de um ano... para o outro

um instante e nada mais



uma brisa a fazer soar os sinos de sincelo
e uma fogueira longínqua nos campos
que aquece o restolho em descanso
até ser a podre cama do pão e da vida:

como fermento ou larva de nervos
assim soamos hoje como o estalar de dedos
ou a senha que nos leva para o futuro dos outros.

de soslaio

diz-se que,
de longa data, são os amigos que
partiram para nunca mais os veres

diz-se que,
ainda antes de os veres, são amigos os que
te sulcaram até teres dado por eles

diz-se que,
o tempo todo, são amigos os que
ficaram parados onde tu sabes sem saberes

diz-se que,
até amanhã, são amigos os que
estão emboscados no cheiro do teu medo de os perderes.

eu queria tanto que vissem ...

e sentissem a matemática do natal que não resisti a roubar o "ambigrama" de Eric/Moacyr amalgamar . Cliquem na "mensagem caligráfica" para ir até ao Braisl e ver o movimento que vos quis mostrar e não só o que vos quis dizer.

a alegria da despedida

Assisto à morte deste ano com as frases de circunstância de que antes assim, coitado que sofreu tanto, coitado que viveu toda a sua vida no meio de tanto sofrimento, ocupado por guerras militares, paramilitares, sujas, santas, satânicas, religiosas e civis, por ataques terroristas, por danos colaterais, por contrabando de polónio, por isto e mais aquilo.

Mas foi também o ano em que os poderosos deste mundo tiveram de engolir mentiras e reconhecer erros do tamanho dos milhares de mortos militares e civis inocentes que foram contabilizados como danos colaterais até serem demais. Alguns políticos ficaram cercados por muralhas de mortos que mandaram matar enquanto rezavam, enquanto juravam justiça infinita, invocavam o nome de deus ou da democracia e ofereciam liberdade aos mortos quando os libertavam desta vida.

Assisto à morte deste ano com as frases de circunstância de que antes a morte que tal sorte, coitado que sofreu na carne dos seus contemporâneos a perseguição de catástrofes naturais, as mudanças climáticas, a vingança da terra mãe torturada até se retorcer nas dores de um parto de dor, a vingança do universo inteiro contra a viagem do predador maior, o vento tornado furacão correndo pela terra como se a terra fosse um desfiladeiro a devastar, o vale de lágrimas, a água violenta galgando as margens e tomando de assalto as suas linhas, as rugas por onde antes a terra escoava lágrimas de felicidade.

Mas foi também o ano em que poderosos deste mundo juntaram as suas vozes às vozes que, desde há muito anos, andam clamando até serem roucas e loucas defensoras da mudança, da paragem da ocupação selvagem do mundo natural que cria reservas naturais para a vida vegetal e animal e impermeabiliza a terra com pele de betão e alcatrão e nos fecha numa estufa, no efeito da estufa, de fronteiras atmosféricas artificiais com venenos emanados das chaminés que arranham os céus até deles fazer a ferida, a gangrena de uma civilização que se esqueceu de o ser.

Assisto à morte deste ano seguindo curiosamente as missas e pompas fúnebres, as pateadas e os aplausos a quem morre. Há quem guie os seus últimos dias para um rio poluído e podre, mas também para um rio de esquecimento.

Assistirei ao nascimento do novo ano com o optimismo desmedido na força de quem sobrevive e renasce despedindo as dores, despindo-se das dores e de todo o mal. Um ano bom é o que nos espera. Não quero menos.

[o aveiro; 28/12/2006]

rabisco

o que nos falta saber

Entre um ano e outro, apetece falar do que foi feito de nós e logo de quem gostávamos de vir a ser em vez de nós. Alguns de nós, os que fazemos propósitos firmes de emenda, ficamos contentes quando nos convencemos que uma versão melhorada do que fomos é possível. Outros, os que fazemos juras de vingança do passado, não nos satisfazemos com menos que uma mutação que nos faça vedeta da rádio e da tv. E, a alguns de nós, aos que desistimos todos os dias, satisfaz-nos escrever pequenas prosas em que não assumimos a culpa a seguir-nos para todo o lado, solteira e desengonçada desculpa para um retrato infeliz, triste e sem cura.

Gostaria de pensar em mim como versão melhorada pela idade.

Ser isto ou aquilo, assumir uma ou outra daquelas posturas na viagem de um ano para o outro, influencia as nossas decisões e isso é tanto mais importante quanto elas podem influenciar a vida de outros. Se eu acreditar que a minha humanidade pode ser melhorada, avalio os outros de forma consistente com essa ideia e a minha avaliação é feita com o único fito de consagrar o que está bem e indicar o que pode ser melhorado e isso é também em parte fazer luz sobre o que deve ser deixado para trás. Quem ensina, modifica e participa das mudanças individuais e, logo, de lentíssimas mudanças sociais. Quem aprende, muda.

A ninguém se pede que ame abstractamente a criação. Nós crescemos quando nos incorporamos no que os outros em potência são e quando lhes fornecemos a energia que os faça livres e diferentes e capazes de criar outros. Quando amamos, os pequenos vincos e as fundas rugas têm nomes de pessoas. Uma grande parte do esforço vem do exemplo, da forma de estar, do riso de vivos com a força da fragilidade, da recusa do absoluto, da fraqueza que é a crença vital de que podemos ser melhores amanhã e que podemos educar para o bem.

Acreditem ou não, por estes dias somos forçados a olhar para o espelho para nos vermos de frente. Na aparência, descrevemos os estudantes que apreciamos mesmo quando os julgamos. Na realidade, rabiscamos notas que, todas juntas, formam afinal um retrato - o nosso. O que nos falta saber é quem se esconde do outro lado do espelho à nossa frente.

[o aveiro; 21/12/2006]

o natal dos guarda-costas

" Já poisou toda a poeira que tinha de poisar sobre a capa do livro. Já ninguém se lembra e todos se lembram daquele natal em que os patrões da indústria do bem rebolado acabaram todos presos. Depois de alguma agitação, o silêncio caiu como chuva miudinha sobre todo o bem e todo o mal. Para o bem e para o mal, uma nuvem de sossego ficou a pairar sobre o país. Como se fosse uma nuvem de algodão doce, a nuvem de sossego foi lambida pelos meninos que até aí tinham sido comprados e vendidos pelos patrões da indústria e mercadores do bem bolado. Sossegados, os meninos começaram a jogar à bola e, tão bem jogaram alguns deles, que houve jornalistas a ir ver, para dar notícia sobre as suas habilidades, e não, como antigamente, sobre as cotações no mercado dos meninos ou sobre os escândalos bovinos dos bacanalneários adjacentes aos relvados, pastos e repastos."

Nas histórias do bem, há sempre uns homens velhos e umas mulheres novas. Estas nunca dormem para ganhar a merecida fama de dormir com os velhos. Um dia, tendo sido espancada e despedida da profissão de dormir com o velho capitão da indústria, uma mulher jovem viu-se livre para a memória sobre a sua passagem pela claque da indústria do bem bolado. Gostava de falar alto sobre a sua participação para combater a solidão tricotada por guarda-costas. Uma mão atenta da indústria do bem impresso deu à estampa em livro uma encomenda de terror mesquinho, de amor mesquinho, de humor negro mesquinho. O lançamento do livro atingiu em cheio a letargia que acordou e, ainda estremunhada, mandou começar uma instrução qualquer sobre a melhor maneira de escrever velhos recados amorosos não comprometedores.

Pequenas estátuas da jovem mulher que apita aos velhos foram vendidas como balas ou gomas para grandes batalhas entre claques do deixa estar, do deixa andar e do desleixa. A mulher jovem apita arrependimento sobre o bem que encomendou contra este ou aquele e há quem disfarce a sua capacidade de fazer o bem com declarações não declarativas enroladas em sorrisos afiados como facas.

Eu só estou preocupado com a escritora. Antes de ser despedida da vida difícil para se dedicar à escrita fácil, a jovem vivia rodeada pelos que guardavam as costas dos velhos. Agora anda pelas sessões de autógrafos rodeada de guarda-costas dos centros comerciais ou da indústria do bem impresso de sucesso. Quando é que me deixam ver as costas da rapariga? Quando é que me deixam vê-los a todos pelas costas?

Defendo que lhes seja indicado o caminho da salvação e que sejam ajudados a procurar e a ir com as suas armas e bagagens para algum paraíso... Fiscal, como lhes convém. Pode ser longe?


[o aveiro; 14/12/2006]

a bátega caindo

(...)

Acordo
com um som de lágrimas
nos braços. É a aventura

vestida da cinza fria
do cansaço. Bebo
o atrasado veneno da espera, um lagarto

passeando-se na boca.


(...)

José Carlos Soares; Bátega. Porto 2006

talvez dormir

Quando chega o Natal, dou por mim a seguir com redobrada atenção os anúncios. Recorto anúncios de bonecas quase vivas, as roupas, as casas para elas viverem, as máquinas, os heróis repetidos das bandas desenhadas e da televisão, os telemóveis, os jogos, as consolas, etc. Não, não os recorto dos jornais e revistas. Recordo-os da televisão que vejo e ouço. A televisão mostra o mesmo e mais qualquer coisa que o rádio, o mesmo e mais qualquer coisa que os jornais, etc. A televisão mostra mais.

E a televisão esconde mais que todos os outros meios juntos. Cada um dos três canais populares mostra-se a si mesmo, mostra o que afirma, mostra as suas meninas e os seus meninos feitos modelos, locutores, apresentadores e actores nos seus papéis e depois como actores que representam as suas próprias vidinhas, para voltarem como as personagens dos anúncios publicitários que tudo pagam e tudo compram e nos compram. Os três canais populares fazem de tudo para nos convencer que não há vida fora da vida que nos mostram. São a escola que finge vidas de sonho quando cria o vazio, quando levanta o biombo a separar a realidade... do sonho que comanda a vida.

Talvez seja por isso que a indústria se desdobra em canais e mais canais na obsessão doentia de chegarem a todos e a cada um, sem excepção. Os últimos anúncios para o estertor do mundo que conhecemos, dizem-nos que qualquer de nós deve ter acesso a 65 canais por toda a casa para que cada um faça a sua escolha de solidão em família. Acrescente-se isto aos telemóveis dos fala-sós pela rua e em casa, os computadores que nos ligam ao mundo virtual e nos separam do real, as consolas que fazem da nossa vida um jogo de guerra,... Tudo e em todos os lugares onde cada um possa grunhir a sua individualidade, até que o egoísmo supremo do desconhecimento dos outros transforme em nada as pessoas tipo pai, mãe, irmão, avó,...

Os mandantes destas indústrias e deste estado de coisas enchem a boca de declarações a favor da família e dos altos valores, enquanto vendem trincheiras que fazem das casas das famílias campos de batalha onde ninguém fale para se entender. Sem sabermos como, velhos e jovens aceitam o que antes era individualmente inaceitável - a tortura do sono e o isolamento em quartos minguantes.

De dia, as escolas abrem as salas de aula para jovens. Os jovens comparecem, uns para dormir, alguns para não despertar, outros para desesperar. Se isto é um pesadelo, é melhor acordar. Ou dormir?

[o aveiro; 7/12/2006]

a cor



se não há mais que uma cor, a cor que resta
está embalsamada e morta como o portador
que nos espreita

nós sabemos que o morto está lá tão confundido
com o castanho geral: a umbra coada é sombra,
a cor toda, a cor de tudo o que já não apodrece



onde não sobra a vida, a cor é o que permanece.

corpo humano



os alunos de artes do 11º ano da escola josé estêvão refazem a beleza interior do corpo humano.

os dias seguintes

De todas as coisas simples que fiz na vida, uma há que, quotidiana, me enchia de prazer e até alguma vaidade estética, confesso! Chegava a preparar-me para essa actividade com alguma demora mental e espreitava o espectáculo antecipadamente, criando momentos para deixar respirar a minha obra ou demorando este ou aquele aspecto para contemplação do meu público.

Estou a falar de antigas aulas de matemática falada, mas principalmente da escrita em quadros negros de ardósia. Desde a primária que cuidava da escrita, mas só muito tarde dei por mim a acrescentar a emoção da matemática manuscrita à escrita. Eu sei que o que escrevia era pré-determinado pela transmissão desta ou daquela ideia ou conceito, pela demonstração, pela técnica, ... Só que o que me dava prazer era a letra, os símbolos, as figuras limpas - brancas sobre o negro - que constituíam o quadro (igual e diferente dos outros dias) cheio de palavras, de expressões, ... cheio de gestos que me pareciam irrepetíveis. Houve mesmo alturas em que dava por mim a atribuir-me o papel de mestre escola que, pelo exemplo, pede imitação e pede autorização para ser exemplo de organização e pede admiração para aquela estrutura de andaimes seguros por nexos lógicos, humor emprestado e poesia. Se fosse hoje, teria fotografado muitos quadros antes de os apagar para todo o sempre. Do mesmo modo, tarde demais, tantas vezes desejei fotografar a memória da poesia que guardava em gavetas (de memória mesmo): a que tinha lido e a que improvisava cantando entre dentes ou discursando ao vazio.

A preocupação em sair desse palco para dar cada vez mais a ribalta aos aprendizes, felizmente ou infelizmente distantes da aprendizagem por pura imitação e memorização, fez com que fosse abandonando os gestos treinados para o quadro negro. Sem mágoa, fui substituindo o modelo que era por outro e por outro e por outro, na tentativa, talvez vã, de ser o caminho. Com nostalgia, vejo-me a voltar atrás num desejo absurdo de voltar ao tempo em que me pendurava nas paredes para colar o cartaz das minhas mãos treinando o quadro que viria a ser.

Ontem sentei-me a ouvir o debate sobre a universidade de hoje em diante. Acabei por adormecer e voltar a outra universidade onde crescia por dentro para fora de mim. Quando acordei, desenhado no quadro negro, olhava a nostalgia desenhada ao meu lado.

[o aveiro; 30/11/2006]

a exacta medida

Aquelas caras não me são estranhas. Aquelas caras não me são estranhas! A mulher repetia a frase como se estivesse a falar com os seus botões. As vozes não me soam estranhas. As vozes não me soam estranhas! A mulher repetia a frase como se precisasse de falar para si mesma para reconhecer o som da sua voz e, quem sabe?, identificar as vozes gordurosas, suadas pelos poros da televisão ligada.
O homem esticava a sua atenção para tentar perceber aquelas contas que se faziam com um grande número de pequenas quantidades, soma milionária de parcelas pequeníssimas. Vinham-lhe à memória as histórias dos golpes de bancários vigaristas que tiravam um cêntimo a cada conta de cada um de milhares de clientes do banco. Sempre se tinha deixado fascinar por esses golpes e chegava a imaginar caras patuscas para os seus autores. Acordou para olhar com atenção para aquelas caras. Os seus golpistas eram uns vigaristas simpáticos parecidos com o Robin dos Bosques que roubavam os banqueiros ou os clientes dos banqueiros para si mesmos ou para um grupo de amigos ou mesmo para uma seita de pobres tipos que de pouco precisavam. Tinha começado a perceber que o golpe tinha sido feito legalmente pelos próprios bancos sob as ordens daqueles senhores.
Não! Ouviu-se a dizer em voz alta, falando para a mulher. Estas caras que estás a ver não podes lembrar-te delas das nossas conversas sobre os heróis que associámos ao golpe dos centavos. Continuou ele. Também duvido que te lembres das caras e das vozes por serem banqueiros. Dos bancos nunca conhecemos mais do que o pessoal dos balcões.
Está bem. Tens razão. Eu nunca ouvi falar um banqueiro dos nossos dias. Concordou ela.
O homem e a mulher calaram-se para continuar a ouvir os senhores. Ouviram os senhores defender que é legítimo o que é legal, que, enquanto o vigarizado não reclamar, o vigarista não pode ter culpa nem remorso, até porque isso seria perda de iniciativa e eficácia. Ao determinar um fio de irracionalidade sem vergonha nos discursos dos senhores, a mulher virou-se para o homem para lhe dizer: Não estranho as caras e as vozes destes senhores e nem estranho o que dizem. Eles e as suas ideias devem ter passado por algum governo português ou pela administração de alguma empresa pública portuguesa.
Só pode! Concordou o homem.
E calaram-se.

[o aveiro; 23/11/2006]

eu sou a cova em que o meu corpo cabe

hoje

as flores estão a murchar nos castiçais

que marcam o território, a cova aberta,

o brusco rasgão na terra que me cabe em herança

e para onde a alma me foge,


alma errante, sem corpo ansiando o meu corpo

escondido como uma cova fora da cova

como um sulco por quem a finados dobram silêncios

os ocos dos sinos


hoje

eu sou a cova em que o meu corpo cabe

e nela falta.

perto de longe

Uma vez por outra, dou por mim a prometer que não volto a fazer isto ou aquilo. Porque sou velho demais para continuar a fazer isso, porque é preciso deslocar-me e as pernas não ajudam, porque é muito importante dedicar-me às minhas aulas e à minha escola e a nada mais que isso, porque posso estar a perder o norte e já começam a amontoar-se disparates à minha porta da boca, na ponta da língua. Depois, acabo por ceder a quem manda (que são outros que não eu) e lá vou fazer uma ou outra viagem para defender pontos de vista sobre a matemática e o seu ensino. Depois de cada surtida para fora de mim mesmo, ensimesmo e penso nas tiradas que me parecem excessivas. É claro que, se há debate real, mais do que a descrição da ideia e dos seus contornos, é preciso atrair atenção para o ponto de vista que empurramos da penumbra dos bastidores para a luz da ribalta. Precisamos de empolgar uma mente até que suba ao palco e contracene com a nossa ideia, ainda que seja para a condenar. Nesse instante trágico em que damos lugar a uma ideia, prometemos não voltar a sair de casa. Até que um novo compromisso nos atira para longe de nós e contra nós.

Na semana passada, atei os olhos no abandono da estação dos caminhos de ferro de Oliveira do Bairro. O que mais me espantou nesta viagem foi a distância real entre Aveiro e Oliveira do Bairro para quem lá vai de comboio. Não devia ser longe. Mas é.

Na mesma surtida, espantou-me ver como são curtos os caminhos entre as pessoas que se ocupam do saber, da educação, da cultura científica no futuro, da fala entre as gerações. Onde alguns me apontaram a distância de um abismo, vi como fica perto a porta da casa onde comungamos o privilégio de chamar pelos nomes os jovens que trabalham e se destacam nas escolas locais. Havia uma ponta de vaidade e orgulho na voz dos responsáveis do "Jornal da Bairrada" quando chamavam pelos melhores filhos da terra. É esse fio de voz que nos leva daqui até ao futuro. Os jornais locais são o fio em que nos equilibramos quando encetamos a nossa travessia de funâmbulos. Se cairmos nesse caminho, caímos em casa. Esse é o conforto que anseio ao procurar uma casa comum em Aveiro

A ver passar os comboios em Oliveira do Bairro, liguei os quatro cantos da casa comum de Aveiro por comboio. Linha por linha.


[o aveiro; 16/11/2006]

a língua da tecnologia

As novas tecnologias de comunicação global permitem novas formas de ensinar e aprender. Os professores portugueses podem aproveitar a tecnologia para multiplicar as possibilidades de levar até aos outros os conteúdos de ensino, mas também para organizar os trabalhos necessários aos aprendizes para aprenderem a matéria do seu ensino. Podemos mesmo utilizar, a favor do nosso ensino, os contributos que um mundo de pessoas cria e nos dá de mão beijada no momento propício. Uma parte do que precisamos aparece em outras línguas e, por via disso, o nosso ensino fica acrescentado de valor com aprendizagens úteis.
Neste mundo de oportunidades, somos infinitamente mais livres que a geração que nos precedeu. Mas podemos cair na tentação de deixarmos de ser utilizadores e produtores de conteúdos próprios e podemos deixar que as línguas dominantes nos comam a língua até ao ponto de deixarmos que, no nosso trabalho quotidiano, todos os textos do nosso dia a dia estejam impregnados de termos de outras línguas e, particularmente, de termos e palavras de outras línguas registados como marcas de produtos a vender. Por esta via, os professores podem emigrar da pátria da língua para, sem sair das escolas portuguesas, se transformarem em coveiros da língua portuguesa tal como a conhecemos e é o mais notável traço da nossa identidade.
Em todas as nossas lições, devemos deixar marca da língua tanto pela fala como pela escrita. Mas a nossa marca portuguesa também deve estar nos lugares da rede global em que nos integramos, sem deixarmos de ser nós, nem deixar os outros ser por nós. Por isso, não são aceitáveis iniciativas dirigidas para o ensino básico onde se não respeita a norma da língua e aparecem diversas línguas numa mistura que parece informar os jovens da aceitação escolar de uma nova língua. Não há qualquer razão para aceitar isto em ambientes escolares de jovens a crescer em graça e sabedoria até uma identidade que ou tarda ou é, já agora, bastarda.
A conversar é que a gente se entende e que a gente também se afirma e se confirma. A escola ensina outras línguas, porque disso depende compreender o mundo e ser parte dele. Ao mesmo tempo, afirma a mãe língua de todos os dias, porque esta escola serve uma parte independente e notável deste mundo em rede.

[o aviero; 9/11/2006]

escória

Diocleciano Gulpilhares é um cientista social. Mais concretamente , podemos classificá-lo como garimpeiro, o que anda ao "garimpo", não de rio em rio, mas de texto em texto.

[Durante um tempo, eu pensei que uma pessoa, quando lia livros, lia livros. Ou, quando muito, quando alguém acompanhava a leirua com a preocupação de tirar notas, eu diria que estudava. Têm-me convencido que alguns mortais, talvez porque leiam intencionalmente este livro em vez daquele, quando lêem estão a fazer pequisa ou a investigar. Os professores dizem isso às crianças e, desde pequenos, elas perdem os hábitos de leitura simples para os substtuir por hábitos de pesquisa :-) E pior ainda: estas crianças entregam aos professores babados, os resultados das suas pesquisas. Cópias laboriosas de páginas de enciclopédia são trabalhos classificados como património pelos professores.]

Quando Diocleciano era jovem, ainda não era assim. Mas em algumas cadeiras aprendeu essa forma de estar a pesquisar. E, agora, acabada a liccenciatura, lança-se na investigação pura: formula hipóteses já formuladas por um amigo americano. E ninguém o pode parar. À medida que aprofunda esta sua forma de garimpar de livro em livro, Dicoleciano vai eprdendo o norte e já nem sabe que minério precioso garimpa.

Diocleciano é um garimpeiro moderno. Esquecido de procurar o ouro dos livros, é um garimpeiro da escória.


pretextos; 1993

antigamente

Sérgio Cabeleira vai resistindo menos mal ao quarto minguante, à lua nova e até ao quarto crescente. Mas à lua cheia não pode ele resistir.
Quando a lua cheia se levanta brilhante no ar, a atracção é fatal e Sérgio não pode lutar contra isso. É atraído porque é oco! - disse a Lola e eu acredito. Lola diz que quando uma mulher se apaixonar verdadeiramente por Sérgio, o feitiço da lua será quebrado. Um homem oco pode ser cheio por uma mulher verdadeira.
É Lola que que nos ensina que o feitiço da lua pode ser derrotado por um feitiço de mulher.

Sérgio Cabeleira não sabe que assim é e é talvez por isso que não olha para as mulheres como se elas pudessem ser o seu recheio. Ou porque não quer ser um perú.

pretextos; 1993

do que sei

diz-se

do que sei
posso dizer-te
que as margens do biombo são galgadas pela lua
quando vem desvelar a sua face oculta

esconder para esquecer

Aproveito uma aberta entre dois temporais para escrever uma clareira, para escrever uma "branca". Nós escrevemos uma "branca" quando não nos lembramos de coisa alguma que interesse escrever. Por enquanto, a "branca" ainda é de outros.

Na semana passada, foi lançado o livro "Desastre no ensino da Matemática: como recuperar o tempo perdido". O livro reuniu intervenções de notáveis sobre o passado e foi lançado numa conferência de outros notáveis sobre o futuro do ensino da Matemática. Esta conferência reuniu vários ex-ministros da educação e conselheiros que são representativos de todos os os governos e partidos com pastas da educação desde o 25 de Abril.

Houve desastre e ficamos a saber que responsáveis pelas políticas da educação dos últimos 30 anos estão de saúde e, apesar do desastre, estão bem na vida e continuam capazes de dizer ao país do futuro o que deve ser feito para recuperar o tempo perdido por eles, com eles, apesar deles, ...

[Porque o empreendimento da educação correu mal, todos os educadores e professores são condenados, com pouco direito a defesa, todos os dias. Destes se diz que progrediram até ao topo das suas carreiras, sem qualquer avaliação. Ao contrário, os coitados dos ministros do tempo perdido foram avaliados e, por isso, voaram tão mais alto quanto mais contribuíram para o êxito do desastre ou para o fracasso da educação.]

Nos intervalos das aulas de matemática do dia seguinte à conferência, tentei descortinar o que teriam dito aqueles ministros do tempo perdido do título do livro. Aos ouvidos chegaram-me as banalidades com que os passa-culpas palitam os dentes e coçam a consciência. Dei por mim a pensar que mais valia comprar e ler o livro logo que pudesse, para saber mais.

E só à noite percebi o vazio que acontecera, quando um dos responsáveis da coisa disse, para quem o quis ouvir, que não lhes interessara o passado e que tinham combinado só falar do futuro. Estão a ver a maravilha?

Para os efeitos, o passado é um desastre. Para parte das causas, o passado é uma branca.

Dia a dia, dou por mim mais velho e incapaz. Fico feliz por conseguir reconhecer os erros passados e corrigir, quando dou por eles, os erros de hoje. Peço a Deus que não me deixe cair na tentação da irresponsabilidade e prefiro, apesar dos erros, pensar que o passado não foi uma completa bronca, e desejar que não venha a ser... a grande "branca".

[o aveiro;2/11/2006]

a privada

A semana entusiasmou-se com o êxito em bolsa de uma nova energia, aquela maravilhosa energia limpa soprada para dentro de milhares de balões coloridos (a uma só cor adequada, diga-se!). Nós devemos ficar contentes com os encaixes dos governos e devemos entusiasmar-nos com os desfiles dos dentes mais brancos e afiados acabadinhos de sair de um governo para as administrações das empresas. Essas empresas são ou foram públicas no todo ou em parte até que a parte pública se torna interessante como privada e a iniciativa pública se desvela em zelos para tornar privado o que era público. Quando vejo ex e actuais ministros, ex e actuais administradores nestas festas bolsistas, chego a pensar que há uma unidade de missão para meter o país na privada.
A semana pública entusiasmou-se com a semana privada. Os balões laranja nem chegam para as encomendas.

Do governo vieram todas as indicações e leis que obrigariam a mexidas nos preços da electricidade. Mas o instante da divulgação pública da coisa calhou em má altura, logo em cima de negociações salariais que o não são e em cima da apresentação do orçamento, etc. Ministros, secretários e outros escribas das leis que obrigaram ao aumento lançam-se em declarações contraditórias. Com tal bagunça, acabámos a assistir a um debate sobre custos e preços da energia eléctrica e sobre a política energética do país. Na primeira parte, ouvimos esclarecimentos sobre custos e preços praticados e sobre a composição do preço que os consumidores pagam. Na segunda parte, ouvimos falar de políticas energéticas, numa discussão que uniu o conjunto dos interessados no actual sistema de produção da energia, incluindo as renováveis, contra o nuclear. Mas interessante mesmo foi ver os ministros e secretários do estado de ontem a apresentarem-se hoje como presidentes de empresas dos sectores que tutelaram. E aparecem tão independentes, tão defensores do interesse público até à ânsia de não vender a energia que vendem.

São eles que afagam a lâmpada para receber o soldo devido ao génio.



[o aveiro; 26/10/2006]

excelente

Os nossos governantes actuais que são muitos dos mesmos do passado andam a dizer que é preocupante o actual sistema de avaliação dos professores porque não distingue os bons profissionais dos menos bons e nem sequer dos maus profissionais. Eu inclino-me para pensar que eles têm razão quando falam. Mas não acredito neles. Porquê?

É fácil adivinhar. Fui dirigente de uma escola durante muitos anos. E, sem trair a lealdade a que me obrigo como funcionário público, posso garantir que um ministro atribuíu a classificação de excelente professor do ensino secundário a um funcionário público que não era professor do ensino secundário nos termos que a lei exigia para ser considerado excelente professor do ensino secundário. Prerrogativa de ministro? Talvez legal. Legítima? Eticamente reprovável, digo eu, até porque desautorizou os pareceres necessários dos dirigentes, sem dar cavaco às tropas. [Um ex-ministro socialista diz que a ética é a lei (que ele fez e ele a ele aplica....)]

É fácil adivinhar poque é que eu não posso confiar nos melhores de entre eles.

Há quem faça greve como luta. Há quem faça greve por luto. Há quem faça greve por nojo. Por nojo, mesmo.

passado no topo

Estou cansado de estar no topo da minha carreira de docente.
Há vários anos que por ali ando. Não posso dizer que seja a penar, por que sempre fui professor e o que faço é de professor de ensino básico e secundário. É, para além de tudo o resto, um exercício físico exigente. Sempre cansado é certo, mas sem falhas graves de saúde e com o assobio intacto para improvisar bailes mandados. Com assiduidade.

Para chegar ao topo da minha carrreira, fiz de todas as funções docentes um pouco e um muito e fiz tudo o que foi preciso fazer, formação contínua e exame, relatórios, etc. Pelo sim e pelo não até entreguei os relatórios quando me disseram que, por ser dirigente da escola, não precisava de fazer e entregar relatório para apreciação. Entreguei-o mesmo assim para ter prova e há ofício da administração a devolver o dito.
Fiz a minha carreira como qualquer outro profssional. E não posso aceitar que digam o contrário; quando dizem generalidades os governantes dizem que estou no topo porque tenho idade para isso, porque envelheci simplesmente. Quando falam, os responsáveis pelo estado a que isto chegou cansam-me demais. Até porque foram eles que inventaram este sistema fantástico que lhes permite mentir hoje sobre a sua acção passada e travestirem-se de salvadores em cada nova aparição.

Em greve, para não diminuir o passado!

a greve

Todos sabemos que os estatutos das carreiras dos profissionais da administração pública foram aprovados pelos partidos socialista e social democrata. Não houve outros responsáveis. O estatuto da carreira docente de que se fala muito nos dias de hoje é um desses estatutos encavacados, pré-socráticos ou mesmo socráticos. E, como é óbvio, o estatuto definiu escalões ou patamares e formas de progressão ou de passagem de um para outro escalão e isso não foi mais que definir a avaliação dos professores.
Ninguém consegue aceitar ou sequer perceber as faltas de memória destes eternos governantes (alguns deles nunca foram outra coisa senão deputados e governantes por turnos). Não é possível que se tenham esquecido do que andaram a fazer com a avaliação de professores e outros funcionários, contribuindo ao nível da minúcia do abandalhamento do sistema. De cada professor pode ser dito que tentou passar de um escalão para outro com o mínimo esforço e talvez para ajudar a que o mesmo acontecesse aos seus amigos e colegas. Não acreditando na desmemória dos políticos, o que eles nos dizem hoje é que transformaram em sistema o que não devia ter passado de tentativa falhada deste ou daquele professor menos honesto. Podemos saber que todas as instâncias da administração procederam no sentido de deixar passar a uma progressiva fraude toda a avaliação até porque estes governantes encharcaram a administração pública, em particular, a administração da educação, com criaturas que nada tinham a ver com a coisa pública bem educada. Alguns secretários de estado, directores gerais, directores de serviços, ... destas andanças dos partidos no governo apresentaram-se como gestores da educação que nunca tiveram. Se a tivessem, nunca teriam aceitado a máxima humilhação de aceitarem cargos, como quem aceita pagamento excessivo para ser burro de carga... perigosa e leve.
Os governantes dizem-nos que a avaliação dos professores (aquela que eles decidiram ontem) não existe hoje e que é preciso fazer outra para amanhã. Eles dizem-nos tudo sobre o que eles foram, e, não havendo confissão nem propósito firme de emenda, estão no mesmo passo a dizer-nos quem são e quem serão enquanto puderem engolir.
A greve é uma porta estreita, uma excepção. Nela entramos de lado, olhando de soslaio todos os que se governam tanto quanto nos diz a memória que nos resta.

[o aveiro; 19/10/2006]

nem existir


nem existir, não existir, não existir, não existir, não existir, não ser.
nem restos mortais, nenhuma pompa nem campa sequer, ..., nenhum sinal em memória de mim, nada, mesmo nada.
ter existido e ter sido um dever cumprido... e ter cumprido como um dever o erro de existir já é erro bastante.
reclamar o direito a não existir é existir demais. saber isso e não poder apagar todos os rastos pode ser ...o pior de tudo.
não existir, não existir, não existir, não existir, não existir, não existir, nem existir.

cara...cter

cara...cter

chá

lá fora, a vida

Ouço os gritos lá fora. Não sei de onde, eles chegam até mim voando. Alguns são guinchos entre palavras de ordem. Percebo que os guinchos e os grunhidos fazem parte da integração na universidade, são o santo e a senha ou o código que abre a porta da horda. Está tudo como dantes. No meu tempo de estudante, assim eu levantasse a voz tímida contra qualquer dos poderes estabelecidos, as forças da ordem apareciam para me calar como quem esmaga uma voz. No meu tempo de estudante, havia estudantes que gritavam obscenidades e bebedeiras pelas ruas e as forças da ordem apareciam para os aplaudir, porque a ordem então imposta era a obscenidade de um regime fascista. Continuo sem compreender como é que esta ordem democrática aceita as agressões ao vento que passa de uma turba que se dá ao luxo de gastar semanas e semanas de aulas e trabalho a impedir os novos estudantes de começar a estudar. Os governos do país e das universidades riscam estas semanas do calendário; até parece que quando marcam o início das actividades estão a marcar o início destas actividades performativas que enchem ruas da cidade de jovens pintados, borrados, encharcados e manchados, a marchar ao ritmo marcado por estupidantes e depois, educados para boas maneiras ao chá, para a boçalidade e para a classificação rasca que o rendimento escolar lhes atribui, ao tempo em que prende a realidade, a mesma na mesma, e, como sempre mergulhada no mar dos discursos dos piores do costume a clamar por melhores dias. Fingem mesmo que as actividades performativas degradantes são boas e não perigosas, fingindo acreditar que os meninos só usam produtos antialérgicos, que os humilhados até gostam de ser humilhados quando se defendem não atacando, que as agressões psicológicas não deixam marcas físicas. Eles são doidos. Eles são doidos. E só acordam para a parvoíce quando alguma bebedeira corre mal ou quando o terrorismo faz vítimas que não cabem no armário do costume e do esquecimento. Começo a seguir a teoria da conspiração: o poder político e económico, com seu material genético a dar provas de incapacidade e estupidez criminosas, deixa a coisa andar por estas veredas para que tudo se reproduza da forma mais conveniente e as suas crias, ainda não geneticamente melhoradas, não tenham de enfrentar a concorrência de uma inteligência popular qualquer que se levantasse para os pegar de cernelha, pelas orelhas, pelos cornos, pelo norte magnético. Se eles podem permitir estes luxos asiáticos aos estudantes subsidiados para isso mesmo, ao mesmo tempo que reclamam resultados do sistema educativo, eu posso acreditar numa conspiração, qualquer que ela seja. Eles são doidos! Que me perdoem os doidos verdadeiros que, num acesso de lucidez, fugiram deste filme e berram ainda mais alto para não ouvir o eco disparado para as nuvens. Nestes dias, falha-me a paciência mesmo para o tempo que voa: agarro-o pelo pescoço e sopro com toda a força até que este rebente e se estilhace no ar. Eu quero ouvir a chuva grossa lá fora, um chão que abafe os passos destes batalhões incapazes que brincam como quem dá provas de vida ao sistema (tão tímido a fazer saber que a vida é outra coisa e outro lugar) para que este as subsidie nem que para isso corte nos subsídios à vida produtiva. Todos somos cúmplices deste intervalo oco. Por ser oco? Por não ser oco.
Ouço os gritos lá fora.

[o aveiro; 12/10/2006]

a alma

se não existir a alma, tenho de inventar-lhe
um molde

uma forma que lhe dou
é a do pesadelo que se casa

com o meu coração destroçado

a gota de mágoa

Fulano partia todos os dias, manhã cedo,
para um trabalho a tempo inteiro

e só à terça lhe sobrava uma hora
para fazer o que estou a escrever agora.

Ao domingo comia com o vidro do tinteiro
o rio de tinta por onde no barco, que metia medo
em vez de água,
havia de remar a partir de segunda

desde a foz até à gota de mágoa
uma demanda fecunda

da nascente

da indústria pesada

A última semana de alguns é a primeira semana de outros, sendo que uns e outros podem ser os mesmos enquanto afirmam a diferença que farão no futuro relativamente ao que foram no passado próximo. Para muitos estas diferenças têm sido negativas ou dão resultado negativo, porque os da primeira semana de futuro têm uma última semana de passadão e de passivo.
Os noticiários alertaram-me para a novidade do novo dirigente da indústria não vir de qualquer clube de industriais. Em nenhum pormenor do cenário da cerimónia transmitida em directo consegui vislumbrar razões para o alerta. Aliás, todos os figurões e até os figurantes pareceram-me caras conhecidas do mesmo clube. Percebo pouco de indústria, mas tenho de confessar que me senti a assistir a uma celebração do clube central do país. De que clube falavam os comentadores? Ainda estou para descobrir.
No discurso, muitas frases do ex-secretário presidente começavam por "Comigo,..." para parecerem ora uma ameaça ao porvir ora uma promessa de diferença relativamente ao passado ali omnipresente e, diga-se, omnipotente e omnipatente de major para cima. Queria ele dizer-nos que nunca tinha estado naquele mundo e eu sem ter imaginação que chegue para o ver fora daquele mundo. E gostei de o ver ex-secretário a falar ao secretário do respeito sagrado que a indústria pede e merece e de como exigirá isto, aquilo e transparência nos números das relações da indústria com o estado das secretárias polidas até à transparência. Como terá sido ao tempo em que foi secretário o ex-secretário do estado a que isto chegou? Não tenho memória. Sei que foi transparente até passar de secretário de estado a estado maior da indústria. E dou graças a deus por não ter estado presente quando se mostraram transparentes (e certamente medonhos).
O mais medonho foi quando, sem passar procuração, o ex-secretário começou a transferir as nódoas dos fatos dos industriais da sua liga de metais raros para as togas das justiças interna e externa à indústria. É uma piada bem portuguesa.
Com mais um peso pesado na direcção da indústria, Aveiro arrisca-se a precisar de tratamento... por excesso de peso político.

[o aveiro;5/10/2006]

rasgões


vasculho entre os papéis para escolher um papel - é sempre alguma coisa que já foi outra coisa nesta vida - onde se desenhe uma curva. e encontro papéis pintados que mais vale serem pedaços sem sentido.

a cultura no olhar

Dia a dia, lá vamos mudando. Damos pelas mudanças reais já elas tomaram conta de nós, já nos acomodámos a elas e, mesmo que o quiséssemos, não podemos mudar de passeio e acabamos a falar com as mudanças que dentro de nós moram.

Algumas mudanças seguem-se a pequenas decisões, a pequenas desistências, a pequenas guinadas nos pontos de vista.

Há pouco tempo, decidi apurar ainda mais a vista a olhar para o ensino no pequeno círculo em que me movo. Trabalhamos aqui, mas se não focamos o olhar para ver perto, acabamos por falar do nosso círculo, contaminados pela ideia do que acontece em geral. Se apuramos o olhar sobre a realidade da nossa esquina, esquecendo o que sabemos de ouvir falar, vimos aspectos que nos escapavam mesmo sendo parte da nossa circunstância. Ou nos tornamos mais optimistas ou nos tornamos mais pessimistas, porque desistimos de muitas desculpas e porque recusamos culpas que, não sendo nossas, são a nossa circunstância.

Deixamos também de tentar ser exemplo para fora de nós. Desistimos um pouco, para tentarmos ocupar um espaço feito tanto de intimidade como de exposição. Contamos pouco. E sabemos que somos esse pouco que é tudo o que podemos dar. Precisamos dos outros só no que eles nos possam dar e recusamos nos outros o que eles nos podem tirar. Não queremos receber qualquer totalidade de outros e celebramos os pequenos detalhes.

Por exemplo, comecei a ficar muito sensível a todos os comentários que apoucam a matemática no que ela tem de parte da cultura geral ou que diminuem a matemática, ao considerá-la tema impróprio para o quotidiano, desnecessidade, actividade improvável e interesse exótico de excêntricos, razão particular tanto quanto a literatura ou a tecnologia respondem a necessidades e se tornam razão da sociedade toda. A escola trata do culto da cultura geral, dos bens do espírito e da saúde do corpo. Pequenos disparates que se repetem, dia após dia, constituem a persistente vontade de amputar a cultura em nome do maioritário (des)gosto.

Estou a mudar-me para dentro do olhar. Como estão a ver.

[o aveiro; 28/09/2006]

tipografia

Fui tocado pelo chumbo das letras, pelos tipos, pelas formas de certas letras e símbolos. Ainda hoje guardo uma imagem de tipos alinhados na bancada da tipografia matemática e uma reverência pelas impressões de alguns livros antigos (em particular de matemática). Os computadores apareceram na minha vida acompanhados pelas letras, pelas fontes, pela diversidade fascinante dos tipos clássicos que, para muitos, parecem todos o mesmo. (Com muito prazer e orgulho patriótico :-), na Pública, li uma entrevista feita a um inventor de letras português, Mário Feliciano.
Ele fala de assuntos que me tocam particularmente.

E cita Oscar Wilde, para dizer que a moda é uma forma de gosto tão má que tem que ser trocada todos os seis meses. Pois.

o dia em que descobrimos o país que era

O governo admite impor taxas moderadoras à prestação de cuidados de saúde até agora gratuitos. E acrescenta que tal não tem apenas razões económicas. É mais uma forma de moderar o acesso ao internamento ou à cirurgia de ambulatório.

Ficamos a saber que há alguns portugueses que têm tendência para abusar do internamento e outros com uma queda pela auto-flagelação com cirurgias desnecessárias.

Quem poderá desejar estar internado, sem disso precisar, num hospital português? Talvez os idosos abandonados pela família e pelo estado providência incapaz de criar sistemas de apoio eficazes à pobreza da nossa terceira idade.

Se há quem queira abusar destes serviços e precise de ser moderado na sua gula, é preciso sabermos em que país vivemos e como deixámos que concidadãos europeus tenham caído nas malhas de tal degradação da sua qualidade de vida. Não estamos a falar de auto-marginalizados que, quando a má sorte aperta, não têm força nem ânimo para abusar de tais serviços. A não ser que sejam apanhados na rua pelas organizações de caridade ou pelos serviços de urgência do estado a que chegámos. Mas não pode ser a estes que o ministro se refere porque estes nunca poderão pagar qualquer taxa moderadora e há muito tempo que moderaram a sua esperança em serviços públicos de saúde.

Ele está mesmo a falar dos remediados pobres e dos pobres que vão pagando as taxas. Ele está mesmo a falar de mais uma medida das muitas destinadas a liquidar o serviço nacional de saúde. Mais um prego para o caixão do serviço público gratuito quando essencial e insubstituível e insuprível para quem não tenha dinheiro que o pague. Uma a uma, como coisa pouca, cada medida é uma contribuição inestimável de cada ministro capaz de liquidar os serviços que jurou defender no acto de posse. E dirão sempre que cada vez que tomaram uma medida impopular o fizeram com o fito de viabilizar o que vão liquidando. Nós sabemos que serviços que não há são viáveis e até são a custo zero para os contribuintes Só que, deixando os ricos sem obrigações solidárias, os pobres vão ter de pagar tudo para sobreviver ou nada... para morrer.

Um dia ainda vamos acordar sem país.

[o aveiro; 21/9/2006]

como é viver longe daqui

como será viver longe daqui sem ter dado um passo sequer

se ainda nem sei sair para uma varanda de onde possa cair
e repentinamente aprender a necessidade de voar

aprender para ensinar não é secundário

1. Nascido na década de 40 do século passado, lembro-me vagamente de um ou outro dos meus professores. Como se estivesse inibido de levantar os olhos para ver e conhecer os professores que eram pessoas do outro mundo. Lembro-me de ter feito parte da escola na aldeia. Mas não me lembro de ter feito parte da escola na cidade no sentido de que a aldeia que eu era me separava das pessoas da cidade e ainda mais das pessoas da escola na cidade.

2. Tento lembrar-me dos verbos. Que ordens me dava a minha mãe ou a minha irmã para que eu as trocasse por aquela escola? Ia para a escola para aprender ou para ser ensinado? Aprendíamos a trabalhar, aprendíamos um ofício, ... E na escola? Lá íamos, nem cantando nem rindo, para sermos ensinados.

No liceu, os professores ensinavam e reprovavam-nos ou passavam-nos. É verdade que nos faziam perguntas verdadeiramente assustadoras e até nos repetiam as respostas que devíamos dar para ver se nós decorávamos algumas delas. Não me lembro de alguém se preocupar em distinguir quando eu tinha decorado o que queriam ouvir de quando eu tinha compreendido e aprendido. Porque talvez se pensasse que o importante nos liceus era o conhecimento armazenado e conservado para ser debitado e não o conhecimento para a acção. De vez em quando ponho-me a pensar que não era assim nas outras escolas. Mas não sei.

3. Ser professor era ensinar. E um professor ensinava bem mesmo quando ninguém aprendia com ele. Havia mesmo algumas supernovas que quanto mais brilhassem a recitar frases incompreensíveis mais magníficos professores eram. Padres e professores assim afiavam as suas línguas do alto das suas cátedras e púlpitos.

Ainda há artistas desses. Nem dão pelo deserto na sua vizinhança ou gostam de pensar que tudo é mais sossegado quando estão sozinhos e que tão grandioso é o vazio que os cerca como a multidão que imaginam ululante, canalha e incapaz de se maravilhar com os perdigotos das suas citações.

4. Dos professores sabíamos que tudo sabiam e ensinavam. Aprender era ocupação dos outros, se a tanto se atrevessem. Sabemos de quem nada compreendesse e fosse capaz de repetir tudo tal qual o que era ouvido e achado até ser certificado como repetidor. E apesar de tanto ensino puro e duro, para poucos realmente, sempre houve quem aprendesse.

O verbo aprender não constava dos documentos dos ministérios da instrução. Mas não me consta que a falta do verbo impedisse de aprender, até a quem fosse só ensinado.

5. Dizem que nos últimos anos, o sistema educativo trocou tudo e agora foi banida a palavra ensino e a ocupação do sistema passou a ser verificar e garantir as aprendizagens dos jovens. De tal modo que aos estudantes se desculpa que não tomem a iniciativa de trabalhar e aprender e que aos professores se proíbe que ensinem.

6. Reconhecemos facilmente que precisamos hoje mais do que ontem de ter certezas sobre o que aprendem e como aprendem os nossos jovens. Aumentámos muito a quantidade e variedade dos meios de comunicação e a incerteza sobre os seus conteúdos. Eu soube repetir as orações que me ensinaram sem lhes dar sentido e ainda hoje as posso repetir e com a compreensão que as tornou inúteis e à sua finalidade primordial de relação com o fantástico para lhes restar pouco mais que um pó de nada. E sei que os jovens vão à catequese e lamentavelmente não recitam os 10 mandamentos, embora saiba que, de entre esses, jovens há que cantam todos os andamentos de complexas obras musicais. Precisamos de ensinar.

7. O problema do falhanço da instrução no regime fascista não foi a falta do verbo aprender nos documentos oficiais. A falta do verbo ensinar nos documentos oficiais actuais não é a causa do falhanço da educação no nosso regime. Seria fácil melhorar rapidamente se o problema fosse de palavras, se o problema não fosse precisarmos todos de trabalhar e aprender muito para ensinar o que é preciso.

[a página da educação; 10/2006]

ipod

Ontem, passava pouco das oito horas, deambulava pela rua da escola soares dos reis do porto.
Ouvia música e imaginava-me em memphis ou coisa assim, não explico porquê. Para atender um telefonema, tirei os auscultadores e bati contra um transeunte a quem devo ter pedido desculpa. Quando acabou o telefonema, voltei a pôr os auscultadores e nada ouvi. Fui procurar a fonte dos sons e ela não estava no sítio. Percebi que não tinha sido abalroado por acaso e ainda fui até ao jardim à direita no fim da rua para falar com quem me tinha levado livros e poemas ditos, música, fotografias, um disco duro com sistema e... tudo o mais que esqueci ou não interessa para estas confissões.
Passados poucos minutos, estava a trabalhar e a esconder a minha profunda irritação.

Hoje, deu-me para pensar que o ipod, agora roubado, tinha vindo substiuir o cachimbo das minhas ruas, por mim mesmo perdido, achado e perdido em gestos de puro amor, solidão e companhia, ... E dá-me para a tisteza e para ter pena de mim mesmo. Muita pena mesmo. Muita vontade de ensimesmar e esquecer-me de sair. Assim mesmo ... ensimesmo.

E volto a fumar! Não me roubam cachimbos. Posso perdê-los. O que me roubam não posso perder.

O que é importante

Esta semana recebemos a prova da nossa normalidade social. Todas as crianças e jovens regressam à escola - básica ou secundária. Há quem já nem pense na importância deste acontecimento e, embora seja sempre notícia, o facto dos regressos gerais à escola aparece muito diminuído comparado com uma pequena nódoa na gravata de algum importante, mesmo que mal educado e iletrado.

Nestes tempos que vivemos, podemos saber que nem tudo está perdido se, numa data prevista, as crianças e jovens forem chamados e respondam a cumprir um imperativo social que ninguém discute por princípo e todos discutem no fim. O regresso à escola em cada ano é um facto e todos saúdam o regresso à escola. O abandono da escola é um facto e todos condenam o abandono escolar.
A sociedade destes tempos que vivemos é uma escola. Assumimos hoje que todos, desde o nascimento à morte, são aprendizes e de escola. Vivemos numa sociedade onde todos precisamos de aprender ao longo de toda a vida, porque tudo se passa num mundo feito de mudanças. Para sobreviver neste mundo em mudança, precisamos de mais escola e mais escola de todos para todos. Por sabermos isto, saudamos o regresso à escola e lamentamos quando alguém abandona a escola básica o que nos obriga a novos esforços para inventar o regresso ao futuro de quem se refugiou em algum espaço exterior à sociedade escola.

De que escola precisamos? Há quem pense que a escola necessária a todos não é a escola daqueles que podem dirigir e salvar este nosso mundo do estado em que está. Há quem pense que a escola para todos dá conhecimentos e competências técnicas como instrumentos de vingança. E que a escola única para todos é uma ficção, por poder ser sempre recusada por uma parte, e uma realidade terrível, porque prejudica os melhores sem fazer coisa que se veja pelos que estão longe da escola.

À margem de todas estas discussões, neste mês de Setembro em que recordamos tantos terrores, horrores e.. guerras preparadas e travadas nas melhores escolas do mundo, escrevo aqui a celebrar o nosso país do regresso à escola, este acontecimento que nos diz que ainda não nos perdemos uns dos outros e ainda acreditamos nuns e noutros para mais um passo desta dança de paz... Mesmo sem esperança nos milagres que nos pedem, voltamos a tentar. Prometendo não pisar o nosso par, esse outro que ainda nem conhecemos. Sabemos que foi convidado e que isso é o mais importante.

[o aveiro; 14/09/2006]

eu vi como

Eu via como a minha avó puxava de dentro do avental
o lenço encardido e limpava a lágrima amarela
de qualquer criança arreliada por não voar

em vez de cair do muro alto.


Ainda hoje procuro ver as pregas do avental
no intento obscuro de perceber de onde saíam
penas, fios, canas e até a broa esfarelada

com que prendia pelo bico os animais alados.


Vejo-a agora afagando a ave no colo do avental
vendo que roubava verdadeiras penas para asas
do anjinho da família para a procissão

e esse anjinho só voava ao colo da imaginação

o avesso do direito

1.
Onde guardas o que ouves? Não pode ser na cabeça, que a cabeça não chega para tanto. Quando te pergunto o que me ouviste dizer-te um dia qualquer do passado, tu recitas palavra a palavra o que eu te disse. Ou assim me parece.
Ou guardas realmente o que eu disse em todos os dias da nossa vida e lês a memória das coisas que dissemos ou inventas o que eu podia ter dito e eu, falho de memória, aceito como muito plausíveis aquelas frases adequadas à circunstância e ao dia que, sem lembranças, rememoro por intermédio da tua memória ou da tua imaginação.
De qualquer modo, não podes guardar tudo na tua cabeça. Memória gravada ou ferramentas da imaginação de memórias não cabem. Ainda pensei que usavas uma competência qualquer para guardar a informação rarefeita e para a reorganizar instantaneamente sempre que dela precisavas, mas isso também ocuparia espaço que não sobra na tua pequena cabeça.

2.
Onde guardas o que sentes? Há quem pense que guardas no teu coração o que sentes, mas o teu coração não é mais que um músculo para cumprir rotinas de músculo - sístole e diástole - e alimentar em todos os sentidos a canalização do saco de sangue que tu és. Há quem pense que guardas as emoções dentro do teu peito, mas eu acho que não cabem no teu peito os disfarces para as alegrias e tristezas e para as dores que se derramam da nascente do pensamento que é exterior a tudo o que sejas tu.
Umas vezes estás cheio de alegria e não cabes em ti de contente.
E já te vi suar indignação na voz e a rebentar de fúria. Vi que as emoções que experimentaste não cabem em ti e vivem num lugar longínquo e inacessível. Há uma lista rabiscada que se enrodilha no bolso dos segredos.

3.
As tuas ilusões acordaram cansadas e nem tens força para juntar a voz da tua mão ao silêncio. E não podes senão escrever o silêncio de tempestade por te sentires obrigado a ouvir vociferar dirigentes de faca na liga e de federação do interesse privado em negócios milionários que viram interesse público e viram do avesso o estado de direito.
Já é mau saberes que existem. Horrível é saber que eles estão em toda a parte e até dizem o que pensam.

4.
Onde guardas o que calas? Para onde vais, quando o ar é irrespirável? Fechas os ouvidos ao que precisas de ouvir para não ouvir a boçalidade criminosa? Um vendaval de silêncio dissolve no oco as palavras que ouviste e não podes devolver.

[o aveiro; 7/9/2006]

as duas pastas

Trago sempre duas pastas dentífricas dentro da pasta onde guardo também alguma roupa interior e lenços de assoar. Nunca me foram úteis a...