a perguntas quem está habituado a falar por cima de toda a suspeita e até acima dos partidos que fizeram dele o rico ex-governante. Ele só responde a pedidos.

Vai para casa. A mulher vem recebê-lo com o costume do beijo. Pergunta como lhe correu o dia a ele e a todos os seus amigos que ela conhece ou de ouvir falar ou das filas de cumprimentos das tomadas de posse e poder de ministros e secretários. Ela gosta sempre de saber da saúde de cada um deles. Ele diz que estão todos bem, na esperança que ela volte para a fantasia da vida.

Mas sabe que ela vai ouvir notícias e fica à espera. Quando ela aparece a perguntar-lhe se é verdade, ele responde: É. Que tudo está a correr mal e que estão arruinados, ele responde: É claro, mulher, que estão arruinados. Quem? - insiste ela. Nós? Que ideia, mulher! Arruinados estão os do costume. Quem? insiste ela. O estado, os contribuintes, os outros. E a nós? Não acontece nada? Mulher! No paraíso, o que queres tu que aconteça? E podemos voltar à terra? Talvez volte mais tarde, se for bom para os negócios. Como salvador.

[o aveiro; 06/11/2008]

pássaros verdes?

Por muito que nos custe admitir, somos pássaros verdes.

Eles dizem-nos que houve desregulação, ganância desmedida, especulação criminosa, irresponsabilidade, etc e ao mesmo tempo dizem-nos que é preciso apoiar o sistema financeiro, criar fundos de garantia do estado para as poupanças dos aforradores e os depósitos dos clientes dos bancos. Como se nós pudéssemos admitir que, sem haver ladrão, as poupanças das pessoas mudem de mãos ou ganhem asas e voem. Como se nós não soubéssemos como foi difícil aplicar taxas ao grande capital financeiro e nos tivéssemos esquecido dos lucros astronómicos de bancos e sociedades financeiras ou do pede e despede gestores bancários que se tornam filantropos ao lavarem o dinheiro sujo ou saem de cena mudando de cenário. Como se nós não tivéssemos sido atropelados por banqueiros bons pais de família a ajudar à missa e a obras de divina inspiração.
Para além de admitirmos a evaporação das poupanças e das pensões como factos normais nestes tempos de crise e de centenas de milhares de desempregados, recebemos ordem para pagar o imposto que garanta aos banqueiros e financeiros o regresso ao casino de sempre com o dinheiro de sempre que é o dinheiro dos outros, esses que deram algum equivalente produtivo pelo dinheiro que guardam nos bancos da roleta russa.
Na sociedade do espectáculo, habituámo-nos ao ar respeitável de administradores de fantasias acima de toda a suspeita, administradoras de viagens pelo universo todo em representação de bairros sociais em jogos de sociedade, de culpados sem culpa formada, de colarinhos criminosos mais apontados a medo que a dedo. E não estranhamos que haja regulação sem reguladores, desregulação sem desreguladores, especulação sem especuladores, ganância sem gananciosos, irresponsabilidade sem irresponsáveis. E não nos podemos espantar que os reguladores continuem sem regular, os especuladores criminosos continuem a especular, os governadores continuem a governar-se e os administradores continuem a ministrar pouca honra e pouca vergonha.

Se não somos pássaros verdes, somos o quê? Vítimas da Dona B(r)anca. Palermas?


[o aveiro;30/10/2008]

o medo que se recomenda

Distraído, o homem segue a rua que o guia para o trabalho. Por momentos, vai esquecido dos problemas da manhã e vai entrando pela calma da tarde. Depois de atravessar a passadeira, ouve um carro que pára a falar consigo. Distraído, aproxima-se. O carro fala pelos cotovelos como se o conhecesse há muito tempo, contando uma história qualquer. O homem distraído vai ouvindo o conto do vigário como se não fizesse parte do que está a acontecer. De certo modo, o homem deixa que o conto se conte para que tudo seja rápido ou passe a passado rapidamente. Mas o carro segue-o e já está atravessado no cruzamento de duas ruas criando uma fila de carros que apitam. Para o carro que fala com o homem não há pressas nem cuidado com os carros que apitam. Só então o homem acorda da sua distracção e pede ao carro que fala que deixe o cruzamento. Para isso, presta-se a ouvir a história do carro com alguma atenção. A preocupação do homem que anda a pé com os carros que apitam é a sua desgraça. O carro que fala começa a fazer convites cerimoniosos para isto e para aquilo e oferece coisas que de facto quer vender e, sempre incomodando o homem e os carros que querem passar, conta o conto do vigário. O homem distraído acaba por ceder e dar algum dinheiro para se libertar do assédio desconfortável do carro. O carro pede mais dinheiro e quando o homem já desperto acelera uma marcha de despedida, o carro que fala começa a gritar: “senhor doutor não me faça isso!” criando em quem passa a ideia que o homem roubado é mal educado por desprezar o carro que fala e o rouba.
O homem que caminha conta a história como se tivesse sido pressionado e roubado por um carro: Porque não quer acreditar que tenha sido pessoa a torturar a sua entrada na tarde, até fazer da sua distracção calma uma irritação assassina a que o caminhante não quer dar guarida no seu coração.
Depois do trabalho, o homem vai para casa. Da caixa do correio, retira as cartas e o papelixo do costume. Ao abrir as cartas, percebe que uma delas é a oferta de um cartão bancário que nunca pediu e não quer. Já recusou aquele cartão várias vezes. De cada vez, tentaram convencê-lo que tinha de fazer isto e mais aquilo para desfazer o que não tinha feito. A irritação assassina volta. Contra quem o rouba insistindo em ofertas que ele não quer.
Começa a ter medo de si mesmo. Desesperado, aos torturadores mascarados de amigos, o homem calmo recomenda medo equivalente.


[o aveiro; 23/10/2008]

os caminhos estreitos

Nestes últimos tempos, andámos muito ocupados a tratar dos temas que têm de se passear por veredas e caminhos estreitos, como é o caso do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Esta discussão mostrou como em 10 anos mudou o discurso social e cultural relativamente às orientações sexuais e também que não mudaram as cautelas das galinhas gordas que ocupam os poleiros do poder, da oportunidade, o oportunismo de quem não encara direitos se estes estiverem fora da sua agenda cor de rosa.

Os caminhos estreitos que percorri um dia destes levavam-me até uma escola do 1º ciclo. Manhã cedo, os pais e as mães sobem pelo carreiro com as crianças pela mão até ao grande portão fechado. E ali ficam numa esquina inóspita até que alguém abre o portão por onde entram as crianças para a escola. Dei por mim a pensar como vai ser num dia de frio e chuva. Não há forma de escapar à chuva fria para os que sobem a ladeira até àquele portão.

Pela tarde, voltei à escola para uma reunião. Depois de muito tocar campaínhas, lá consegui entrar por uma porta estreita depois de a adivinhar. Lá entrar, entrei. Mas à medida que outras pessoas iam chegando para a reunião descobri que se não tinha sido fácil entrar, o difícil agora era sair já que não podia abrir a porta para os que queriam entrar.

Enquanto esperava, bem tentei encontrar um abrigo ou um simples banco onde um pai ou uma mãe pudesse sossegar na espera das crianças. Nem com a ajuda da imaginação consegui o banco e o abrigo. Não podia imaginar-me sentado naquelas escadas em dia húmido de chuva. E posso garantir que o mais fácil para qualquer responsável é reconhecer que não há o mínimo conforto naquelas salas para o trabalho produtivo de professores e estudo das crianças.

Dei por mim a pensar que muitas escolas são assim e que muitas há com muito menos condições que esta. De certo modo, não há lugar para pais e mães a não ser na compreensão humana dos professores que os recebem e, de certo modo, não há lugar para as crianças que precisam de respeitar regras de trabalho e de trabalhar. Nem há lugar para as crianças que precisam de brincar.

Não há forma de escapar a esta sensação de chuva fria nos ossos despejada dos beirais do desprezo pelas crianças. O desprezo faz da vida um caminho estreito.


[o aveiro.16/10/2008]

desenho, logo existe

desenho, logo existo

desenho, logo existe

o ouvido do ovo

Foge. Se correres na direcção certa ainda vais a tempo de fugir da chuva que aí vem. Qual é a direcção certa? - perguntei eu. A da chuva - disse a chuva. Queres é molhar-me! pensei eu. E fiquei calado. A chuva percebeu o que eu estava a pensar e disse: Para não te molhares deves também correr no mesmo sentido que eu.
Para não te encontrar devo correr na tua direcção e no teu sentido?
Pois, está bem, está!

Nos últimos dias perguntaram-me opinião sobre vários assuntos. Refiro dois:

Uma vez sobre o orçamento de estado. Para onde deve ir o dinheiro? Na mesma direcção e no mesmo sentido que a educação prossegue? Na direcção da cultura e no sentido da ciência, para que os homens sejam tratados pelo nome e não pelo número. Mas se eu caminhar na direcção favorável à cultura e em sentido favorável à ciência não vou a fugir da educação? Vais, claro que vais! Foges da má educação.

Outra sobre a fraca matemática dos estudantes de engenharia. Não é de cultura científica que falam, mas antes da fraca preparação dos estudantes de engenhara e dos jovens engenheiros. O engraçado é que atribuem esse defeito ao ensino secundário. Esquecem-se que a formação secundária é forçosamente tão diversa quantos os desejos de futuro e que às portas de engenharia nada há que impeça a entrada de estudantes com fraca formação matemática. Ao contrário, há convites a todos quantos queiram entrar enquanto forem precisos, mesmo mal formados, para ocupar a instalação. Os melhores alunos de matemática podem não querer frequentar os cursos que mais precisam de matemática, podem não querer frequentar engenharia e até pode acontecer que uma parte dos alunos de engenharia nem tenha pensado nela a não ser como mal menor. O que quer dizer que o sistema de escolhas da universidade não tem quaisquer critérios de qualidade e nem os jovens cuidam de segurar as suas primeiras preferências.

No que ao acesso do ensino superior respeita, tiradas as honradas e numerosas excepções, ficamos com a ideia de que os jovens ao correrem pelo acesso ao ensino superior correm na mesma direcção e no mesmo sentido em que corre a educação científica e é, por isso, natural que não haja encontro entre os jovens, a educação e a cultura científicas.

O ensino secundário só é culpado na medida em que é deste mundo. Como tudo.

[o aveiro; 9/10/2008]

a linha da mão e a mão que nos embala

Nas palmas das minhas mãos cruzam-se linhas de tudo: a linha da vida, a linha do coração, etc. Cada uma dessas linhas conta uma história: que a vida acabará abruptamente; que o amor chega tarde, tanto tarda a intersecção da linha do coração com a linha da vida; que um pequeno acidente está previsto pela pequena gelha que se esforça para ser vista quase a desaguar na linha do coração.
Ninguém me tinha falado na linha da mão propriamente dita, mas duas médicas juntaram-se para me garantir que a vida das minhas mãos, tal como a conheço, está em risco e que eu devo confiar menos em mim e nas minhas mãos e mais num cirurgião. Fiquei preocupado com as minhas mãos incapazes de prever o seu próprio colapso aos 60 anos de vida, logo elas! que mostram (a quem quiser ver) a cartografia da vida, do amor, da riqueza, da saúde, .... até ao detalhe mais absurdo.

Há quem chame mão invisível ao capital financeiro e lhe atribua o papel de mola real da vida. Nem sempre foi assim, mas, hoje, não há culpados entre os jogadores da alta finança (que pouco arriscam de seu e tudo arriscam das poupanças de todos os outros). Os poderosos deste mundo enriquecem sabendo que muito do dinheiro em movimento não incorpora qualquer trabalho produtivo e transformador e cresce sem correspondente em trocas de mercadorias e bens que aumentam de valor à medida que vão integrando matéria e força de trabalho transformadora. Especulam e atribuem, em bolsa, valores ao movimento real ou inventado, fazendo da especulação uma mercadoria. Neste mercado, a um dado momento já só se transacciona o que não é. O inexistente toma valores independentes da realidade e da imaginação criadora, é especulação sobre a especulação.

Cada geração de especuladores toma os Estados como fontes de financiamento ou retardadores da explosão das insttituições e lojas do mercado de capitais, enriquecendo um pouco mais, enquanto milhões de trabalhadores, cujas mãos não guardaram lugar para a especulação de outros, sofrem o impacto da explosão.

Nestes jogos, os que sofrem não conhecem os carrascos. Estes já começaram a soprar para a próxima bomba bolsista - nos salvados da explosão de hoje, compram barato os activos da próxima.

Sobre as linhas das minhas mãos, que nada me dizem, gosto de especular sobre as linhas da mão invisível. Se desenharmos as linhas, passamos a ver a mão? Que faremos depois?


[o aveiro; 2/9/2008]

desenho, logo existo



desenho, logo existe


E existe mesmo. Descansa numa prateleira. Veio de Évora, como miniatura do outro de matar a sede de água, escolhido como símbolo do encontro nacional de professores de matemática de há cinco anos.
Há matemática na natureza. Sabemos da sede (irreprimível, mas também reprimida e escondida) da matemática. Dia a dia? Quem nos dera ser uma das infinitesimais bicas da fonte.

desenho, logo existo


Se eu quisesse algum sentido para o desenho, desenhava os sentidos e nem um traço mais, mas eu passo a vida a sublinhar com um novo traço o anterior, sem que cada traço tenha sentido que mereça ser sublinhado. De certo modo, o traço de hoje não sublinha qualquer sentido de ontem, antes procura substituir, sem sentido, o sem sentido.
Estas são as fotografias descuidadas. São sempre piores que os desenhos, sendo estes, desinteressantes acidentes, notas soltas tiradas em reuniões passadas... mal passadas pelas brasas.

o guindaste


por eu gostar de guindastes, ofereceram-me um especial, plantado em oeiras para ser visto, fazendo sombra ao cristo rei da outra banda de portugal ... ali mesmo, onde o deserto começa

Regra dos sinais

Escrevo à terça feira. Não é a terça feira quem me quer ler. Quem escreve para ser publicado, sabe que vai ser lido quando for passado. Se chegar ao dia da publicação, pode ler-se, pode ler o seu passado. Escrevo para o futuro e o futuro só pode ler o passado.

Na manhã desta terça feira, um estudante finlandês matou nove alunos de um liceu. Ao que dizem, publicava num canal video cenas de treino de disparos com pistola. Como se estivesse a atirar para o futuro. Depois do massacre, disparou contra si próprio e morreu no hospital.
Interrogado pela polícia, tinha sido libertado por ter uma licença para disparar. Só depois do massacre é que os videos foram retirados da cena pública. Ficamos transidos de espanto, suspensos neste tempo em que vemos como o futuro acontece. Sempre aconteceram coisas destas e a Finlândia não é o território mais fértil em acontecimentos destes que são desastres em si mesmos e mais desastres são por estarem assinalados por imagens que os precedem e os fazem permanecer para além do tempo em que acontecem.
Sobra-nos o travo de uma derrota. Como podemos interpretar os sinais? Como podemos interromper estas roletas russas? Há uma necessidade doentia de celebrar a própria morte com o assassinato de inocentes como se estes fossem pedrinhas deixadas no caminho a aumentar o impacto de uma decisão desesperada e criminosa. Estes casos repetem-se. Só que agora somos testemunhas atadas aos testemunhos impossíveis de controlar e que nos deixam uma estranha sensação de serem cópias do passado e desejo de futuro. Neste caso, assistimos a alguma coisa parecida com os videos dos campos de treino de suicidas que se suicidam com a obrigação de matar outros para ampliar o acto. Muitas vezes, há grupos humanos a descrever a motivação dos actos suicidas. Será que as motivações dos suicidas empurrados para o martírio são diferentes das motivações deste frio finlandês que parece agir sozinho sem precisar de ser empurrado? Podemos pensar que aqueles que são empurrados são mais humanos, porque talvez nunca pudessem tomar tal decisão sozinhos e, quando têm oportunidade, escapam do acto que lhes procuraram impor.
Percebemos que não há lugares livres destes medos que assaltam os nossos dias.

Nesta esquina de terça feira, olho em volta para ver sinais. Eles disparam mais rápidos que a nossa imaginação. De que nos servem os sinais?

[o aveiro; 25/09/2008]

ao arrepio

Ontem e amanhã não são dias meus

Hoje é que vejo as gaivotas voando desesperadas
Entre cruzes erguidas como pára-raios recortados nos céus da janela

Hoje é o meu dia, o dia em que as nuvens chocam
Hoje é dia em que o escuro como breu cai com estrondo
Entre as farpas finíssimas da chuva que voa

Ontem e amanhã não são dias meus:
Não me lembro de ontem e amanhã nem sei quem é.
Hoje é o dia que me fala de ontem e me lembra amanhã
Ontem foi para esquecer e hoje é para me lembrar já nem me lembro bem de quê.

as regras, as ruas, os nomes

Vou sempre pelo mesmo caminho. Como se tivesse medo de me perder um dia a caminho de casa ou a caminho da escola. Que relação há entre a caminho de casa e a caminho da escola? Não são um só.
Levanto-me cedo por saber isso. O caminho da escola é mais rápido que o caminho de casa. Não é por ter mais pressa de chegar à escola, mas é verdade que os minutos são passos contados. Como se tivesse medo da campaínha que marca as horas de entrar e de sair? Nunca saberei ao certo. Vou cedo para evitar contratempos.
Nas primeiras aulas, tenho de lembrar algumas regras aos alunos. Porque é que há a regra da pontualidade? Sempre que uma pessoa chega atrasada prejudica-se a si mesma. Só? Quem chega atrasado a um trabalho colectivo prejudica o trabalho dos outros que com ele contam se é que os não coloca em risco. As regras que nós aprendemos a seguir protegem cada um e todos nós. Nem precisamos de pensar. Sabemos que, ao fazermos a nossa parte, tornamos a vida dos outros mais fácil. E sabemos que a nossa vida é mais difícil quando alguém falha a sua contribuição. É assim em tudo.

Vou sempre pelo mesmo caminho. Olho os carros de frente e escolho o passeio ao lado dos carros que se aproximam de mim. Não sei se é regra, mas é mais fácil fugir do perigo que vejo aproximar-se de mim e é mais confortável sentir-me afastado do possível perigo que não vejo. Mais ainda quando falha o passeio. Faço os meus caminhos a pé e sigo regras e rotinas sem dar por isso. E de cada vez que descubro uma nova rotina que sem pensar cumpro, descubro também as pequenas contrariedades da cidade feita para os carros. E aprecio os carreiros abertos nos relvados por peões que seguem em frente depois de atravessarem uma passadeira. Os passeios em volta ficam cheios do cotão do abandono a que os peões os votam.

Dou por mim a pensar no exercício do poder. Entro na primeira aula em que possso falar de modelos matemáticos que apoiam decisões, escolhas. Ainda nos estamos a apresentar e eu pergunto a jovens, com mais de 15 anos, que vivem por aqui, os nomes das freguesias de residência, dos respectivos presidentes de junta e de câmara.

Eles não sabem os nomes. Não amaldiçoam pessoas por maus traçados, obstáculos, buracos. É tudo culpa do sistema.
A escola deve ensinar nomes próprios? Os nossos nomes?

[o aveiro; 18/09/2008]

duas sem três

disseste-me em cada rua o nome da rua
e tomei boa nota de todos os nomes

parece-me agora que os nomes
saltaram de placa em placa
e se fizeram linhas de outra placa
como um rol de exigências

na primeira linha, a liberdade

a noite, ainda a noite

cores daqui, de setembro

cores daqui, de setembro

assombração

Estou a escrever quando o lusco-fusco toma conta da terça-feira. Caminho devagar em busca do sentido do dia e da semana. O dia está bom e as palavras chegam vagarosas. Vejo-as em contra-luz e faço um esforço para as reconhecer pelo recorte. Nada. Têm de entrar pela porta e falar para que eu as reconheça. Estou a escrever contra o lusco-fusco, contra o jogo das sombras. Nestas horas, as sombras que nos seguem podem parecer ameaçadoras. Quando dizemos que temos medo da própria sombra falamos da sombra que nos persegue manhã cedo ou tarde da tarde. Ameaçadora, ela segue-nos ou precede-nos na caminhada. Assobiamos e damos graças por não ouvirmos o eco dos nossos assobios, que são as sombras dos assobios, que são assobios assombrados fechados nos túneis que atravessamos em vida.

Hoje, o Ministério da Educação decidiu divulgar alguns números sobre os resultados escolares do ano passado. E foi a habitual lufa lufa da comunicação social em busca das reacções a esses números. O habitual lusco fusco, a luz e a sombra. Todos nós andamos há décadas à espera de dias melhores, de resultados melhores. Muito devagar, temos cada vez mais jovens na escola, sem podermos descansar enquanto não temos todos os que dela precisam. Sempre que o número de jovens na escola cresce, sabemos que os resultados podem aparecer piores.

Mas este ano, anunciam-nos um crescimento da população escolar acompanhando uma melhoria dos resultados escolares. Isso pode significar que os professores e formadores fizeram o impensável lusco: com mais alunos, dos quais muitos jovens regressados do abandono a que votaram a escola, obtiveram uma melhoria dos resultados. A preparação e execução das actividades lectivas são obra autónoma dos professores e, em grande medida (de 70% a 100%), a avaliação escolar também.

Imediatamente se levantou o fusco, a grande sombra. Não pode ser! Pode lá ser! Há quem levante a poeira da suspeita, aponte os canhões de fumo do desconcerto sobre os resultados escolares. E há professores a acender velas neste desconcerto, vagos nas razões, perdidos de si mesmos.

Estes resultados valem o que valem. Devemos acompanhar os números com as cautelas necessárias, manter a exigência que a nossa dignidade exige e garante, estudarmos os factos e a consistência entre aprendizagens e classificações e ficarmos preocupados, isso sim!, por termos resultados ainda muito fracos e a exigir mais esforços.

A ser alguma coisa, uma pequena melhoria é pequena satisfação! Dor e assombração é que não!

[o aveiro; 11/09/2008]

elvas


do meu caminho, espreito para dentro das muralhas

o espírito de Elvas (em 2 de Setembro)

O Encontro da Associação de Professores de Matemática trouxe-me a Elvas. Aproveito para meter os pés ao caminho. Logo de manhã, palmilhei uma longa e larga avenida que passa pelo Coliseu. O Coliseu é, por fora, um cilindro. É um coliseu. As bancadas em anfiteatro cercam uma arena redonda. Nesta altura em que um palco toma conta da arena, de onde os convidados falam para os professores, custa-nos imaginá-la com touros e chocas, toureiros, bandarilheiros e forcados, cavalos e cavaleiros, para além do “inteligente”, claro. Um palco cercado por cabos e grandes máquinas de som e luz vai servir para um concerto de Rui Veloso que vai ocupar parte da minha noite de amanhã. Não me custa imaginar que aquele é um lugar bom para o concerto de amanhã.

Serve isto para contar a forma empolgante como o Presidente da Câmara de Elvas falou da sua cidade, das suas Escolas Secundária e Superior Agrária, dos seus Museus e Cine-Teatro, dos professores de Matemática que ocuparam a cidade e se repartem por todos aquelas instituições em certas sessões e se juntam no Coliseu para grandes sessões plenárias e para as festas.
Seve isto para dizer que o Presidente da Câmara de Elvas sabe da importância da fronteira quando ela serve para separar e sobre ela refere as muralhas e toda a monumentalidade convergindo para o alto centro, sabe reconhecer-se nas linhas de Elvas com que se cose, ao mesmo tempo que sabe da importância da fronteira quando ela serve para ligar, referindo-se sempre a Badajoz, aqui tão perto, como o lugar do vizinho que vem ao Coliseu pela auto-estrada Lisboa- Madrid a passar por Elvas e Badajoz e torna Elvas uma terra de atracção para congressos internacionais e nacionais, de associações profissionais, industriais, comerciais, ...

Palmilho o dentro e o fora das muralhas. E encontro a cada esquina caras conhecidas de professores dos ensinos básico, secundário e superior de Matemática. De certo modo, é como se estivesse na casa dos professores de Matemática. Sei que a partir de quinta feira, uma parte destes professores estará em Badajoz a reunir-se com colegas de Espanha num Seminário sobre a Investigação em Educação Matemática. Vão até lá sem sair de casa, sem dar o salto.

Sinto-me bem. Temos muitas dificuldades, é certo. Encontramo-nos no lugar certo para nos darmos conta delas e, quem nos dera, darmos conta delas com o espírito do lugar a ajudar.

[o aveiro; 4/9/2008]

o homem por cumprir

já me aconteceu
andar meses sem ter medo
e sem pensar na morte

já me aconteceu
deixar passar os meses
sem pensar neles que passavam
nem pensar no que tinha feito
entretanto

gostava que a minha vida
fosse esse rio plácido de meses sem sobressalto
a pensar em nada
para além do trabalho
sem outro sentido para além do trabalho
do por fazer ao feito
sem qualquer glória nem lucro

eu nem me importava de nada ter
se pudesse passar sem me preocupar
com os outros ou o que eles são
ou o que eles fazem

ficar aqui de pé
a fazer o que se mostra por fazer
à minha frente
como a folha por cima
de uma pilha de folhas
com ordens para cumprir
que eu soubesse cumprir

até que um dia um sopro de morte
chegasse como a folha por cima
de uma pilha de folhas
com ordens para cumprir
e eu soubesse cumprir.

a altura

Este mês de Agosto que finda deixa-me na memória sabores a ouro e prata. Ouro e prata de lei.
Falou-se sempre de muito dinheiro olímpico que bem vistas as coisas é pouco dinheiro para os super-heróis em que nós apostámos todos os sonhos de glória patriótica. De Pequim, os porta bandeiras portuguesas trouxeram o ouro e a prata. Feitas as contas, temos de aprender a não transformar o dinheiro que gastamos em desejos de glória em realizações com resultados garantidos. Porque os resultados das competições humanas não são determinados ainda que possamos saber que um outro aparecem como muito prováveis.
É assim no desporto e na cultura e é assim também na educação. Não corre ou corre bem, corre mal, corre assim assim. Pelo meu lado, acho que a missão em Pequim (dos que disputaram a glória) correu muito bem. Não pude competir em Pequim, porque não atingi qualquer mínimo olímpico. Os que lá foram competir são os melhores de nós nas áreas desportivas em que competiram. Para mim, são o máximo. E estivemos lá, cada um dos nossos a fazer o seu papel - a competir para se superar e para ser superado por outros - e sem roubar o ouro merecido pelos outros. De certo modo, o valor do ouro de quem ganha é muito obra de quem se esforçou denodadamente para o ganhar sem o conseguir. Sem competidores, que valor sobraria para o bronze, a prata ou o ouro olímpicos?

A situação e a circunstância olímpica permitiram que dirigentes de comités, alguns políticos, alguns comentadores, etc se tenham envolvido em competições renhidas pelo ouro, prata e bronze da toleima. Temos muita dificuldade em atribuir as medalhas disputadas. Os disparatadores mostraram uma pontaria fantástica, os disparates levantados foram muito pesados, nenhum dos concorrentes deixou por mãos alheias os disparates que era a sua meta.
Nós sabemos como somos bons nisto.

Claro que o olimpo cá de casa é feito de assuntos mais prosaicos - segurança na linha do Tua e no bairro do Mocho, por exemplo. Escondemo-los enquanto ardia a chama olímpica e continuaram em segunda fila porque voltou o novo seleccionador de chuteiros a seleccionar e começou a liga com as notícias dos seus milhões (de adeptos? de euros? de contratações? de bolas? de pernas?). Claro que a competição de disparates sobre estes assuntos também foi muito animada. Estivemos à altura das situações. Gosto de nós.

[o aveiro; 25/08/2008]

o fim da viagem

Há quem procure um fim para a viagem. Outros procuram o fim da viagem. A nós nada disso nos preocupa. Caminhamos num e noutro sentido da mesma direcção e não temos outro fim em vista para além de caminhar. Sabemos o princípio e chegamos ao fim. O fim é a língua de areia, um dos lados da foz, o lugar que alguém acendeu na eternidade da noite. O fim estava lá quando lá chegámos. Na ponta da língua.

em viagem

Todos os dias pomos pés ao caminho.O ponto de partida de cada dia é o ponto de chegada do dia anterior. Em cada dia, fazemos a pé o caminho até ao dia seguinte. Não interessa o lugar onde chegamos. Sabemos que chegámos ao dia seguinte. Esta é a viagem.

A. de Agosto

Habituei-me às mudanças de tempo, às mudanças de estação, às mudanças. De tal modo assim me habituei que sou uma pessoa diferente em cada mês. Eu sou variável e dependente. Quando dou por mim a olhar para mim vindo de fora não vejo essas mudanças quando mudo de janeiro para fevereiro, por exemplo. Mas vejo-me mudado de forma dramática quando por acaso me vejo em Julho e depois em Agosto. Quase não me reconheço.
Aconteceu ter escrito umas frases em Julho que só voltei a ler em Agosto e fiquei verdadeiramente irritado quando as vi atribuídas a alguém que se faz passar por mim. Estive mesmo para reclamar. No futuro, em vez de A. Martins, vou assinar A. de Maio, A. de Julho ou A. de Agosto.

a visita humana

Marcam-me encontros e ameaçam despir-se, caso eu apareça, logo ao primeiro encontro. Também recebo pedidos lancinantes de ajuda por um ou outro estudante com mães tão doentes que eu nem quero saber, ou mesmo ofertas de noivas jovens vindas directamente do oriente para a minha felicidade europeia.
Escrevem-me em papel timbrado ou lá perto. Apresentam-se algumas vezes como encarregados de negócios ou diplomatas com nomes africanos ou russos (penso eu, que leio romances) a precisar de parceiros que aceitem colaborar com contas de aluguer para que nela depositem dinheiros do outro mundo em passagem por este mundo.
Ameaçam-me com processos de inquérito numa delegacia de polícia em português brasileiro, caso eu não responda a não sei o quê, e mais recentemente acusam-me de entrar em locais proibidos, também em brasileiro que é a língua dos meus crimes pelo mundo fora, e mandam-me abrir um “executável” qualquer em minha defesa. Caso contrário...
Claro que habitualmente recebo postais de alguém que me ama ou me quer bem e, caso eu queira saber quem tanto me ama, bastar-me-á abrir um “executável” qualquer como quem abre uma porta com uma gazua. O brasileiro é também a língua de quem me ama a uma distância confortável.
O meu computador não é muito sensível a “executáveis” e o tempo tem passado sem que eu seja executado por estas iniciativas mais ou menos anónimas. De todas as mensagens indesejadas que diariamente atravancam as minhas caixas de correio electrónico, estas são as mais indesejadas e chegam a ser realmente assustadoras. Estas ameaças electrónicas sistemáticas que são lixo ao lado do lixo dos vendedores de viagra ou de campanhas de viagens aéreas com hotel dentro, de diplomas de universidades fantásticas, ... carregaram-me de boa vontade para com a tralha das vendas que atafulha a minha caixa de correio da porta da minha casa. Passei a gostar da tralha física que me visita e chego a ler amigavelmente alguns daqueles papéis antes de lhes encomendar a alma frente ao papelão.

Eu, que tudo faço pela internet, evitando balcões de repartições, de bancos, ... dei por mim a pensar que há bondade humana nas anunciadas visitas físicas dos inspectores do fisco que vão entrar nas casas para encontrar jóias ou outras coisas... que possam ser penhoradas. Pelo meu lado, nenhum sinal exterior de riqueza será disfarçado.

[o aveiro; 7/8/2008]

6 mm

A porta da cozinha dá para um quintal que mais parece um jardim. Em frente da porta, estende-se um carreiro direito, ladeado por uma latada de uvas americanas, assente em loureiros e vigas de granito grosseiro e por plantas estranhas aos olhos de quem conhece as plantas das aldeias do norte. Da porta, o baixote olha como a medir o comprimento do carreiro. Na mão direita, o velhote segura uma malga de azeitonas. Com a mão esquerda, da malga para a boca, levanta uma azeitona num esforço calculado, como um exercício preciso. Vê-se que o gordinho come a azeitona, até sentir que o caroço sobra limpo. Está tenso, como devem estar todos os atletas concentrados nos últimos ensaios. O caroço já está pronto a ser disparado pelo cano formado pelos lábios cerrados. Calçados numas sandálias largas demais, os pés preparam-se para o lançamento iminente. O pé esquerdo finca-se no chão em frente à porta, enquanto o pé direito toma balanço com ajuda da perna que se dobra pelo joelho. De repente, o caroço salta da boca e, imediatamente, o pé aparece projectado para a frente a tempo de pontapear com toda a energia o caroço cuspido. Certeiro, o pontapé apanha em cheio o caroço na sua trajectória descendente atirando-o para a frente na direcção do carreiro. Os olhos do atleta velhote seguem o caroço enquanto podem. Quando perde o caroço de vista, o atleta sabe que bateu o recorde nacional de lançamento de caroço cuspido e solta o seu grito de vitória. Considerado o melhor do mundo, está pronto a seguir para os jogos.

O seu grito abafou tudo por momentos. Quando se prepara para o segundo ensaio, ouve um grito de dor para lá do fim do carreiro. Uma mulher aparece furiosa. O furo de 6 milímetros de diâmetro numa das pernas da mulher está limpo e quase não sangra.

Debalde, a mulher procurara a bala.

O homem vira costas ao carreiro e poisa a malga das azeitonas ali mesmo em cima do frigorífico. Nunca tinha ido tão longe.

esmorizonte


A Marília mandou-me uma fotografia da linha que separa o céu do mar (de Esmoriz, penso eu). Mandou-me a sua linha do horizonte, humanamente interrompida por apetrechos humanos.

a ópera do fantasma

Aqui há muitos anos atrás, escrevi contra exames como se disso dependesse a salvação da humanidade. Atribuía aos exames a maldade absoluta, um último e derradeiro trunfo da reprodução das desigualdades sociais. E tinha razão. Nas minhas tiradas de ira, não precisava de pensar no que era o exame, só pensava no que pensava serem os seus efeitos em termos de selecção social operada pela escola. Contava meticulosamente os jovens oriundos das classes trabalhadoras que chegavam ao ensino superior e os números provavam o meu ponto de vista. Com razão contra o exame, ainda que os meus amigos de infância nem chegassem ao exame.

Mais tarde, professor e em democracia, achava que os exames atenuavam a perturbação social da falta de vagas nas escolas e nas universidades e criavam bolsas de trabalhadores infantis, juvenis e baratos. Reclamava contra os exames e reclamava mais escolas e mais jovens a estudar e menos jovens no mundo do trabalho. E tinha razão. Não me preocupava qualquer noção de exame. Os números do trabalho infantil entre os desfavorecidos existiam para me dar razão. Impossibilitado de me referir a todos os aspectos do sistema social responsável pelo mal, concentrava toda a ira nos exames clamando contra os problemas sociais da juventude. Os exames eram o pretexto. Claro que tinha razões para ser contra.

Tudo foi mudando. Aprovados novos programas de ensino, com base em amplas discussões sociais, muitos problemas persistiam. Havia cada vez mais jovens na escola até me parecerem que já podiam andar por lá todos os que quisessem. Sem haver professores para tanta gente. Estudantes em condições muito diferentes eram submetidos a um mesmo exame nacional? Era contra os exames e, na falta de melhor, aceitava que se compensassem as faltas imputáveis ao sistema nas notas dos exames. Como aceitar perguntas sobre assuntos que podiam nunca ter sido leccionados numa dada escola? Contra os exames nacionais, sempre! E tinha razão. O exame era o momento chave para denunciar a falta de professores, as desigualdades mantidas e criadas.

Na falta de melhor, aceito o corte e costura dos programas para tentar que o essencial chegasse a cada uma das partes do todo nacional. Com professores espalhados por todo o território e programas mínimos exequíveis, podia aceitar-se um exame de perguntas que se pudessem fazer a toda a gente. Isso fazia mau o exame por ser mau e curto o programa. Pior ainda: professores não ensinavam o que estava prescrito, só treinavam para o exame, enquanto outros desistiam da liberdade de trabalhar os temas do programa mais formativos por não os verem reflectidos nos exames. Contra o exame. Com razão.

De certo modo, tinha começado a ser verdade que o exame respeitava o programa de ensino: questionava aprendizagens de todos os temas, sem esquecer verificação de competências necessárias para acções futuras. Ninguém reclamava qualquer compensação, mas ainda persistiam desajustamentos culturais e de linguagem, contextos e práticas dos professores. E tinha razão em ser contra os exames para exigir que o sistema tornasse acessível ao todo nacional textos com modelos de perguntas possíveis e modelos de respostas esperadas para diminuir os desajustamentos. Muitos professores, se feitos para ensinar, não ensinam mais que um discurso seu como resposta em vez de dar livre curso ao pensamento e à iniciativa.

E continuava a ser contra os exames, para pedir mais tempo para pensar sem pressão, para ler melhor, para responder melhor, cada um a seu tempo. Não pedia mais tempo para mais perguntas e mais difíceis ou inesperadas. Nada disso. Contra os exames, pois claro.

Ao longo da minha vida, o exame não foi mais que o nome do momento propício para reclamar e exigir. E nunca houve o exame porque ele sempre foi variável dependente, espelho de mudanças exigidas e consentidas.

Sem saber nada de particular sobre o exame, reconheço este fantasma sem forma na obra colectiva. Cada vez mais complexa e exigente, a obra. Olho para o pormenor do exame: intrigante nada feito tudo, um tudo nada.


[a página da educação; Agosto de 2008]

a revelação

A última semana revelou-se difícil de viver. Sabemos da morte inevitável para cada um de nós e sabemos da possibilidade da morte dos que nos são próximos em qualquer dia do ano. Mais sabemos da elevada probabilidade de que os nossos doentes morram a qualquer momento. Mas nunca encaramos a separação física definitiva, mesmo quando sabemos que ela já está realizada em sofrimento mais que na morte real. O sofrimento separa-nos uns dos outros mais que a vida. Costumo dizer que a vida manda que nos movimentemos para nos afastarmos uns dos outros. O movimento autónomo é sinal de vida e é sinal de separação. Andamos sempre a procurar elementos separadores enquanto crescemos. Só nos consideramos adultos quando nos separamos. Ansiamos pelas separações. Mas não aceitamos a morte como separação e resistimos-lhe. Agarramo-nos aos vivos enquanto estão vivos. Porque a morte serve para efectuar um corte doloroso, uma separação distinta. Doces separações aquelas que a vida opera no seu curso natural - temos consciência disso quando a morte vem separar com um abismo vazio.

Na última semana não deixei de pensar nas separações. As pátrias, as religiões, os ódios e desprezos, as explorações e violações separam em vida pessoas umas das outras e de tal forma que cada uma delas pode operar a morte de outra sem sofrer a dor de separação vazia que a morte é. E vimos as famílias a precisar dos cadáveres dos familiares como condição para a separação entre a vida e a morte provocada pela guerra, embora não estranhem a separação que dá origem à guerra e que está antes da morte dos soldados. Dizem-me que é preciso encontrarmo-nos com o corpo ou o que dele nos derem para fazer o luto, para aceitar a separação. Não compreendo.

Ainda menos compreendo a atitude dos nossos banqueiros e financeiros que conduzem a guerra financeira, abusando e usando o dinheiro de outros para operações que, por não serem controladas, podem gerar lucros fabulosos. Eles não querem saber de onde vem o valor acrescentado ao dinheiro em movimento. Mas sabem que esse valor significa lavagem de dinheiro sujo, venda de armas e material bélico a bandidos, governantes e senhores da guerra, exploração sem limites, ... Eles sabem, na sua santidade aparente, eles sabem que as suas operações matam, que são mandantes de crimes sem nome. Sabem que não podem contar as suas vítimas. Também sabem que não lhes pedirão os cadáveres das vítimas dos seus negócios. Esses banqueiros podem ter usado o meu dinheiro para essa guerra suja.

E eles estão no meio de nós.


[o aveiro; 24/07/2008]

a revelação

dois em um

Há muitos anos atrás, fiquei uns meses a trabalhar numa escola de Aveiro. Devia estar em mudança de São Tomé para Cabo Verde ou em Cabo Verde, de S. Vicente para a Praia. Não sei. Nem sei em que ano. E nem isso interessa. Posso saber do que aconteceu sem saber quando aconteceu. E cansa-me procurar.
Nesse pequeno intervalo (dois ou três meses) leccionei em algumas turmas que me estavam distribuídas. De uma delas, lembro-me de alguns alunos e há quem, passados muitos anos,tenha falado comigo lembrando pequenos episódios desses meses em passagem. Devem ter-se divertido e eu também.

Uma aluna de então, Gabriela(?), contou-me anos depois que me tinha achado muito estranho. Em alguma deslocação com o pai a uma fábrica da região de Aveiro, tinha-me conhecido como motorista (camionista) da empresa. Ela sabia que o seu professor de matemática era camionista de longo curso e até sabia onde eu pegava ao serviço como camionista. Não sei como é que ela resolveu o problema. Mas lembro-me de ter sido dois, realmente dois.

Dos dois, um morreu a meio da tarde da passada sexta feira. Nas horas de espera, conversei com pessoas que não via desde esse tempo antigo. Um deles, Miguel(?), chófer de praça em Vagos, que me levou (e à família) ao aeroporto de então, falou-me de tudo e de nada, de todos e de ninguém (porque eu não sei o que ele pensa que eu sei) e assistiu comigo à passagem do barulhento cortejo de camiões (famílias inteiras na cabina) com histórias de fascínio pelos camiões e do meu fascínio pelos grandes navios sem porto. Por momentos, dei por mim sem saber quem morrera: qual dos dois?

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