Não há fumo sem fogo

Altas temperaturas e seca são o que falta ao desordenado território português para ser incendiado naturalmente com pouca ou nenhuma ajuda de ventos soltos. Há brilhantes fundos de garrafa perdidos ou guardados na floresta por uma população abandonada tanto pela educação como pelos sistemas de recolha e tratamento de lixo. Há casas cercadas de mato seco. Há mato seco. Há matas secas. Há incêndios por todo o lado e há ainda mais incêndios na televisão de todos os dias. Todos os dias. A televisão serve para nos mostrar o retrato completo da situação, desde a tragédia das populações e bombeiros até às danças dos políticos neste baile mandado da negligência na prevenção e no ordenamento. O que será o desenvolvimento sustentável de que eles falam?
A televisão serve também para nos mostrar a luta dos bombeiros, voluntários na sua imensa maioria, contra os fogos de verão. Os bombeiros são duplamente vítimas da incúria nacional. Queremos que os bombeiros existam e bem treinados para não serem precisos nem usados na realidade quotidiana. Dito de outro modo, os bombeiros deviam ser recursos bem equipados para a excepção. Ora estes dias do verão português são todos de excepção, os bombeiros passaram a ser usados pela realidade de todos os dias e duvidamos que as comunidades e o governo da nação tenham tratado de os recrutar, treinar e equipar para este regime quotidiano que não é o seu por não ser conforme ao voluntariado simples. Vimos os filmes dos acontecimentos e o cortejo das tragédias (incluindo casas destruídas e mortes de bombeiros) e ficamos sem compreender o mundo em que vivemos.
Apesar das televisionadas provas diárias de anarquia na limpeza da floresta e das suas margens e da limpeza em geral, bem como o agravamento dos factores incendiários(incluindo a divulgação intensiva dos filmes dos acontecimentos), ouvimos muitos argumentos a favor da tese de que a maioria dos fogos são de origem criminosa e que isso só pode combater-se pelo recurso a maior severidade nas medidas penais contra os criminosos. Ouvi mesmo argumentos a favor da pena de morte por alguém que lamentava haver um paiol ali perto cercado por intocáveis vizinhos matos secos prontos a serem ateados pelo incêndio em marcha.

Este é um paiol de ideias explosivas. Precisamos de um contra-fogo...

[o aveiro; 18/8/2005]

a lista exaustiva

Mesmo que o não quiséssemos, acabávamos por falar nas últimas nomeações do governo para a Caixa. E o mais natural era não querer, até porque temos opiniões diferentes sobre o assunto ou sobre todos os assuntos. Mas na reunião de um sector alargado da família com entradas ao longo de todo o dia, acabamos por falar de tudo o que nos une e de tudo o que nos divide. Os negócios da política e do futebol acabaram por aparecer nas conversas mais do que alguns de nós desejaríamos.
Para mim, não tem qualquer sentido distinguir em competentes e incompetentes os nomeados pela direcção do partido do governo para cargos ou funções na administração pública (central, regional e local), nas empresas públicas ou em outras instituições dependentes do estado. Para mim, a competência técnica pode ser exercida com salvaguarda do exercício das instituições e das empresas ainda que no cumprimento de políticas diversas. A autonomia dos gestores relativamente aos partidos no poder seria garantia de que a opinião pública saberia das intromissões abusivas ou contra os fins estatuídos. A confiança política não pode sobrepor-se à honra das pessoas, à necessidade da competência para o exercício como não pode substituir-se à responsável prestação de contas pelos agentes que só o podem ser se puderem cumprir planos sem estarem sujeitos aos humores rasteiros do governo. A actual dança das nomeações e indemnizações são da mesma natureza das que foram feitas por outros governos, mas o que soubemos a mais sobre a prática do governo de portasantanetes continuada socraticamente comprova que a degradação moral dos coveiros do regime ultrapassa a nossa imaginação. E o pior é que esta dança se faz entre o público e o privado, o que nos diz que a nível das administrações, os administradores rodam entre o privado e público o que é pouco saudável para todas as partes.
Não acredito que em Portugal não haja pessoas formadas, responsáveis e competentes para compor administrações das empresas públicas e privadas. A conversar sobre o que sabemos, fazemos uma lista exaustiva dos gestores privados e públicos, conhecendo-os dos partidos do poder, das festas de verão, das revistas cor de rosa ou laranja. E é aqui que chegamos a um acordo de pasmados!
Pobre país em que os gestores constam de lista exaustiva que anda na boca do povo.

[o aveiro; 11/09/2005]

Ardem las pérdidas

Una pasión fría endurece mis lágrimas.

Pesan las piedras em mis ojos: alguien

me destruye o me ama.



[Antonio Gamoneda]

danças de verão

O governo decidiu tomar medidas para preservar a imagem do grupo da Caixa Geral de Depósitos. Como é que um governo preserva a imagem do grupo Caixa? Demitindo administradores. Claro!
Nós sabemos que as nomeações de administradores do que quer que seja público não segue quaisquer critérios de competência e é antes uma distribuição de prémios entre políticos que se compram e se vendem no mercado. A nomeação de uma advogada para administradora da Caixa depois de ter sido Sinistra da Justiça não causa espanto a um único português e isso há-de ter uma explicação. Do mesmo modo, a nomeação seguida de desnomeação de administrador da Caixa de um antigo Sinistro da Indústria é coisa da ordem da vulgaridade portuguesa, mesmo que a desnomeação signifique uma reforma milionária. Tornaram-se vulgares as reformas e indemnizações milionárias que são pagas mesmo quando os gestores são dispensados de arruinar uma coisa pública por terem sido recrutados para arruinar outra igualmente pública.

Nós sabemos que o anterior governo usou o banco nacional para distribuir currículos e ordenados de administradores a alguns dos mais feios testas de ferro dos partidos apoiantes, tendo despedido os igualmente feios administradores da batota do anterior governo.

Novidades nesta dança de cadeiras da administração da Caixa? Terem acrescentado mentira à mentira? Dizem eles que diminuíram o número de administradores sabendo eles que nós sabemos que, no que a pagamentos diz respeito, o banco do povo vai pagar e bem a todos os que estavam e ainda mais aos que passam a estar. E não sabemos a quanto monta a indemnização aos que saem. Pode ser que ainda venhamos a saber, louvada seja a democracia por nos permitir ao menos saber o montante do rombo (para não dizer o montante do roubo). Novidade é também o reaparecimento daquele sinistro do tempo de Guterres (colega do Sócrates) que ficou embrulhado em engenharia de fundações por onde escorriam dinheiros do estado sem regra nem roque. Deve ter hibernado numa aceitável prateleira do centrão (na caixa do estado, portanto). Estava a ver que nunca mais aparecia a cobrar pela bitola máxima os serviços prestados ao consulado guterrista pré-socrático!

O Marques Mendes denuncia esta dança como saneamento político. Com toda a razão! Não é espantoso este nosso eleito Marques Mendes? Perspicaz! A minha mãe acrescentaria: E sem vergonha naquela fronha!


[o aveiro; 4/8/2005]

Para onde vais?

Daqui a pouco, desligo-me da máquina. Há quem pergunte se devo desligar-me da máquina.
Há vida para além da máquina? Se voltar... direi se há. Se não há, não volto. Não é?

Animal doméstico

A Cristina marca o hotel para as cachorras quando tem de sair em férias ou até mesmo em trabalho. Já que tem de os abandonar por algum tempo, abandona-os em beleza e com direito a massagens, beijos e corridas em campos de golfe.

Há quem não tenha cuidado algum com os seus animais domésticos e os abandone de qualquer modo. Nos últimos dias, recebi vários apelos a respeito de animais abandonados, quase todos cães, um ou outro gato. A associação "Animal" fez uma campanha com cartas à Administração Interna e a um Presidente da Câmara a protestar contra o abandono de muitos animais domésticos (ou não domésticos? em cativeiro?) numa vivenda. Não recebi notícia de abandono ou morticínio de animais de outras classes e espécies que são, como eu, mais ou menos domésticos (no sentido de que nos acompanham todos os dias) e não sei se isso é sorte deles.

Neste tempo de férias, eu sinto-me o animal doméstico que foi abandonado por quase todos no seu quadrado. Estou a a pensar até em mudar de nome para Arsélio Alegre.

a chave



não se abrem portas
ao topo das escadas

mas eu quero trepar

não pensar: trepar
até às portas do céu

a chave que as abre
não é uma palavra

como o desejo não é.

O mau tempo que se faz sentir.

Estas últimas semanas que por nós passaram a correr deixaram-nos para trás suados de calor e... de medo. O calor propriamente dito apareceu acompanhado pelo terror nos vários países do mundo agora acrescentados dos Reino Unido e Egipto. E pelos incêndios nas florestas (e fora delas) muito por todo o país. E por candidatos à Presidência da República. E por mais um Ministro dos que espera para chegar a Ministro das Finanças para mandar notificar-se a si mesmo sobre a necessidade de apresentar a declaração relativa aos impostos. E por mais um discurso incendiário de Alberto João Jardim.

Muito mau tempo. Muito mau mesmo. Até me custa escrever, mas... ardentemente espero uma nesga de bom tempo que para mim é, só pode ser, tempo fresco e molhado. Para apagar velhos incêndios e evitar novos incêndios, para arrefecer ânimos, para estragar a estação tola da espuma das cervejas e das ondas neste ano doente, para nos devolver a esperança da água doce e fresca.

É por isso que eu não consigo compreender os meteorologistas e locutores da televisão que, apesar dos incêndios e da falta de água para beber, para a agricultura e pecuária e de outros tremendos dramas que o calor dilata, chamam bom tempo a este tempo de calor e mau tempo a qualquer arrefecimento ou ameaça de chuvisco. E quando, como aconteceu hoje, tendo de falar da possibilidade de aguaceiros, falam de possíveis melhorias só lá para quinta feira com ar de quem lamenta a curta interrupção no inferno em que vivemos.

Onde é que vivem estes tipos que falam deste calor doente como sendo bom tempo? Não vivem no mesmo país que eu. Vivem com gosto na tripa de areia e betão que não está a arder, numa foz para onde corre a água das nascentes do país da seca.

Dou comigo a rezar por bom tempo - fresco e molhado em todo o país. Se Deus for grande, e quiser agradar a todos os gregos e troianos, que distribua bençãos agradáveis a todos. Pode deixar cair sol inclemente na eira deste hospital psiquiátrico do bronze, melanomas e afins. E deixar cair a água onde ela é precisa para apagar incêndios, para nos regenerar e repor a água necessária à vida.

Até porque suspeito que nesta terra de bueiros entupidos pelas folhas e pelo bom tempo, muita chuva dá inundação. Deus nos livre e guarde, já que a câmara pode estar entupida até não ver.


[o aveiro; 28/07/2005]

desde a radiografia

Já não lia um poema tão bonito desde o relatório que acompanhava uma radiografia aos meus pés, lembro-me bem.
Agora, de novo, por ter visto o seu esqueleto, o mesmo amigo dedicou às minhas mãos alguns versos que não resisto a tornar públicos:


observamos radiogramas em incidências
de face
e oblíquas.
a nível das articulações
carpo-metacárpica do primeiro
dedo de ambas as mãos
e interfalângicas distais vemos
fina
osteofitose no rebordo das superfícies
arrticulares, compatível com alterações
de osteoartrite.

alterações de idêntica etiologia estão
presentes a nível da articulação
interfalângica proximal
do quinto dedo
da mão esquerda.

quantas pedras?

quantas pedras amarras ao pescoço
como colar de contas a prestar

e, sem ninguém para te empurrar,
desceres até ao fundo do teu poço?

sob o piscar dos olhos

A ave caída está cega e não pisca os olhos;
olhando-a me parece que ela não dorme.
Será que por ser cega lhe cresce a fome?


Como posso eu não piscar os olhos enquanto me desvio
se fascinado sinto o bater da asa do seu desejo como arrepio?
A correr fujo de medo. Mais alto que o seu agoirento pio
solto dos velhos pulmões o último fôlego ... num assobio.

Má Nota de Si. Dá Dó!

1.

O que fazem os instantâneos detentores do poder político quando não podem esconder por mais tempo um problema que não se resolveu com o tempo e ameaça espalhar-se como doença que tudo decompõe? Cobrem-no de cores ainda mais mórbidas, pegam nele com ar de nojo, atribuem-no aos instantâneos do passado e, sem olhar a meios e ao que foi feito para combater a doença, apresentam um novo estudo, um novo projecto, uma nova comissão,..., e ao céu e à terra garantem a mudança necessária. E constrói-se o milagre das aparições, em horário nobre, de salvadores especialistas do que é preciso fazer para as almas do futuro. Passados uns anos, a história repete-se e, em vez de olharmos para o que se fez e para as consequências das decisões anteriores, damos connosco a ver a televisão repetir a mesma farsa com novas (?) caras.

Entretanto, a doença alastra e os novos instantâneos (não serão sempre os mesmos?) podem esbanjar ainda mais meios em novos estudos, projectos, comissões,..., mudanças. E é assim que, sem cumprir qualquer programa no tempo de uma geração, aparecemos aos olhos dos estranhos como os fantásticos proprietários de ideias sempre actualizadas, leis mais avançadas, inovadores projectos, etc.

Há também quem tome cada projecto experimental localizado pelo que está acontecer na realidade e lhe atribua o fracasso geral para exigir outros meios para novo projecto. Com a espuma de um mar de experiências, que nunca passam disso, gastam-se os meios de que a realidade ou a natureza precisam para as suas transformação e recomposição.

É certo que experiências e projectos nos servem de guia. Mais certo é que precisamos da persistência e perseverança nas práticas decentes, em prazos longos, para saborearmos resultados verdadeiros. Em educação, mais do que em tudo o resto. E é principalmente na educação e ensino que os ciclos curtos de maluqueira acabam por substituir a mudança por coisa nenhuma e permitem a persistência de "velha(ca)rias" nas práticas sociais (da docência, por exemplo) com seculares maus resultados.

2.

Os maus resultados da Matemática (tanto nos exames do 9º ano, como nos exames do 12º ano ou nos estudos internacionais) têm servido para confirmar aquela tese. Ainda não tinham entrado em vigor novos programas e tudo estava como dantes e as novas comissões criadas para a tragédia atribuíam aos programas (que talvez fossem entrar em vigor) a responsabilidade dos maus resultados. Fizeram isso ainda há pouco tempo e obtiveram tal sucesso que os programas pensados para umas condições foram postos a funcionar noutras.

Mesmo assim, apesar de não ter sido cumprido qualquer ciclo sobre esses programas... voltamos a ver a cena. No básico e no secundário. E não é só o governo (velho, novo ou que há-de vir). Não! São especialistas diversos que aí estão para garantir que um novo projecto vai nascer sobre as cinzas de um passado a queimar. Só que não queimam o passado passado. Queimam o que ainda mal passou de papel, de que - garanto-vos eu! - está a ser esboçado em múltiplas adaptações de papel.

Os conteúdos de ensino da Matemática não mudam há dezenas de anos. Mas isso não inibe um professor ou um responsável de afirmar que o programa de papel passado está tão cheio de indecisão nos conteúdos que não se sabe onde e quando se ensina isto ou aquilo.

Passamos a vida a estudar e a escrever papéis... que alguém há-de queimar como se eles fossem realidade social para além de papéis. Escrevem-se novos papéis, tanto para incendiar a floresta como para que fique na mesma o essencial da realidade do ensino. Costumo falar da nesga do meu tempo, como quem fala de uma dobra do tempo. Um saudável pessimismo está a atirar-me para os braços da melhor designação que é "falha" no tempo.

3.

No país-piloto da civilização, a época de exames coincide com a época de fogos. Tanto os exames como os fogos se combatem com trabalho planeado e persistente e não com o espectáculo dos projectos efémeros. De cima chovem maus exemplos quando nós precisávamos de água verdadeira. Não há milagres verdadeiros!

Má nota de si dá dó!




[a página da educação; agosto de 2005]

Mandaram-me este recado

"Um fascista grotesco"


Alberto João Jardim não é inimputável, não é um jumento que zurra desabrido, não é um matóide inculpável, um oligofrénico, uma asneira em forma de humanóide, um erro hilariante da natureza.
Alberto João Jardim é um infame sem remissão, e o poder absoluto de que dispõe faz com que proceda como um canalha, a merecer adequado correctivo.
Em tempos, já assim alguém o fez. Recordemos. Nos finais da década de 70, invectivando contra o Conselho da Revolução, Jardim proclamou: «Os militares já não são o que eram. Os militares efeminaram-se». O comandante do Regimento de Infantaria da Madeira, coronel Lacerda, envergou a farda número um, e pediu audiência ao presidente da Região Autónoma da Madeira. Logo-assim, Lacerda aproximou-se dele e pespegou-lhe um par de estalos na cara. Lamuriou-se, o homenzinho, ao Conselho da Revolução. Vasco Lourenço mandou arrecadar a queixa com um seco: «Arquive-se na casa de banho».

A objurgatória contra chineses e indianos corresponde aos parâmetros ideológicos dos fascistas. E um fascista acondiciona o estofo de um canalha. Não há que sair das definições. Perante os factos, as tímidas rebatidas ao que ele disse pertencem aos domínios das amenidades. Jardim tem insultado Presidentes da República, primeiros-ministros, representantes da República na ilha, ministros e outros altos dignitários da nação. Ninguém lhe aplica o Código Penal e os processos decorrentes de, amiúde, ele tripudiar sobre a Constituição. Os barões do PSD babam-se, os do PS balbuciam frivolidades, os do CDS estremecem, o PCP não utiliza os meios legais, disponentes em assuntos deste jaez e estilo. Desculpam-no com a frioleira de que não está sóbrio. Nunca está sóbrio?
O espantoso de isto tudo é que muitos daqueles pelo Jardim periodicamente insultados, injuriados e caluniados apertam-lhe a mão, por exemplo, nas reuniões do Conselho de Estado. Temem-no, esta é a verdade. De contrário, o que ele tem dito, feito e cometido não ficaria sem a punição que a natureza sórdida dos factos exige. Velada ou declaradamente, costuma ameaçar com a secessão da ilha. Vicente Jorge Silva já o escreveu: que se faça um referendo, ver-se-á quem perde.
A vergonha que nos atinge não o envolve porque o homenzinho é o que é: um despudorado, um sem-vergonha da pior espécie. A cobardia do silêncio cúmplice atingiu níveis inimagináveis. Não pertenço a esse grupo.



Baptista Bastos
b.bastos@netcabo.pt

Má   nota

Sete em cada dez estudantes portugueses tiveram classificação negativa nas provas de exame de Matemática do 9º ano. E da primeira fase de exames do 12º ano, ressalta que é negativa a classificação média dos estudantes portugueses que concluiram positivamente a frequência do ano escolar. E ela tem vindo a baixar nos últimos quatro anos.

Estes resultados negativos são consistentes com os resultados das provas de aferição e com as prestações dos estudantes portugueses nas provas internacionais.

Estes resultados revelam que a escola pública (e a privada também) está a falhar. Se acreditarmos no que se diz sobre as explicações e a sua generalização a uma grande parte dos estudantes, o falhanço é ainda mais dramático. Aparentemente, as famílias estão a gastar o que têm e o que não têm, aceitando que os jovens não trabalhem na escola e pagando mais falta de trabalho fora da escola.

Temos de saber que, para lá de todas as razões, há falta de disciplina e de trabalho dos estudantes e das famílias que mobilizam pouco os recursos disponíveis tanto quanto nos é dado ver no dia a dia das escolas. Tanto quanto nos é dado imaginar pelas reacções aos resultados dos estudantes e da comunidade em geral. Há uma certa displicência nacional inaceitável.

Temos de saber. Temos de discutir para evitar que todas as apreciações da situação apareçam derrotadas e sem sentido por atribuirmos todas as falhas a uma mutante entidade abstracta que muda com os governos que mudam as políticas. Temos de saber que o problema da educação é um problema nosso e que nos cabe a nós todos a responsabilidade de fazermos diferente, impondo disciplina e trabalho constantes que se sobreponham a políticos e políticas inconstantes e à indisciplina que o aparelho deste estado está a criar. [Afinal temos de fazer as pequenas revoluções opostas às reformas desta união nacional de multireformados palradores. Sabemos hoje de que é que eles falam quando falam de impulsos reformistas e da inevitabilidade das reformas da sociedade. Falam das suas reformas antecipadas e da sociedade anónima em que transformaram o país, como o mau exemplo... a não seguir.]

Temos de saber que nos podemos salvar. Opondo trabalho persistente à tralha arranjista e negocista. Podemos passar nos exames trabalhando. Podemos exigir de nós e das escolas. Podemos contar connosco. Nada de conformismos! Quem precisa de mais explicações? Não vale a pena dar mais explicações para tão maus resultados.

[o aveiro; 21/07/2005]

o dia sumário

Este último dia da minha vida fica ligado ao sumário do Geometria. A classificação dos artigos pelas categorias escolhidas é um problema. Não se trata de um índice remissivo, nem de um glossário. Para já é só uma arrumação. Para já é só uma experiência (em construção, sempre!) de arrumação por assuntos. Nada é fácil. E começava a ser cada vez mais difícil manter a coisa tal como estava. O desenvolvimento que se vai seguir exige o aperfeiçoamento do trabalho de arrumação e de pesquisa. Pode ser muito interessante experimentar o trabalho da geometria interactiva usando as funcionalidades diarísticas do "blogger", mas tudo tem um limite. Vamos indo e vamos vendo. Se houver alguém que queira dar alguma sugestão e ajuda, nós aceitamos. Para já estou farto deste dia sumário.

O crime despido.

Quem nunca se deixou afundar em irracionalidade e aceitar ou justificar perseguições, deportações, guerras, invasões, assassinatos? Em nome disto ou daquilo, de pequenos deuses, nações e interesses quem não seguiu as palavras de ordem dos pequenos lideres do nosso mundo para participar, ainda que contrariado ou cheio de medo, em doentios delírios colectivos? Se não participamos directamente, fincamos os pés no nosso chão e, em defesa dos "nossos", justificamos o injustificável. Na nossa história, quantas vezes? Na história dos outros, quantas vezes?
Estamos a chegar ao tempo do mundo pequeno demais para não sabermos reconhecer as vítimas ou os carrascos nos acontecimentos que nos são relatados em detalhe enquanto acontecem. Mesmo que fiquemos a milhares de quilómetros não deixamos de ver as caras das vítimas. Como se fossem nossos vizinhos. Na semana passada, reconhecemo-nos a viajar de comboio e autocarro em Londres e ouvimos as explosões e os gritos de terror. E reconhecemos, com os londrinos, que não podemos deixar de sair para os autocarros e comboios do dia seguinte.
Para vivermos nas nossas sociedades abertas temos de olhar para o que acontece, para o que pode acontecer-nos, com olhos de ver tão bem ao longe como ao perto. Usando modernas lentes progressivas, sabemos que nenhuma razão (política, religiosa ou outra) justifica a morte de inocentes ou qualquer dos ferimentos físicos e psíquicos deliberadamente infligidos. Nestes últimos acontecimentos, não consigo nomear qualquer política, não consigo falar de terrorismo político ou religioso. Já só posso nomear criminosos e constatar crimes hediondos.
Não é possível continuar a justificar politicamente ou a dar razões políticas para a demência criminosa. Os crimes de Londres vão ser muito provavelmente assumidos e atribuídos a criminosos que vivem na Inglaterra. Podemos vir a saber que eram fanáticos religiosos ou outra coisa qualquer, mas isso não os torna menos vulgares criminosos, sem razão e sem coração.
O nosso pequeno mundo não pode embrulhar em razão política os criminosos sérvios (ou quaisquer outros) que continuam a monte após os 10 anos dos massacres, como não pode deixar de perseguir criminosos terroristas, fabricantes e negociantes de armas, criminosos ditadores ou modernos senhores da guerra, incluindo os promotores das guerras que, em defesa dos valores sagrados da nossa civilização, transformam os sacrifícios de inocentes em danos colaterais.

Todos os dias, as liberdades acenam gestos de paz. E de combate.

[o aveiro; 14/07/2005]

sons do corredor.



ouve!
usa os sentidos
todos como os ouvidos
todos que algum dia houve.

noutro lugar
podes respirar.

desenho, logo existe



salvem-se sonhos da mais antiga das velhas arcas
aonde poise luz coada pelas nuvens em teu regaço

travestida imaginação em calças das mais largas
abra o pano do teu riso à minha pirueta de palhaço.

desenho, logo existe



os sonhos existem

e resistem

começo

quando não me apetece o futuro sei que em algum lugar adiante no tempo estou perdido num instante que existe e me escapa sem eu saber por onde se escapa.
começo a desconfiar que aquilo que sempre me disseram sobre a fragilidade do sagrado é verdade e que nenhuma divindade ou inspiração vital se dará a ver ou será adivinhada como forma em dobra de cortina.
enfunadas pelo vento repentino que parte do tal instante adiante para a depressão cavada no meu corpo como um corredor para a corrida dos animais ferozes em retirada, as cortinas armam-se em velas e nem os mastros do navio as seguram a este mundo partindo elas antes do naufrágio que não puderam evitar.
porque é que me sinto um náufrago andrajoso a quem falta tudo até a vontade de encontrar terra e uma enseada é o que te pergunto mais a ti do que a mim sem soltar um único som.
quando não me apetece o futuro deixo-me andar de um lado para o outro e nada do que não interessa me escapa para me doer aí no lugar mais improvável a que a razão chama coração.

o não dito

o que é que ainda te não disse? eu sei que o que te não digo é tudo quanto precisava de te dizer.
que interesse pode ter dizer-te o não dito?
dizer o não dito a quem?
o não nomeado não existe.
o não dito não existe senão nesta afirmação da existência do não dito.
defendo-me dizendo que o que é só pensado é um não dito.
(outras vezes penso que o que penso é tão fortemente dito que não podes ter deixado de me ouvir.)
sei que pensar coisa que se saiba tem de ser composto mentalmente ou dito para dentro.
o que é dito para dentro fica entre os não ditos?
agora porque assim penso e o escrevo não considero os meus pensamentos entre os não ditos.
sei com toda a certeza que são mal ditos talvez malditos.

nada mais que isso. quem me ouve? o que pensa quem lê? a quem eu falo? ninguém fala comigo enquanto me afundo ou sou eu que não entendo os sinais?

a grande escada

a grande escada
por onde sobes
cansada
tem um patamar
para gestos lentos
desatando
os cabelos brancos


desespero como se fosse
quem não ouve
o vestido roçar
como quem não vê
a janela onde espreita
o decote vermelho
vivo dos lábios


como se fosse quem
depois
do último degrau
de braços abertos
te espera sentindo e sabendo tudo
e até que não vens.

o absurdo que dói

A minha vida é um copo de tempo vazio de dores. É tão banal que há pessoas convencidas da minha extrema banalidade e, logo, da minha (in)felicidade feita de rotinas (in)felizes.

Numa noite já passada, o meu filho guiava o automóvel que nos trazia do Porto para Aveiro. De repente, na auto-estrada, pus a cabeça fora da janela. Podia ter perdido a cabeça se ela tivesse voado inteira para longe da parte do corpo que, incapaz de voar, ficasse preso ao assento. Em vez disso, voaram os óculos e foi como se a cabeça que olha tivesse voado com eles.
Por ter deixado de ver claramente, o princípio da minha passada semana fez-se um copo de tempo cheio de problemas. Com antigos óculos fui vendo o que precisava até que enjoei e passei a sentir-me tão miserável que o meu copo de tempo transbordou de tristeza. Cada pequena dificuldade passou a ser tudo e convenci-me que o que dói a cada pessoa pode ser a dor do mundo, ser o mundo dorido a vaguear nos nossos nervos e medos. Da dor e da impotência nascem desesperos e raivas surdas, partes do sentimento de quem se sente para ser filho de boa gente.
A doença acabou expulsa pela minha resistência interior, mesmo sem ter sabido de ordem da cabeça que pensa e devia conduzir as operações no campo de batalha do meu corpo. Tenho estado a escrever sobre as minhas maleitas e das ideias tenebrosas que podem assaltar quem sofre ainda que pouco.

Agora imaginem o sofrimento físico e psíquico das pessoas adultas que ficam sem emprego num dia qualquer e recomeçam a vida como uma via sacra dolorosa em busca de outro emprego quase impossível (a confiar nas notícias), sendo que isso significa procurar alimento e fé para si mesmo e para dependentes, filhos ou não.
De cada vez que um patrão ou um político desvaloriza cada desempregado como coisa pouca a somar a outra coisa pouca, agita uma mistura de desespero, desesperança e raiva. Esta mistura já é perigosa em si mesma e, à pressão da vida de todos os que sofrem, ganha um detonador apropriado no comentário da moda que banaliza este sofrimento individual e colectivo.

Convencidos da impunidade de novos-ricos cegos, alguns jovens comentadores a brilhar hoje ainda não sentem o rabo que lhes atrapalhará a fuga por ordem do medo do irracional que ajudaram a criar, palavra a palavra.

O que faz mover o mundo? O absurdo que dói.

[o aveiro; 7/07/2005]

segundo

dá-me o nome da tua rua
e o número da tua porta

não quero saber quem és
nem em que andar moras

só quero esperar-te
para te ver partir.

até à foz

eu quero beijar um rosto
que se desfaça
mas não em lágrimas como nuvem

eu quero beijar um rosto
que se desfaça
mas não em nada como a divindade se desfaz

eu quero beijar um rosto
que se desfaça
mas não de faz de conta como faz o tempo

eu quero beijar um rosto
que se desfaça
como o meu se liquefaz na tua sede.

o casario



no chão de minha casa,
o casario.

o teu canto

Tanto te desejei. E, ao mesmo tempo, desejava
uma paz sem desejos, inerte, a paz do cemitério

para onde me carregavam em ombros os dias
que já passaram e os que ainda hão-de passar

até que eu faça o caminho de olhos fechados


para tudo e se parece que em vida por nada me espanto
é porque nada me espanta... nem mesmo a vida:

esse teu canto.

dia de don juan

(...)
Chamamos reunião-n a qualquer união de n conjuntos singulares. Para além dos elementos ou presenças, a cada reunião é associada um intervalo de tempo. Para uma reunião de n elementos (reunião-n) e para q inferior a n, chamamos reunião q-desesperada à reunião de n elementos em que q elementos desejaram que ela se tivesse realizado num outro intervalo de tempo ou num tempo que não existisse. Uma reunião-n q-desesperada é quasi-desesperada quando q=n-1. Convencionamos que qualquer reunião-1 é trivialmente quasi-desesperada já que os que ficam a falar sozinhos não contam. Uma reunião-n é desesperada quando é n-desesperada.
[Também não interessa a quem quer que seja saber porque é que eu considero quasi-desesperadas as minhas reuniões do dia de don juan, mas posso garantir que tudo o que aconteceu nesse dia pode não ter a ver com qualquer das definições da teoria que começo a desenvolver. Para mim, ou do meu ponto de vista, uma reunião é pessoalmente desesperada quando eu não estou interessado nela ou porque ela me dói qualquer que seja o motivo ou a falta dele.]
Há reuniões que começam nada-desesperadas e acabam quasi-desesperadas. Naquele dia de don juan, ninguém podia ser indiferente ao meu sofrimento e a reunião acabou por ser interrompida no momento em que acabava. Há sempre pessoas atentas ao meu sofrimento e não se incomodam quando eu interrompo as reuniões saindo para o ar como o ar viciado sai de um pulmão qualquer. De certo modo, muitas reuniões quasi-deseperadas passam a não desesperadas quando deixam de contar comigo como elemento. De certo modo, podemos encontrar alguma coerência nisto. Quem me conhece percebe bem o que quero dizer quando digo que uma reunião pode passar a desesperada pelo simples facto de contar comigo. Podemos dizer que contar comigo é condição suficiente para que uma reunião seja quasi-desesperada. Há mesmo quem tenha percebido que um mundo de reuniões felizes é possível sem mim e não é possível comigo.

As reuniões do dia de don juan? Não têm qualquer interesse. Só interessa cada uma das pessoas. Há cada uma!

(...)

dia de don juan

Na quinta feira, de madrugada, no regresso da noite do Porto, meti a cabeça de fora da janela do carro, em andamento acelerado numa auto-estrada, e deixei que os óculos voassem como voam os chapéus e as fitas do chapéu. Sabia já que, para voar, ser ave não é condição necessária. Aliás, a julgar pela aerodinâmica das galinhas que conheço, também não basta ser ave para voar. À lista de objectos voadores acrescentei eu óculos. Da próxima vez hei-de experimentar brincar com bróculos, já que, caso estes decidam voar para longe, é mais barata a sua substituição.

Fiquei a ver mal. Pelo tacto, consegui encontrar alguns óculos antigos que fui encavalitando no nariz até parecer que vejo aumentando o tamanho da letra no computador. Escrever não é problema. Sempre escrevi mal e posso continuar a fazê-lo já que pouco tem a ver com os olhos ou com a cabeça.

Chegados que fomos à sexta feira - dia de don juan - encontraram-se na biblioteca da minha escola finlandesa um grupo excurcionista de viciados em semanas de 50 horas de serviço público. Só que quase metade deles vinha da noite do porto do dia anterior, com mais ou menos sardinhas e mais ou menos desgostos demais. A acrescentar a esse desgosto de ser turista do Porto à luz do dia de don juan tiveram de manter-se acordados, vendo, ouvindo e falando comigo.

[Habitualmente já é dose letal qualquer encontro comigo e é, por isso, que mudam de passeio ao ver-me. Assim acontecerá mesmo quando for a enterrar por um daqueles estreitos carreiros empedrados que a câmara desenha para facilitar o trânsito dos novos mortos no cemitério. Isso será outra história.]

(...)

Sociedade dramática

Meses e meses de trabalho a ensinar e a aprender e ninguém nos liga coisa alguma. Ninguém está interessado no que ensinamos e muito menos no que aprendemos, dia a dia. Todos pensam que esse labor quotidiano nem existe. Para todos os efeitos essa escola do dia a dia é uma sociedade recreativa. Fora da escola todos têm a certeza sobre a sociedade recreativa de estudantes e professores. O melhor do mundo são as crianças - disse o poeta. O pior do mundo são os professores e já não há professores que prestem - diz o pateta.

Um locutor da RTP1 disse que os jovens procuram nos professores explicadores a explicação sobre aquilo que os professores professores não sabem explicar nas salas da sociedade recreativa. Não há tolo que não acredite piamente nas suas tolices. Tolices professorais são inventadas por professores que desertaram.

Ao chegar a época dos exames, a sociedade recreativa apresenta-se como sociedade dramática e toda a gente quer saber o que fazemos em todos os minutos do dia a dia desta sociedade. E toda a gente, que não quis saber o que ensinamos nem o que disso sobrou em aprendizagem, quer saber o tamanho do que os alunos escreveram como respostas nos exames mais de consciência que de ciência. Se cada acto do dia a dia do ensino pouco ou nada vale para fora da escola, já cada acto e acontecimento do dia a dia dos exames é tudo, é o todo, é o drama, é o clímax, é ... o máximo. Não é? Em tempo de exames, cada palavra de ministra ou secretário de estado é amplificada pelo megafone do drama sindical. Cada acto legítimo dos sindicatos agiganta-se no medo de governantes que falam e não fazem o que deviam e dizem fazer. E até aconteceu, neste país dramacrático, ver professores e educadores a chorar e a lamentarem ter sido obrigados a assinar contra sua vontade isto ou aquilo por medo de represálias. Temos de confessar que assim é difícil imaginar a escola da educação cívica, se ainda for verdade que civismo tem a ver mais com a coragem da decência que com a docência. O que nós passámos para aqui chegar. Aqui? E agora, 30 anos depois da revolução democrática!

Para completar o meu desgosto, vai o Presidente da República até Leça do Bailio, do alto seu senso comum, confirmar-nos que, como outros políticos, não conhece as escolas portuguesas e conhece as escolas finlandesas. Alunos finlandeses informaram o nosso presidente que, por semana, têm 22 horas de aulas e os professores estão pela escola 50 horas para os apoiar em tudo o que é preciso. Para o nosso Presidente poder concluir: "Está tudo dito!"

E eu? Eu quero ser um professor finlandês.


[o aveiro; 23/06/2005]

A partida

Recebi uma carta. Escreve o meu amigo: Quando soube da morte de V. Gonçalves, tive a intuição que A. Cunhal se seguiria. Não gosto destas intuições se bem que baseadas em cálculos de probabilidades...

Escrevo uma carta: Lá mais longe, onde o amarelo das searas dá lugar ao azul do céu, um poeta declama o silêncio. As palmas das mãos abertas ao vento norte, o poeta vira as costas a esta vida, ao sul do sol. Que frágil espelho separa a vida da morte!

Escrevo uma carta: Nós pintámos paredes quando o que queríamos dizer não cabia na voz. Enchemos a vida de fantasias e de fantasmas, companheiros de viagem, passageiros amores ou passageiros ódios que acendiam as nossas noites de Abril. Há dias em que nos parece que a memória não vai chegar para tantos fantasmas que decoram a multidão das paredes da nossa vida. E, no entanto, sabemos deles por os termos ouvido falar ou termos visto como caminhavam ou como piscavam os olhos quando nos olhavam sem nos ver.

Recebi uma carta. Escreve o meu amigo: As mães, hoje, perante as asneiras dos filhos nos autocarros, dizem-lhes alto "É isso que te ensinam na escola?" quando dantes, envergonhadas, diziam "É isso que te ensinam em casa?"

Pergunto-me muitas vezes como é que a escola nomeia os nossos fantasmas a quem os não conheceu. E muito menos sabemos como os nomearão as mães. Porque nós não vimos um filme nem ouvimos uma história. Porque vivemos o filme e vivemos a história, em cada partida do destino, perguntamos pelas sombras das nossas paredes. Na minha escola, havia um quadro na parede, desesperadas lantejoulas feitas de escamas brilhantes coladas no pano crú que é o melhor fundo para o poema de Eugénio que, no quadro, se pode ler bordado a linha verde esmeralda. Quem o irá ler?

Há dias em que nos lembramos que é a nossa vida que está de partida para outro lugar na memória. E percebemos também que é, por não nos habituarmos ao presente do futuro, que inundámos o nosso vale de sombras.

Como será nomeado o nosso tempo? Que dirá a escola sobre o que fomos? Que dirão as mães aos filhos? Nestes dias, em que os nomeados do nosso tempo deixam o seu lugar de pessoas ser tomado por personagens da ficção histórica, fincamos os pés no chão que pisamos e damos destino ao passo seguinte.

Aos meus filhos pequenos, eu só declamei o silêncio com a desculpa de não saber mais versos. Que lhes ensina a escola sobre a partida para fora de nós e do nosso tempo?

A partida não se ensina. Aprende-se, ... partindo.


[o aveiro; 17/06/2005]

eugénio

Lá mais longe, onde o amarelo
das searas dá lugar ao monte,
a oliveira torcida de dor e sede
geme ao vento que a despenteia.

Lá mais longe e mais acima,
uma nuvem despe-se e despeja
o poeta para a sua terra de ninguém:
A corrente de cio do ventre de sua mãe.


Lá mais longe, onde o amarelo
das searas dá lugar ao azul do céu,
um poeta declama o silêncio.

As palmas das mãos abertas ao vento norte,
o poeta vira as costas a esta vida, ao sul do sol.
Que frágil espelho reflecte a vida na morte!

a falha dos olhos

se quero ver-te?

não sei como dizer-te
quanto te quero! tanto que, ao ver-te
uma vez mais,

de felicidade anseio, então, morrer

e nunca! nunca mais
sofrer por te não ver.

Marcha lenta.

No dia em que escrevo esta crónica, é notícia a marcha lenta dos agricultores da margem esquerda do Guadiana. Não lhes chega a decisão do governo que os dispensa dos pagamentos à segurança social por um determinado período e exigem a declaração de calamidade como forma de responder à grave situação de seca extrema deste ano. Notícias são os alertas vermelhos, laranjas e amarelos face ao calor excessivo que afectará particularmente alguns ou todos os distritos. E os alertas do Serviço Nacional de Bombeiros para fazer face à época de fogos florestais que se adivinha extraordinária. Vemos os incêndios apressados a quererem bater os seus recordes em hectares de pasto das chamas. E os maus votos europeus. E os desempregados que vão nascendo. As notícias aí estão mais que muitas e apressadas, capazes de incendiar o país até onde não há fumo nem fogo.
Mas é a marcha lenta a tomar conta de tudo. Os meios aéreos ainda não chegaram para os fogos. Trocam-se acusações sobre os negócios que se fizeram e fazem neste mundo de contratos de prestação de serviços para o combate ao fogo. Os ingleses adiam o referendo. Os trabalhadores, cansados e desgastados pelas notícias, temem perder empregos e salários e movem-se lentamente como sombras nestes dias de calor excessivo. Os agricultores do sul movem-se lentamente e obrigam o resto do trânsito à velocidade moderada por tractores e máquinas agrícolas que tomam conta das estradas. As manifestações nas cidades são também feitas em marcha lenta. Eu escrevo lentamente.

As palavras dos poderosos ameaçam sobre as consequências do não no referendo ao tratado constitucional europeu e do défice excessivo, tudo a provocar sacrifícios enormes a todos os portugueses. Ficamos a saber que o que decidem entre eles não pode ser posto em causa pelo voto dos povos e que o voto dos povos se transformou num perigo para a democracia. Os economistas acompanharam e guiaram o país até aqui. Puseram a economia e as finanças no centro de tudo. Exigem do povo que vote guiado pelos medos financeiros que eles vão ateando. O Durão vai mesmo cobrar uma multa pelo excesso de défice, em grande parte realizado sob o seu alto patrocínio. A vida olha-se sentada numa sala de espera.

Marcha lenta. Combustão lenta. Fogo posto seguramente. A combater por um povo de bombeiros voluntários.


[o aveiro; 9/6/2005]

se pudesse olhar pelas costas



o museu era também árvore. esta?



guarda a memória dos nocturnos preliminares de coito
a tua noite inteira vegetal que à luz do dia disfarçamos
no amarelo de beata o dedal onde escondemos o dado viciado.

de quem falam agora os projectores?
onde gravam as navalhas nomes e desamores?

esperavas por mim ainda hoje em cilíndricas peças serrado
por encanto sangravas não a seiva dos finíssimos ramos
antes infinitos galhos de uma floresta refúgio para nobre souto.

entardeceu



já é tarde
a sombra cresceu demais
numa tristeza cobarde
que não pode crescer mais

entardeceu
a barraca despida
o esqueleto contra o céu
sou eu

sombra da vida
sou eu

A geração rasca

Ao referir-se aos jovens estudantes de há uns anos atrás, Vicente Jorge Silva criou a designação de "geração rasca". Desde essa altura que debatemos se a atribuição dessa designação tinha sido bem ou mal feita, com base em acontecimentos como aqueles de propagandear o rabo descoberto ao virá-lo para a ministra, pedindo fotografia e filme para jornais e televisões. Infelizmente para nós todos, os jovens estudantes (e não só) não resistem a promover espectáculos e piores bebedeiras sem qualquer intenção política - veja-se o que se passa nas praxes, queimas, ... ou nos públicos locais de deboche autorizado e até incentivado pelo estado.
Sempre tive por certo que as designações são tão correctas como incorrectas. Depende do observador e do observado, do ponto de vista, do local de observação. No caso em estudo, eu sempre considerei que Vicente Jorge Silva tinha errado o alvo, até porque nem havia lugar a fechar aqueles manifestantes numa geração com o sentido que lhe era atribuído. Hoje e ontem, muitas daquelas manifestações são feitas por jovens (e encorajadas por adultos que as fizeram antes) e olhadas com complacência tolerante por muitos adultos (incluindo dirigentes das universidades, deputados, membros de governos, etc). Há várias idades para incluir numa mesma geração e há pessoas da mesma idade que não fazem, para esses efeitos, parte da mesma geração.
Já depois disso, Vicente Jorge Silva teve oportunidade de passar pelo parlamento com a eficácia conhecida. Nestes últimos dias, Vicente Jorge Silva deve ter percebido que tinha errado o alvo. Basta ver como todos os responsáveis se (des)tratam uns aos outros e como demonstram que não recuaram perante nenhuma aldrabice para conquistarem o poder ou parte do poder. António Guterres e Durão Barroso, Cadilhe e Cavaco Silva, Marques Mendes e Isaltino ou Valentim Loureiro, Santana Lopes e Portas,... mas também Constâncio, Pina Moura, Sócrates e Fernando Gomes e a chusma de economistas e advogados que mandaram no país desde o tempo em que este não sabia ler nem escrever até ao tempo em que se transformou numa quinta de celebridades sem saber ler nem escrever. Se há uma geração rasca, ela tem estes e muitos outros expoentes. Toda a semana passada li argumentos do punho dos expoentes a favor desta tese.
Se há alguma geração rasca, ela é a de Vicente Jorge Silva. A minha geração, afinal.


[o aveiro;2/6/2005]

o frio do dia



não falas comigo ou sou eu que te não ouço
à distância que edificaste como muro e muralha?

não falas comigo porque os anos te pesam hoje
mais que ontem quando travávamos desejo e batalha?


escreve-me uma carta: escreve pela tua mão
o desamor que te faz mudar de passeio ao ver-me

ou leva-me de volta às regueiras dos montes
por uma mão que aprenda, ruga a ruga, a ler-me.


verás que o tempo passou mais e menos do que devia
por mim longos anos quando por ti não mais que um dia.

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