Um sinal do presente.
Arsélio Martins

Os dias da última semana não se limitam a passar. Carregam sinais de miséria e de terror. Cada dia cai como um murro na boca da alma. Chegam-me do Iraque, da Índia ou da Rússia os dias carregados de terror. Não deixo de me vergar às dores de cada dia. Nenhum dia é longínquo passado, nenhum lugar é longe daqui, nenhuma vítima me é estranha. Acontece tudo de mal agora e são meus vizinhos os que > sofrem.

Mas hoje decidi que não vou por aí. Nem vou desatar gargalhadas de tristeza por conta dos figurões nacionais a quem o ridículo não mata. Eles não estão quietos nem calados, mas eu estou por fora cá por dentro.

Decidi ser feliz e olhar para outros que nem aparecem nos jornais, porque são normais e competentes nos seus afazeres e me dão os sinais que me dizem que, apesar da desgraça das gralhas do poder, o mundo vai em frente.

Estamos numa casa de aldeia do nosso distrito. Na sala ao lado, trabalham operários da construção de uma pequena empresa que constrói e repara casas. Eles arranjam tectos, pintam paredes, limpam destroços. Durante o dia e também pela noite dentro quando o trabalho aperta, um ou dois, raramente três, cumprem planos de trabalho, metodicamente. Quando não há barulho das máquinas, ouvimos a música que ouvem sem interrupção. Não raras vezes, ouvimo-los cantar como outras vozes as canções que se ouvem no rádio, inglesas na sua maioria. Com satisfação, os ouvimos. Por vezes, o mais jovem aplicador de placas recebe visitas. Reparo que não interrompe o seu trabalho, antes requer a ajuda dos amigos visitantes enquanto conversam, no que me é dado ver.

Mas não foi o mais jovem quem me aguçou a curiosidade. Ouço, sem querer ouvir, a conversa entre dois dos mais velhos trabalhadores da reparação. Algumas palavras chamam-me a atenção, parecem-me palavras típicas do quotidiano dos informáticos — algumas são aquelas abreviaturas que toda a gente diz sem saber muito bem o que é: jpeg, mpeg, bit, megabytes, ram, … — mas também ouvi conselhos sobre os cuidados a ter com os discos, desfragmentações, internet, música e filmes no computador.

Entre trabalhadores da construção de há cinco, dez anos, quem imaginaria qualquer conversa de âmbito tecnológico exterior à profissão, superior ao necessário para o exercício da profissão, …para o lazer, para a cultura geral? De uma pequena empresa numa aldeia?

Para mim, cada um destes pequenos sinais é um presente. Podem não querer dizer coisa alguma. São só sinais sobre o presente do futuro.


[o aveiro, 28/8/2003]
Há mais de um ano, em Julho de 2002, escrevi para o jornal um texto sobre os processos no pcp e a forma como vi a reclamação dos renovadores ao tribunal constitucional. A memória prega-nos partidas e, sei porquê!, lembrei-me do tempo em redor desse texto. Decidi transcrevê-lo para aqui. Esta publicação não tem qualquer interesse para quem não interessa. Há dias assim.


No fojo do lobo, todos somos lobos.
Arsélio Martins


A paisagem é quase inóspita. Algumas poucas árvores bem altas chamam a atenção no descampado. Aproximamo-nos e podemos ver uma construção: vê-se que ali foram arrumadas algumas das pedras que Deus espalhou a esmo, durante a distracção de uns momentos em que brincou a atirar pedrinhas contra o mundo acabado de criar.

Homens muralharam um acidentado terreno e lá dentro não se encontra mais mão de homem que num cavado feito em rocha meio enterrada. Num dos extremos há ainda uma pequena elevação natural feita de pedras maiores que devem ter ficado juntas acidentalmente quando escorregaram das mãos de um Deus já cansado de brincar.

Os homens carregaram a cabra doente e degolaram-na, deixando o sangue cair no cavado da pedra do sacrifício. Logo a seguir, saíram para bem longe dali, num jogo de medrosas escondidas. Talvez um mais decidido (ou escolhido pelos outros) tenha ficado escondido entre as pedras da pequena elevação.

O lobo que fareja, aproxima-se da cabra sem reparar na baixa muralha que em volta dela se ergue. Repara, tarde demais, que toda a muralha ganhou vida. Os lobisomens voltaram e, tão raivosos quanto medrosos, mostram varapaus afiados e pedras. Acossado, o lobo procura uma saída. Mas, para onde quer que vá, recebe uma chuvada de pedras e paus afiados. Esconde-se num dos lados da elevação, protegido da muralha assassina mais próxima e o mais longe possível do resto da muralha. Perdeu o apetite. Descansa por momentos, lambendo algumas das feridas feitas pelas pedras e pelos paus quando tentava escapar por cima da muralha. De repente, recebe uma pedrada e uma picadela violenta proveniente da elevação. Alguém procura expulsá-lo daquele frágil refúgio ali no descampado.
Agora não quer saltar a muralha, mas também não pode ficar ali. Experimenta então atacar o lobisomem que se escondia na pequena elevação. Em vão. Uiva contra a lua, mas depois que se perdeu por uma oportunidade de refeição, nenhuma alcateia há que lhe dê força e companhia. Uiva mesmo assim, contra todas as regras (já que denuncia o espírito do lugar), como se esperasse apaziguar ou amedrontar a muralha de lobisomens em seu redor.
Corre para o centro do círculo muralhado. Uiva de dor, até parecer que nem se importa de ser domesticado por regras de qualquer família lobisumana que o aceite.

Uiva ainda na esperança de ser ouvido pelo Tribunal Constitucional.

[o aveiro, julho de 2002]
Florestas de papel
Arsélio Martins


As mudanças das formas de vida das pessoas e dos animais, no que tem a ver com o fim da pastorícia e a sua substituição pela indústria da criação de gado e a expansão do acesso a alternativas modernas(?) de energia, acrescentadas do despovoamento do interior a favor do sobrepovoamento do litoral e das cidades, fizeram das florestas portuguesas o que elas são hoje: primeiro tornaram-se pastos para o papel e outros produtos industriais e depois pasto para as chamas. E fizeram das pessoas que insistiram em viver nas aldeias do interior (ou no isolamento total das florestas) velhos sozinhos primeiro e vítimas agora. Ao abandono e desordenamento radical das florestas, acrescentou-se o desordenamento da construção com a expansão de algumas aldeias e vilas e o consequente pânico medieval a lembrar cercos de fogo devastador.

Voluntários, os bombeiros contam-se pelas dezenas de milhar. Em condições normais, os dedicados voluntários com as suas associações chegam para as encomendas de desgraça que o acaso cria. Mas sabemos hoje que a situação vivida (neste e noutros verões) não é obra do acaso, antes consequência de actos de politicas profissionais bem determinadas (para o mal). Para combater consequências de politicas profissionais deliberadas não podem chegar os voluntários das comunidades aptos a enfrentar desgraças ocasionais. E é, por isso, que os voluntários têm de ser erguidos à categoria de heróis. As comunidades têm de criar capacidade de intervenção cívica para compreender e mudar as politicas, para além de manterem a sua capacidade de combate a imprevisíveis flagelos.

A floresta fez-se pasto do papel e de outros derivados industriais da madeira tanto quanto o assunto da defesa da floresta e da sua desgraça pastou no prado do papel. Milhares e milhares de folhas de papel receberam escritos inteligentes sobre a floresta e propostas de medidas para o ordenamento do território. As medidas boas foram todas para o caixote do lixo. Por não ter sido possível reciclar todo o papel escrito sobre o assunto, podemos medir hoje a extensão da ignomínia dos poderes políticos. Substituiram-se uns aos outros até conseguirem uma floresta de cinzas e, quem sabe!, passarem do despovoamento do interior para a desertificação, essa que tanto antecipam e combatem com a língua afiada pelas conveniências.

Agora, os poderosos esperam inundar resmas de papel com notícias de outros acontecimentos que apaguem e façam esquecer os incêndios e as suas vítimas, Talvez tentem ser céleres a enviar tropas para combater emergências americanas noutras paragens, procurando compensar a lentidão em mobilizar para o combate do incêndio no território nacional. O ministro eleito por Aveiro cuidou pouco de funerais dos bombeiros e outras vítimas da incúria, mas ajoelha-se e benze-se em auto de fé anti-comunista que pretende passar por fé patriótica. Nem descanso dá aos mortos na sua dignidade própria. Sem pingo de fé, carrega fel e fogo ao seu sinal da cruz, criando uma notícia de contra-fogo na tentativa de esconder as cinzas do fogo em que arde.

[o aveiro, 21/8/2003]
O josé não escreve por escrever. Eu compreendo-o quando ele escreve nada.
E reconheço que, muitas vezes, mais valera não ter escrito.
Nós procuramos juntar as palavras que sejam em vez de nós, quando não formos.
Nesse ofício juntamos muito lixo. O pior é que quando reconhecemos o lixo, levamo-lo para a rua em frente à nossa porta. A curiosidade dos vizinhos fareja o nosso saco.
O norte de Aveiro
Arsélio Martins

A melhor forma de saborear o norte de Aveiro é viver a norte. Estou a norte da Feira, em Nogueira da Regedoura. Vim pela A1 e saí na portagem mesmo ao lado de casa. Para ir a Espinho, tomo cinco minutos de IC24 e posso tomar 10 minutos de IC1 para a Feira. Para ir ao Porto, tomo 45 cêntimos de restos de A1, tão contestados com as excursões lentas lideradas pelos autarcas de Espinho e arredores. A EN1, do outro lado, caíu nos seus próprios buracos em obras.

Nem falo de Espinho que já é outro concelho e outro mundo em que todos os caminhos vão dar ao Porto, neles incluindo as ferrovias. Lamas e Lourosa (ou Fiães) são grandes aglomerados populacionais, zonas industriais e comerciais. Ora viajamos por largas estradas mais recentes, ora entramos em labirintos mal empedrados sem passeios para peões (que arriscam exercícios de sobrevivência nas voltas do dia a dia). Tento imaginar as redes de água, saneamento e esgotos para esta diversíssima e aparentemente caótica combinação de casas rurais, bairros urbanos, fábricas, centros comerciais. E pasmo a olhar para os locais de recolha de lixos domésticos transbordantes de restos de vida que mais parecem lixeiras a céu aberto e desmentem qualquer boa intenção dos ecopontos em que tropeçamos a cada passo. A câmara autoriza a edificação urbana neste mundo em desenvolvimento(?) sem garantir serviços públicos que apoiem a vida das comunidades fixadas a dois passos da metrópole do Porto ou das suas próprias concentrações industriais. Não será assim com as outras?

Leio os jornais locais. Lourosa, Lamas, etc reclamam autonomia para o norte industrial da Feira enquanto atribuem méritos de programador cultural e turísitico ao presidente da câmara da cidade da Feira. O presidente da câmara feirense desvaloriza as declarações do seu duende partidário Marques Mendes sobre a área metropolitana de Aveiro, a favor da inclusão na área metropolitana do Porto ou de uma região que abarque os municípios correspondentes ao Centro da Área Educativa Aveiro Norte (já ligado à DRE do Porto e ao Sindicato dos Professores do Porto), acrescentada do município de Ovar.

Ouço as pessoas falar e é como se estivesse do lado de lá.
Sei que Aveiro perdeu o norte. E, perdido o norte, desnorteado, Aveiro não é mais que a bela cidade da lágrima de sal. A indignação também chora?

[o aveiro, 31/07/2003]
Exames de consciência
Arsélio Martins


As recentes decisões do governo de que resultaram os adiamentos na publicação dos resultados dos exames da primeira chamada dos exames do 12º ano criaram dúvidas e perplexidades várias.
Houve, há e haverá discrepâncias entre as classificações internas da frequência e as classificações dos exames e entre as notas atribuídas por diferentes correctores da mesma prova de exame. A avaliação e a classificação exigem intervenção humana, logo implicam erros e diferenças de apreciação e diferentes quantificações para classificar as qualidades de cada prova prestada. Salvam-se da subjectividade, que não dos erros humanos, as respostas a perguntas de escolha múltipla. Há discrepãncias que podem e devem ser evitadas ou pelo menos diminuídas. Por exemplo, o sistema de supervisão das provas de matemática pode diminuir as diferenças nas atribuições de cotações, sem diminuir a competência e a autonomia de cada um dos correctores. Mas este acompanhamento dos correctores foi planeado e não afecta a independência dos professores nem o cumprimento dos prazos da afixação dos resultados ou as candidaturas ao ensino superior.
A decisão de planificação e calendarização considera todas as operações necessárias: elaboração das provas de exame, distribuição e recolha de provas, prestação de provas, recolha e distribuição das provas prestadas pelos correctores, coordenações locais, regionaise nacionais, para além de todas as operações do sistema informático exclusivo dos exames nacionais do ensino secundário que servem para o controle da certificação do ensino secundário, mas também suportam os sistemas de selecção para o acesso ao ensino superior. Este sistema armazena dados, desde as identidades até aos resultados obtidos na frequência dos diversos anos de escolaridade e nos exames. E efectua todos os algoritmos de controle e cálculo de classificações como ditam as leis. Há sempre prazos previstos, em democracia, para corrigir eventuais erros. Há sistemas para responder a pedidos de reapreciação de cada um dos despachos da administração educativa, desde as classificações de frequência até às classificações de exame, organizados de tal forma e com calendários tão apertados que garantem não haver prejuízo para reclamantes relativamente ao acto seguinte em que estejam empenhados. A lei não proíbe os estudos… ulteriores sobre esses resultados.

A confiança no sistema baseia-se na independência de julgamento e acção dos diversos actores competentes envolvidos e nunca na intervenção, ainda que sábia, de qualquer poder central sobre os resultados. Não é por isso que confiamos na democracia?

Perturbador nestas decisões é o facto de termos um decisor que marca um calendário com força de lei, publicado em Diário da República, para realizar todas as actividades relacionadas com os exames nacionais e, a meio do processo, decide faxalterar aquilo que planeou e fez publicar como lei. Alguém fez alguma coisa mal. Quem? Se tiver sido o povo, proponho que se demita o povo.


[o aveiro, 24/07/2003]
Profissão: professores.
Arsélio Martins

Nesta semana tomei conhecimento da morte de várias pessoas importantes (também para mim). De algumas tomei conhecimento pelos jornais diários nacionais, de outras por revistas especializadas e uma por telefonema amigo.

Aproveito esta coluna para mencionar duas pessoas ligadas à Matemática e ao seu ensino: Raul Carvalho e Paulo Abrantes.
Raul Carvalho, professor de Matemática, foi dirigente da Escola Superior de Educação de Setúbal antes de se reformar e partir para Moçambique.
Paulo Abrantes é conhecido da opinião pública (de Aveiro, também) por ter sido Director do Departamento da Educação Básica durante o governo de Guterres. Era professor do Departamento de Educação da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.

Porque falar destes professores em Aveiro? Porque são dois dos fundadores de uma importante associação profissional de professores — a Associação de Professores de Matemática — dois impulsionadores e dinamizadores dos maiores encontros nacionais de profissionais do ensino. Fazem parte de uma geração que discutiu a profissão de professor e fez integrar na sua razão profissional, para além da matéria de que é feita a matemática, o mandato social dos professores na discussão e decisão política sobre o ensino da matemática para todos como tudo o que é cultura. Os professores passaram a falar a outras vozes, discutindo as suas práticas e nelas integrando, para além da transmissão da ciência, todas as ferramentas que a profissão exige.

Não sabemos ainda qual o impacto que o futuro mostrará das mudanças que estes dois professores defenderam tão arduamente. Só sabemos como estaríamos diminuídos se as não tivessemos tentado e nos mantivessemos agarrados à certeza de que o ensino da matemática para todos se poderia fazer com os métodos do ensino para alguns poucos ou agarrados à certeza bacoca de que o ensino da matemática (ou das outras ciências) só lucraria em não se adaptar às mudanças científicas e tecnológicas que mudaram a face visível da sociedade e tanto tardam dentro da escola portuguesa. Aconteça o que acontecer no futuro, ficaremos sempre a dever a professores como o Raul Carvalho e o Paulo Abrantes uma outra luz a incidir sobre o ensino da Matemática que nos dá escolha.

O ensino da Matemática não é uma ciência exacta e não admite qualquer limitação à experimentação. Sabemos hoje que, para além do conhecimento da ciência, é preciso aceitar uma caixa de ferramentas em expansão e ter a capacidade de escolher a ferramenta apropriada. A possibilidade de escolher é uma condição da liberdade. O Raul e o Paulo sabiam disso.


[o aveiro; 17/07/2003]
Cálculo da área … metropolitana de Aveiro.
Arsélio Martins

Na última campanha eleitoral para as legislativas concorreram por Aveiro vários deputados do círculo eleitoral de S. Bento. Montaram tendas nas feiras do compra e vende votos e devotos; choraram para a televisão os nossos mortos pela sua incúria; beijaram as crianças e as mulheres que apanharam pelos passeios da distracção que a campanha sempre acaba por ser; pintaram o sete e até cercaram com o giz dourado das promessas as fronteiras de uma área metropolitana. Ministros que eram ou ministros que iam ser passaram a mensagem desqualificadora: a importância da região não era intrínseca, viria a medir-se pela quantidade de ministros de ofício que conseguisse eleger para deputados. Passámos a ser uma região de eleição para ministros, substituídos no parlamento pelos figurantes anónimos e anódinos.

Haverá responsáveis pela actual situação de esfrangalhamento do distrito de Aveiro? Que partidos partiram Aveiro em pedaços – uns mais para a zona de influência de Coimbra, outros mais para a influência do Porto? Se tirarmos as máscaras aos protagonistas da divisão, teremos os protagonistas da união de hoje em todo o seu esplendor?

Os espectáculos que são feitos com a (má)criação de novas freguesias ao sabor das clientelas e o jogo das cadeiras de administradores e directores das empresas e instituições intermunicipais deixam-nos à beira de um ataque de nervos face aos apetites que uma área metropolitana inevitavelmente vai aguçar.

A esquerda apoia todas as iniciativas de planeamento e organização que melhorem a qualidade de vida das populações e simultaneamente protejam a paisagem natural e construída. Da criação de uma área metropolitana de Aveiro podemos esperar melhores serviços públicos, particularmente para a distribuição e tratamento da água, por exemplo, mas também de sistemas de saneamento e esgotos, recolha e tratamento dos lixos, etc. Só a criação e manutenção de serviços públicos nestes domínios pode cumprir as exigências de garantia de serviço a preço razoável (social e não de mercado) e protecção contra qualquer tipo de exploração ou chantagem. O mesmo podíamos e devíamos esperar para uma rede de transportes que sustentasse o quotidiano das populações, contrariando a política do benefício do transporte individual sobre o colectivo ou da criação de dormitórios contra o equilíbrio urbano. As populações não confiam nos autarcas para cumprir promessas de melhoria da vida colectiva até porque sabem que muitos deles dependem dos promotores imobiliários para mostrar obra feita.

Somos claramente favoráveis à criação de autoridades de planeamento metropolitano e regional, envolvendo o estado central, municípios e processos de auscultação das populações. E temos de nos bater pela revisão das leis de ordenamento do território, separando o direito de propriedade do solo do direito de edificação. O distrito de Aveiro, em particular o litoral, está cheio de atentados de betão às leis da vida da paisagem natural e está cheio de contradições que o transformaram numa manta de retalhos que dificilmente pode congregar uma vontade colectiva de união de interesses por uma área metropolitana global. As redes de transportes, as acessibilidade, os locais de trabalho, os dormitórios construídos já afastaram de Aveiro, muitos concelhos do norte e do sul do distrito.

Quando falamos de apoiar a criação da área metropolitana de Aveiro, não estamos a falar da mesma área dos políticos do poder central e do poder local. Mas as discussões e as consultas às populações podem dar frutos insuspeitados. Precisávamos agora que os políticos locais dessem prova de discussão séria metropolitana, por exemplo a respeito do novo processo da incineradora que pode vir a ser instalada no ponto de intersecção de Águeda, Anadia e Oliveira do Bairro. Já não se fala em Estarreja só porque as promessas das campanhas eleitorais seguiram o curso das discussões locais e o PSD estava na oposição ao PS da incineradora? E talvez porque os outros concelhos nunca discutiram o que não se previa para os seus quintais? É um bom tema metropolitano. Bom tema também é a ruralidade, o desenvolvimento concertado dos concelhos e frequesias rurais de Aveiro, como desenvolver sem corromper.

Para calcular a área metropolitana, precisamos de muita matemática, de lógica e rigor nas decisões, … E precisamos de provas de seriedade que contrariem a voracidade dos caciques apoiantes dos diversos partidos que, até agora, têm substituído a competência e o espírito do serviço público.

[diário de aveiro]
O exemplo que se segue.
Arsélio Martins

Ouvimos de novo falar dos atrasos no pagamento do subsídio de desemprego. Particularmente chocante é a situação dos desempregados que não recebem há sete meses. Como vivem as pessoas que não têm salário nem qualquer subsídio? Estes desempregados são pessoas como cada um de nós: operários, trabalhadores do comércio e serviços, professores, artistas, etc. E vivem em algum sítio da mágoa, em alguma dobra deste tempo, entre passado e futuro. O presente destas pessoas é o que esconde a dobra em que os políticos passam o discurso que as sacrifica num altar de salvação do futuro. Estas pessoas deixam de existir e não são mais do que unidades estatísticas para o governo, para os empresários, para os analistas… Claro que na boca dos políticos do poder há sempre palavras de caridade, solidariedade e similares. Mas no que é essencial a boca cai-lhes fina e reptilínea para a verdade:
- umas vezes, em vez das pessoas sem subsídio de desemprego falam de apagão informático em vias de reparação como se as máquinas fossem culpadas de alguma coisa e uma avaria em reparação fosse a reparação das pessoas irreparavelmente abandonadas e prejudicadas nos seus direitos quotidianos;
- outras, as pessoas não são mais do que casos isolados que não são significativos ou não poem em causa a eficiência do sistema, como se cada pessoa pudesse ser não significativa em si mesma e como vítima da maldade do poder e da sua insensibilidade.
É claro que os políticos do poder de hoje nos dizem que sacrificam agora alguns para salvar o futuro de todos, sabendo nós que eles podem não ser os políticos do futuro ou que podem mesmo ser políticos sem futuro. E que quem quer que venha a seguir há-de gerir uma nova crise e inventar as suas próprias vítimas que podem mesmo ser as mesmas.
É claro que quem se interessa pela realidade social e sua evolução, utiliza as medidas estatísticas para descrever o que se vai passando. Mas ninguém de bom gosto pode referir-se a uma pessoa credora de sete meses de subsídio em atraso que é um caso isolado sem importância estatística.
Desta vez, as coisas foram longe demais em crueldade. Mobilizou-se mais dinheiro para enfrentar o problema do desemprego cada vez mais dramático. Mas se não pode chegar a todos já, o sistema não começa a liquidar as dívidas pelos que há mais tempo esperam. Já se habituaram a não receber.
O estado socialmente cruel, mau pagador, incapaz de cumprir os prazos que ele mesmo marca é a primeira desculpa para a insensibilidade dos patrões fracos e maldosos que descapitalizam as empresas e não pagam impostos. Alguns deles exibem, perante aqueles que produzem e a quem não pagam, a majestosa arrogância de uma maquilhagem de sinais exteriores de riqueza a disfarçar a miséria que lhes vai na alma.

[o aveiro; 10/07/2003]
O que se vê de um buraco?
Arsélio Martins

Nesta última semana, os buracos apareceram com toda a falta de elegância de que só os buracos são capazes. São uns autênticos buracos. A alta finança é o mundo dos buracos – fecha-se um para abrir outro; às vezes um grande buraco aparece disfarçado de floresta de buraquinhos. Quem passeia entre os buraquinhos, vê buraquinhos; na fotografia aérea vimos um buraco. De acordo com os interesses, é interessante falar dos buraquinhos umas vezes e outras só tem interesse falar dos buracos de uma tal dimensão que engulam o país.

O melhor buraco, o mais rico de todos, é o buraco do governo regional da Madeira por onde corre o dinheiro a um caudal de milhões/ano . É um clássico e reproduz-se de ano para ano. Mostra-se indiferente à sua contribuição para o grande buraco nacional; orgulhoso na sua gordura de nódoa, ameaça tornar-se um buraco independente. Não cumpre regra alguma imposta pela madre financeira, nem se deixa intimidar pelo tribunal de contas. Faz de conta.
Presta contas como quem não presta.

Outros buracos interessantes são os das sociedades anónimas do desporto financeiro. Destes, o buraco mais espectacular é aquele em que ameaçam enterrar o novo estádio do Benfica que foi erguido para o euro2004 dentro da euroárea. Percebem o buraco? Uns dizem até que nem há buraco e não devemos preocupar-nos. Outros dizem que o buraco tem dimensão da ordem dos milhões. Os responsáveis dizem que o buraco é de uma sociedade anónima do benfica, e esta garante não haver lugar a qualquer responsabilidade da sociedade anónima criada para as obras do estádio pela primeira sociedade anónima. Ainda não conhecíamos o sistema de canalização estabelecido entre os buracos?

E quando são as câmaras a cair no buraco financeiro criado com a construção do estádio para o euro2004? Ouvimos dizer que um buraco criado para um novo estádio não cria buracos onde se deixam cair todas as restantes obras e actividades das câmaras, já que são coisas diferentes. Há alguém que acredite que os dinheiros não circulam pelas canalizações entre buracos? Haverá mesmo alguém que acredite que o buraco do futebol não tenha arruinado o chão que dava uvas para as outras artes e tenha, por essa via, aberto o novo buraco? Em Aveiro, como é? Acreditamos em quê?

O que é certo é que há obras magníficas que se levantam sólidas e sem parar sobre buracos, enquanto outras se deixam cair pelos buracos do tempo com andaimes desequilibrados à maneira de Santa Engrácia.

Esta dança entre buracos tornou-se um desporto. Por ser um desporto com futuro e capaz de animar a actividade económica é grande a atenção que merece. E a teoria manda que cada buraco seja tapado com o entulho retirado de um buraco que se abra. Talvez até criemos uma sociedade anónima de buracos cotada numa bolsa de buracos, que não é o mesmo que uma bolsa com buracos. Só quem está num buraco, pode falar tanto sobre buracos. Onde é que eu ia?

[o aveiro, 3/7/2003]
As festas dos políticos populares
Arsélio Martins

No tempo em que havia festas populares, as pessoas organizavam as suas pequenas coisas ao seu gosto e ocupavam os seus bairros ou a sua cidade para darem largas à alegria que podiam construir enquanto comemoravam ou louvavam algum santo da sua predilecção no seu dia assinalado. Hoje já não há uma única grande festa que seja da iniciativa popular, embora haja mais gente envolvida em cada uma das grandes festas.

A televisão deixou de cobrir noticiosamente as festas, fazendo directos sobre o que vai acontecendo. Faz muito mais que isso. Vai para os locais onde havia a festa popular, monta os seus palcos e faz acontecer outra festa, a sua festa com os seus apresentadores, os seus convidados e os artistas de variedades que contrata. E as pessoas que andavam de um lado para o outro, dançando e falando umas com as outras, assistem agora à festa que lhe propõem e, em bicos de pés, lutam por um fugaz momento de glória nacional e internacional. Os palcos da televisão são animados durante dias inteiros e revezam-se nas transmissões em directo. Em notas de rodapé aparecem ainda as mensagens mais íntimas que as pessoas mandam para a televisão em vez de as sussurrarem aos ouvidos de quem amam.

Diversos palcos são montados, mesmo quando não parecem palcos. Há palcos para artistas de variedades e há palcos para os políticos do poder, cujo papel consiste em aparecer para dizer, por exemplo, que é noite de festa e não é altura para falar de política. Que é afinal o que fazem quase sempre. Aparecem e são encontrados (?) nos lugares públicos por algum motivo e muito raramente por razões políticas. Quem diria? Começo a pensar que não há política que lhes valha e que lhes sobra o espectáculo de estar onde está o povo quando este está em festa e longe dele quando as manifestações são outras. As festas deixaram de ser em louvor dos santos populares e, na maior parte dos andores, a televisão carrega mundanos mais ou menos políticos que não se dão bem com o anonimato popular.

Assim se fez a noite em nome de S. João do Porto, com fogos artificiosos em ambas as margens do mesmo rio Douro e do mesmo partido, com palcos e barcos à deriva pelo continente e ilhas. E também o Santo António de Lisboa tinha sido um produto de televisão.

A comédia dos costumes culturais do S. João do Porto é o cenário da farsa em volta da administração da Casa da Música e lateralmente do Rivoli ou mesmo do Teatro Nacional de S. João. A ignorância que toma as rédeas do poder é uma mula fascinada pelo cavalo que monta. O coice da emenda demora tanto quanto dura uma tragédia em quatro anos de drama.

Santo António e São João já se acabaram. O que nos reserva o S. Pedro?

[o aveiro; 26/06/03]
O homem que dita as cartas.
Arsélio Martins

Vê-se uma cúpula de luz. E ouve-se a multidão dos sons indistintos que ocupam uma grande estação de comboios ou autocarros. A câmara acaba por se fixar numa cara tisnada e cortada por rugas profundas e nas palavras que a boca desdentada solta desordenadamente para o ar. Percebe-se saúde e saudade. Um ligeiro movimento da câmara e aparece-nos um balcão e um computador. Depois um teclado e duas mãos finas espalham os seus dedos ágeis pelas letras. A imagem fixada momentos depois é de uma cara de jovem fardada para a circunstância do seu serviço. Ficamos a saber o que está a acontecer. Naquele ponto de chegadas e partidas, o homem analfabeto dita a sua carta desordenada para a jovem que a organiza para ser impressa e enviada para um destinatário tão longínquo daquele lugar e tão próximo do homem que ganha o impulso para regressar em palavras . Mais tarde no outro lado da mesma vida, os ouvidos do coração destinatário ouvem aquelas palavras, lidas por alguém que saiba lê-las e escreva a carta de resposta ditada como prova de vida e de reconhecimento: - Espero que esta carta te vá encontrar de perfeita saúde que eu vou bem graças a Deus. Gostei muito de saber que estás vivo na grande cidade. Fico cheia de saudades e espero vir a receber notícias na volta do correio.

Com dez milhões de analfabetos, o grande Brasil é atravessado por multidões de deambulantes que, ao procurar terra e trabalho, deixam atrás de si não mais do que as memórias frágeis que se vão desbotando. A mulher que recebe a carta do homem que lhe escreve com as mãos de outro lembra uma boca outra atropelando palavras que não são aquelas que uma carta ditada pode transportar.

No drama filmado, ao lado do engraxador da estação central, a personagem interpretada por Fernanda Montenegro ouvia e escrevia as cartas. Nos envelopes, remetente ou destinatário eram não mais do que um gesto na encenação das grandeza e franqueza humanas. O serviço, que a notícia de hoje nos mostra, talvez tenha sido criado sobre a vida de que o belo e terrível filme não é mais que retrato retocado a sépia. O serviço garante a interpretação do jacto das palavras ditadas e a sua abençoada traição em carta, os envios para endereços fiáveis. E fornece um endereço para as respostas que serão procuradas por quem não habita outra casa além de um canto na estação central. E promete que ensina a ler e a escrever a quem assim o quiser.

Sobre um fundo de barulho da estação, fica gravada a torrente da voz do homem que dita as cartas. A multidão de vozes protege a intimidade da carta ditada a uma só voz.
Nenhuma outra notícia pode sobrepor-se a essa torrente de voz que salta entre vida e filme e vida (de novo filme), subindo os degraus do andaime que montámos para nos restaurar e à esperança arranha-céus.

[o aveiro, 19/06/2003]
O singular abandono do plural.
Arsélio Martins

Em dois momentos distintos da semana que passou senti um mesmo tipo de desconforto.

1. Ouvia dois políticos ou comentadores que falavam sobre justiça, como se vivessem em mundos distintos. Ambos garantiam a sua confiança na justiça e, em particular, na seriedade de cada um dos juízes no acto de julgar cada caso. Ambos consideravam que, na base da lei, das provas e das argumentações das acusação e defesa de cada caso em julgado, era possível e acontecia que os juízes agissem sem intenção maliciosa e sem atender ao estatuto social dos julgados. Mas um dos comentadores argumentava que, apesar dessa singular independência de cada juíz, a justiça era desigual para pobres e ricos. Bastava para isso saber que os meios de defesa se pagam e que isso não pode ser escondido por haver acesso a um advogado oficioso. Nem aludia às estatísticas que mostram que a maioria dos presos são provenientes das classes desfavorecidas. Até podemos ser todos iguais perante a lei e, pelo simples facto de haver muito mais pobres que ricos, mais pobres do que ricos apodrecem nas prisões. Os pobres são a imensa maioria e os ricos são uma imensa minoria? Aceitamos que a desigualdade não está só na justiça? Haver ainda quem negue que há pobres e fracos perante a justiça… acrescenta cegueira e mordaça aos olhos vendados em cada acto de julgar o que pode ser só o que parece..

2. Participava num seminário sobre o abandono escolar aqui mesmo em Aveiro. Espero que a nossa autarquia tenha dado um primeiro passo na compreensão do fenómeno para o tentar travar. Todos podem vir à escola e esta, ou cada um dos agentes educativos, trata todos de igual modo – diz-se. Então o abandono é de um só tipo e é alguma coisa tão independente das classes sociais como pensamos que a escola o é. Não é assim que pensamos. De facto, as diversas camadas sociais tomam lugares diferentes na grelha de partida, conduzem carros radicalmente diferentes e nem as metas que perseguem são as mesmas. Também aqui de nada nos valem as estatísticas. De facto, podemos sempre pensar que há mais pobres iletrados pelo simples facto de haver mais pobres que ricos. O problema é afinal sempre o mesmo? Mas todos aceitamos como certa a necessidade da escola e do que ela pode proporcionar. Só temos dificuldade em gerir as definições nacional e local sobre a escola dos “precisos” para o exercício limpo da cidadania, sendo que o abandono vem sempre da nesga de desacerto entre os “precisos” individuais e sociais a prazo e o que cada indivíduo quer no exacto instante em que está na escola querendo estar noutro lado. Quem é que não confia no futuro que consta das promessas? Também me pareceu ouvir intervenções seguidas em que cada uma delas finge a inexistência do mundo da outra.

3. Certo, certo é que tanto na justiça como na escola para todos não nos sossega baixarmos a percentagem de erros e de abandonos, porque o que queremos é um mundo sem vítimas e… para descalabro basta-nos uma só que seja. Cada comunidade precisa de conhecer as suas vítimas pelos nomes e apelidos para acompanhar os seus processos e, quem nos dera!, fazer com eles o caminho de regresso à casa comum.

4. Enquanto não houver casa comum, esforçamo-nos por alguma causa comum.
Para onde vai o grupo dos 8…

Arsélio Martins





O grupo dos 8 governos dos países mais ricos do mundo tinha o hábito de se reunir aqui e ali para discutir a estratégia dos 8 para o governo global do mundo. Eles acertavam as agulhas para questões, como as da energia e da distribuição de interesses na produção e no comércio mundial, e resolviam algumas das suas divergências. Assim aconteceu mais uma vez na recente reunião de Évian (França). Tiraram-se fotografias de Chirac com a mão no ombro de Bush e anunciaram-se os convites para os churrascos texanos.

Só que de há uns anos a esta parte, o movimento pela globalização alternativa acompanha a agenda das reuniões dos grandes. E lá se foi a tranquilidade. Até há poucos anos, países ou cidades ansiavam por ser anfitriões dos 8. Os movimentos anti-globalização ou pela globalização alternativa estão a criar tantas perturbações e tão graves que as cidades vizinhas das reuniões querem ver-se longe dos 8. Pelo menos, as cidades que precisam da livre circulação das pessoas ficam a braços com movimentos que as polícias do mundo civilizado (?) não conseguem controlar. Ironias.

Ironia maior vem de um país rico, como o Brasil, que combina a maior riqueza de uns poucos com a maior pobreza da imensa maioria, ter eleito para presidente um da multidão da globalização alternativa. Enquanto Bush se propõe financiar programas de investigação sobre a sida para vender os resultados comprimidos, Lula da Silva pede um fundo mundial para o combate à fome e diz que o dinheiro deve vir de imposto sobre a indústria e o comércio das armas. Lula sabe que não há resolução de qualquer problema global, incluindo o da sida, sem travar a miséria real da imensa maioria da população do mundo, e que isso não pode ser feito com “ajuda alimentar”, mas com desenvolvimento sustentado das regiões deprimidas.

No rescaldo da guerra, com as Nações Unidas a caucionar o facto consumado da guerra e a ocupação ilegítima por parte dos países agressores, os grandes reúnem-se para se alinharem na distribuição dos despojos e do saque. E conseguem-no em parte. Só em parte, porque as opiniões públicas e as oposições dos Estados Unidos e da Inglaterra começam a cheirar a verdade que sempre transpirou. Nas suas terras, para as suas gentes, Bush e Blair têm de responder sobre a mentira da ameaça das armas de destruição que não existiam.



Para onde vai o grupo dos 8, vai o mundo. Uma multidão humana de milhares e milhares de pessoas com milhões de perguntas e propostas e uma infinidade de ideias, estas últimas definitivamente impossíveis de controlar. Onde é a próxima reunião dos 8? Não, no meu quintal! - diz quem recusa a lixeira.

[o aveiro, 5/6/2003]
Um dia não são dias. Não?
Arsélio Martins

Por onde eu caminho, o tempo não comeu a vontade de ser feliz e acreditar nas pessoas que conheço e não conheço. Calcorreamos as ruas trocando “bons dias! como está?” sem nos determos um momento a pensar no mal e no bem, porque sabemos que o bem é a normalidade e o mal esconde-se na excepção para ser encontrado e ser transformado pelo bem comum.
Saio assim pelas ruas de Aveiro. Saio de casa e sossego o olhar na relva em frente cercada por uma moldura de árvores que ensinam o caminho às estradas velozes. Olho a praceta Afonso Gomes. É uma praceta cuidada pela cooperativa Chave, a relva está verde e as plantas estão a crescer em todo o seu esplendor. No campo de jogos, dois jovens atacam-se com bolas de brincar.
Atravesso o meu bairro de Santiago e procuro e encontro o sossego das praças públicas entre as bandas de casas. Nestes dias calmos, descansam nos bancos os olhares que vigiam as crianças nas suas aleatórias viagens pela relva. Atravesso o meu bairro de Santiago pelos jardins públicos (só tenho pena que alguns gestos construtivos tenham sido interrompidos e possam ter sido o início da degradação que só os humanos sabem acrescentar), mas principalmente atravesso o meu olhar feliz pelos pequenos paraísos de flores que as mãos dos pobres sabem fazer crescer nas portas de entrada e nas varandas do sonho. Quando o vento é forte (e é muitas vezes forte) caminho apressado. Quando é brisa de Santiago ou quando está muito calor, vagueio pelas arcadas dos comboios amarelos numa viagem de sombra fresca e não me canso desta companhia das cores vegetais em que quero tropeçar. Tudo depende do olhar.
Passo pelo quiosque e o jornal devolve-me uma tristeza fria. Mas persisto no caminho da gente comum da cidade, esta que nos habitua a andar. Passo pela praça do Marquês. Ainda o pó (agora amarelo avermelhado da cama da calçada) nos acompanha na passagem de uma praça em obras com cheiro a pedras e cimento para outra praça com pessoas e cores vegetais. Na rua dos Combatentes, as cores estão penduradas à altura dos olhos voadores e lá em baixo a água para a esquerda acrescenta-nos a serenidade dos espelhos naturais. Quando subo para a Sé, descanso na relva do museu. A Natália C. pergunta-me pela família. As árvores da rua Passos Manuel encheram-me de folhas contra a agressão da poda. Entro no cercado da escola José Estêvão pelo lado das árvores de majestade sem nome. Dentro do edifício, os corredores estão frescos e os jovens atropelam gargalhadas. Deixo que os meus olhos se prendam no jardim nascido entre as pedras do pátio interior de mim mesmo. Entre as casas, dentro das ruas de Aveiro, pé ante pé transporto o ar da vida comum até aqui. Escrevo: “a semana que passou não é só o que está fora de cada um de nós.”

[oaveiro, 29/5/2003]


Os olhos nas máscaras.
Arsélio Martins


A máscara cobre o desespero das mulheres à beira da vala comum que o Iraque foi e desvenda.
Nas últimas semanas usámos máscaras na China, Vietname, Canadá. Para tentar escapar ao contágio da pneumonia atípica, usamos máscara. Olhamos uns para os outros perplexos.
Nas horas de ponta de Tóquio e das cidades mais poluídas, as máscaras brancas começam a colar-se nas caras. Os nossos olhos estão diferentes. E as nossas vozes saem distorcidas pelo medo e pelas máscaras.

Na última semana, os napolitanos andaram de máscara pelas suas ruas. Duas semanas sem recolha dos lixos urbanos e um ar, apodrecido e nauseabundo, vagueia pelas ruas de Nápoles. Há quem diga que tudo talvez tenha acontecido por manobras dos donos do negócio do lixo. O lixo pode ser transformado num negócio fabuloso e, a exemplo de Nápoles, as comunidades podem ser manipuladas por um novo terrorismo. Vimos os carros a abrir caminho empurrando e esmagando sacos de lixo pelas ruas de Nápoles e vimos os perdidos olhos das pessoas em surtidas para as compras do pão de cada dia.

Em Portugal também se falou de lixo, das novas opções para o tratamento de lixos perigosos, mas também para o lixo em geral que não cessa de crescer à nossa volta, como cintura às nossas vidas. As freguesias sobrepovoadas optimizaram de tal modo a ocupação do espaço para os produtores de lixo (que somos todos nós) que não sobra lugar onde se guarde o lixo. E há comunidades a suspeitar de quem lhes compra o quintal para nele depositar as sobras de quem se empilha nas concentrações urbanas. Podemos deixar que o lixo se transforme num grande negócio? Na última semana, ouvimos falar da área metropolitana de Aveiro que vai democratizar ainda mais o acesso aos bens, estabelecer as ligações que faltam, atrair mais gente para a vertigem do desenvolvimento e… para mais lixo. O lixo que depositarmos na definição de políticas nacionais, regionais e locais pode vir a ser morte e mortalha. Conheço localidades do nosso distrito que são tanto dormitórios como lixeiras: as câmaras construiram ou autorizaram a construção das casas sem cuidarem de criar sistemas de transporte e tratamento dos resíduos que concentraram. Esses autarcas usam a máscara da distância para não cheirar o seu apodrecimento.

Olho os olhos assustados de Nápoles nas ruas assoladas pelo lixo que voa das casas e olho como metáfora triste os sacos de lixo que, contra a democracia e o direito, a fúria de Felgueiras atira com as catapultas irracionais.

Hoje mais que ontem, o lixo é uma arma global pronta a ser disparada. Um pouco acima das máscaras, os olhos apontam ao céu azul para distrair as crianças do pesadelo do caminho.

[artigo de "o aveiro" de 22/5/2003]

Fica-me bem dizer que experimentei "blogar" por ter ido ler o abrupto do (meu amigo) pacheco pereira que leio sempre (embora concorde pouco nas coisas da política, muito noutras coisas e goste de ler o que "abrupt"amente escreve. Também já tinha dado uma volta pelo blog do delfim, meu colega de escola. Um brinde à saúde do JPP e do DR que acabaram por me trazer a estas pradarias.
Nem tudo o que se passa é passado.


1. Parece que afinal ninguém procurava neutralizar uma ameaça à paz e segurança dos vizinhos e do mundo quando se invadiu o Iraque. Diz o administrador da coisa americana que se pretendia tão só derrubar um regime ignóbil e devolver o poder ao povo. Mais descansados por saber que não havia armas de destruição em massa fora dos Estados Unidos da América? Estamos menos descansados porque há tantos regimes ditatoriais ali onde o estaleiro da guerra foi montado que isso pode ser tentação a mais para o empreiteiro norte-americano. A julgar pelas manifestações religiosas e o peso dos ayatollahs que regressam. o voto democrático transformará o Iraque em mais um estado islâmico sob as ordens dos chefes xiitas. A guerra preventiva contra o terrorismo pode vir a dar em guerras santas do terrorismo.
2. As nomeação e tomada de posse de Nobre Guedes como membro do Conselho Superior da Magistratura são bombásticas. Autor das cartas de desagravo do nosso ministro da defesa reativamente ao caso Moderna, Nobre Guedes toma o seu lugar de conselheiro da magistratura e todos nós descansamos sobre o acréscimo de independência e imparcialidade trazida por Nobre Guedes ao Conselho. Fica bem Nobre Guedes como membro de um Conselho que decide sobre nomeações, transferências e promoções dos juízes dos tribunais judiciais, bem como nos parece bem talhado para o exercício da acção disciplinar sobre os juízes o autor das tão conhecidas cartas e confesso autor de estratégias interessantes e logísticas a que Portas se manteve alheio. Há quem diga que quem de alheamento se veste, na praça o despe e … se despede.
3. Fátima Felgueiras foge para o Brasil, para fugir da justiça e procurar a verdade que teima em esconder-se dos olhos dos investigadores e dos juízes. A verdade tinha medo de Fátima Felgueiras e pode ser que agora decida deixar-se agarrar pelo rabo. Os apelos de Fátima ao povo de Felguerias partiram-me o coração. Uma carta dirigida a António Guterres, por um ex-vereador socialista, descreve pormenorizadamente o acordo de cavalheiros e a prática dos cavalheiros dos PS e PSD na Câmara da Amadora. Foi agora tornada pública. Apeteceu-nos dizer: Volta Fátima, estás perdoada!
Já ninguém fala dos casos das corrupções autárquicas do nosso distrito de Aveiro. Quem se lembra? Já só se ouve falar de Águeda de vez em quando.
4. Tantas notícias, tão boas e fantásticas! Se não fossem estas notícias, eu atrever-me-ia a dizer que o mais importante da semana tinha sido a terceira Convenção do Bloco de Esquerda. São importantes as teses que analisam a actual situação do país e servem de orientação para a acção política da esquerda socialista nos processos para uma globalização alternativa aos projectos do neo-liberalismo conservador e imperial. Mais importantes ainda são as teses que definem o europeísmo de esquerda. A cidadania europeia (tantos milhões contra a guerra!) passeia-se em movimentos livres… pela esquerda.

artigo de "o aveiro" de 15/5/2003

Vamos começar a falar do mundo a partir de Aveiro, de Aveiro também. Esperamos poder discutir tudo

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