O prego no sapato

Um amigo que é pai preocupado e prego no sapato publicou no passado domingo um comentário sobre a avaliação no ensino básico. Para os professores, como eu sou, a leitura de notas dos pais sobre o ensino e a prática dos professores ajuda a olhar para o nosso mundo. Passo a minha vida a falar sobre os problemas que ele levanta. Ainda hoje me deram a oportunidade de falar com professores estagiários da Universidade de Aveiro e só posso dizer que as suas preocupações não me são estranhas e, tenho de o confessar, que as partilho (não para o básico só - para todo o ensino). Avaliação urgente? Pois claro! De quem, afinal?

Os pais que assim falam ajudam a escola e os professores. É para ler.

De regresso de Moncorvo

De regresso de Moncorvo, onde estive a cumprir um dever de ofício, falando para professores de Matemática, dei pelo recado de A.A. Fernandes a recomendar a leitura de uma coluna do Público de quinta feira passsada - Aborto - em Defesa da Moderação - escrita por João Pedro Henriques. Aqui fica o recado de A.A.F.

Segunda

Na segunda feira, fui surpreendido por um título de tipo que já não lia há muito tempo -- Tópicos Sumaríssimos Sobre IVG de Sottomayor Cardia. Recomendo.

Do mesmo Público, de segunda, também recomendo a leitura de A Conspiração de Helena Matos que Alexandra Lucas Coelho escreveu. Bate bem, em meu entender.

A chave dos sonhos.

Quando se juntam dois velhos, de que falam eles? A maior parte das vezes falam do passado, umas vezes tomados por estáticas lembranças do bom que foi (mesmo que não tenha sido bom), outras vezes falando sobre o que podia ter sido e sobre se podia ter sido como se tinha pensado que era bom que viesse a ser. Estranha frase!

Se juntarmos duas pessoas com 25 anos de sócios da mesma cooperativa de habitação, de que falam eles? Do que era a cooperativa e do sonho que morava nas casas da sua imaginação, do que afinal não foi, de quem e do que se perdeu pelo caminho. De passagem, falam de quem travou o quê, de quem fez o quê. Falam dos 15 anos de dança entre terrenos, desde a fundação da cooperativa até às primeiras chave e fechadura de casa construída no que é a sua urbanização.

Sabem que a Cooperativa não é o que inicialmente sonharam como obra cooperativa. Eles lembram-se bem do que defenderam, dos terrenos em direito de superfície, da propriedade colectiva, da casa para habitação própria e só transmissível de pais para filhos, etc. Também sabem que afinal adquiriram casas em regime de propriedade individual e que há pessoas que venderam as suas casas a preços do mercado(o que é isso?), ou que as alugaram, … Eles estão rodeados da vida inteira e não só dos seus sonhos feitos realidade.

Viram as pessoas mudar entre os valores cooperativos e os do mercado. Hoje em dia, as pessoas são sérias (e espertas!) se aproveitam as oportunidades de acordo com a lei ou legalmente e não são sérias por o serem simplesmente. Os governos empurraram a actividade social das cooperativas para o mercado e as cooperativas não podem controlar a vida e actividade individual dos seus membros. Podemos lamentar que parte dos sócios das cooperativas não actuem de acordo com a ética cooperativa? Podemos. Haverá sempre bons e maus cooperativistas e cooperativistas que têm valores muito diferentes dos nossos. Assim acontece com todas as actividades humanas.

Sendo uma actividade humana contraditória, como todas, as cooperativas construíram casas e nós sentimos que fizeram bem, mesmo que tenha havido quem delas se aproveitou para outros fins menos legítimos, não menos legais. A cooperativa é feita de sonhos também por não controlar consciências.

Em 25 anos, tudo muda numa cidade. A Cooperativa de Habitação de Aveiro, CHAVE, faz 25 anos neste mês de Março e é uma parte da cidade que mudou. Merece humanos parabéns!

[o aveiro; 4/2/2004]

Achas para a fogueira

Há fogueiras que devem manter-se acesas enquanto a noite for fria.
Rui Baptista, homem de amor e ócio e de Aveiro, passou pel'O lado esquerdo e deixou recado.

Falou da Ana S. Lopes, a mulher que escreveu que o aborto de que se fala não é só um problema de consciência, é também ou principalmente(?) um problema da lei, e lembrou-me o artigo -- Embirrações e Bom Senso que o Rui Baptista escreveu num dia da semana passada. Enquanto o tio passeia o seu ódio inteligente (como eu o compreendo!) pelos economistas, um economista, que toma conta da economia intelegível, acrescenta-nos dados para olhar o problema da IVG. Para ler, claro!

Boa dica!

Dicas para a memória na passagem.

Aconselho vivamente o texto de Ana Sá Lopes O Debate, da última página do Público. Porque sim.
E ver o que desenha Maitena -- na Pública -- sobre as mulheres

E o texto do A. Barreto - Ainda as escutas , sobre direitos humanos entre o que cada um sente e o que o Estado pode sobre cada um. Tratra-se de assunto essencial da democracia, mesmo quando não parece.
E todos os que escrevem sobre escutas daqui, dali e de todo o mundo, ... na ONU, por exemplo.
E a entrevista de Alexandra Lucas Coelho a J. Cutileiro sobre o Iraque, os senhores da guerra, a diplomacia, a mentira, etc.

E o que é o bartoon de hoje , artigo do meu cronista social preferido - luis afonso.

A. Fernandes lembrou-me que tenho em casa um livro da biblioteca da escola, que já devia ter sido devolvido. O livro de puyg adam sobre geometria projectiva olha para mim pedindo que o leia. Sem sucesso, tenho de reconhecer. Tinha sido esquecido, estando mesmo a olhar para mim todos os dias, como culpa e remorso. E, no entanto, ele vale mais do que os outros afazeres e tudo o que gasta o meu tempo. Mais me valera ler o livro do que os jornais.

Hei-de ver chegar o tempo em que me dedique (a todo o tempo) aos livros por ler e passe sem ler jornais? Porque tornar a vida no acidente do dia de hoje, 29 de Fevereiro - público, diário de notícias, expresso, ... ? Isto dos jornais passa e, em cada dia, torno-me o arrependido do meu dia de ontem.

Os dias que passam a correr

É bom escrever alguma coisa a 29 de Fevereiro. É coisa rara só por isso. Devia mesmo procurar um livro de poemas escrito a soluços, garantidamente só em anos bissextos. E nada melhor do que concentrar isso a 29 de Fevereiro. Escrever os bissex(t)os da vida deve ser uma vitória. Com a vantagem de poder descansar verdadeiramente entre cada poema ou texto ou pintura ou desastre. A vida nos bissextos. A vida num dia exclusivamente bissexto. Sacrificar a vida toda ao descanso para garantir um produção gloriosa e bissexta.
Daqui para diante, se acabar o meu relatório hoje, a 29 de Fevereiro, começo poupar-me para o próximo dia 29 de Fevereiro. Só a qualidade do que for esse longínquo dia passa a interessar-me. Dou de barato todos os outros dias dos próximos anos para que esse dia acorde luminoso, cheio de harmonia criativa, capaz da revolução, capaz de ser capaz. Posso esquecer-me mesmo de mim e das minhas óbvias e visíveis fraquezas no resto dos dias. Sofro menos com tal projecto de vida e talvez até dure mais. Só sobra um problema: e se eu me esquecer do que ando a preparar, do que me espera e para que me estou a guardar. Então toda a minha vida seria inútil, exactamente como é hoje.

o que não era para ser feito

Quando não consigo dar conta dos meus recados, dou por mim a fazer outras coisas que não têm tempo e podem não ter qualquer utilidade aparente. Umas vezes desenho o desconforto, que é o que faço na maior parte das reuniões. Outras, adormeço à espera de nova tentativa que dê frutos. Hoje decidi vaguear por alguns “blogs” e até acrescentar ligações à medida que os ia descobrindo.


não devia enviar isto à Raquel, mas não fiz outra coisa.



A ave e as asas: aveiro e o lado esquerdo

Raramente sinto necessidade de me explicar. Penso sempre que não sou objecto de curiosidade ou estudo. Muito menos o que escrevo ou deixo de escrever. Penso que pouca gente lê o que escrevo. Mas para evitar ideias erradas, embora bem intencionadas vale a pena explicar a origem dos títulos "O lado esquerdo" e "aveiro.blogspot.com".

O blog "o lado esquerdo" é nome herdado de alguma coisa que escreveu Carlos de Oliveira (em "Sobre o lado esquerdo"?) e que, se a memória não me atraiçoa, dizia-me ( a mim que o lia!) que me deitasse sobre o lado esquerdo se quisesse esmagar o coração. O título tem mais a ver com a poesia do que com a política. Mas já houve quem atribuísse a "o lado esquerdo" a representação oficial ou oficiosa do Bloco de Esquerda em Aveiro. Não é verdade.

E o endereço url - aveiro.blogspot.com – só tem a ver com o motivo proximo por que foi criado. Numa dada altura, o meus "G4 titanium - mac" de serviço abandonou-me com o correio às voltas. Uma das minhas obrigações era o envio semanal de uma crónica para "o aveiro". Para não ter problemas com mensagens perdidas e por não estar sempre no mesmo sítio e à mão de semear, abri o "blog" mais como depósito de crónicas de "o aveiro" que outra coisa. Só por isso, foi registado com aquele nome. Aveiro como endereço tem mais a ver com o semanário que esperava que eu escrevesse, mesmo quando contrariado, do que com a cidade ou o que nela se passa. É a vida.


Espero ter esclarecido os nomes "O lado esquerdo" e "Aveiro".

Como prevenção aos que possam esperar de mim respostas sistemáticas a críticas sobre o que escrevo, aproveito para denunciar a minha fraqueza na vontade de ir a guerras, que não travo, em torno das minhas próprias opiniões que não são mais do que isso. Salvo raras excepções, a exposição das diversas opiniões conrtraditórias permite a formação de juízos por quem lê.


E, já agora, aproveito para me disponibilizar a ajudar à resolução de algum problema que haja entre “macs” e “blogs”.

E aproveito para confessar que tenho a opinião que vinga em aviz , que leio, a respeito do trabalho de Paulo Querido e do weblog.pt. Eu cheguei mesmo a tentar migrar, mas houve uma grande quantidade de problemas com caracteres e, sem tempo para os enfrentar, abandonei a ideia. Um dia, hei-de voltar a ela.

A percentagem de nós

Não admira que haja tantos problemas nas cervicais do povo do meu pais. Começo a desconfiar que é mais por excesso de exercício que por falta. Nós damos voltas à cabeça para perceber o que passa pela cabeça de alguns governantes e políticos. Eles dão-nos volta à cabeça. Ficamos feitos num nó ou num (dois ponto) oito e aprendemos como uma dor difusa pode tomar a forma de um nó na garganta.

De um lugar da plateia do povo, vejo fazer operações financeiras puras, passes rascas de magia e fantasia. De facto, não conseguimos reduzir as despesas nem aumentámos as receitas e também não produzimos mais riqueza verdadeira. E sobre isto, todos estamos de acordo. Apesar disso, o governo da nação consegue diminuir o défice. Qual défice? O real excesso de passivo ou despesa relativamente ao real activo ou receita? Não. De facto. o que a imaginação contabilística faz é tapar o buraco de uma conta. Como é que se tapa um buraco destes num instante? Vende-se o máximo que se pode do que se tem e penhora-se, etc. O mandato para quatro anos de um governo pode dar-lhe tempo para vender o património público de dezenas, quando não centenas de anos. Abrem-se novos buracos para obter receitas extraordinárias, na falta das ordinárias. Sem falar, é claro, no que se foi deixando de pagar (por exemplo, à indústria farmacêutica) para diminuir a despesa. Se comprarmos sem pagar, não aumentamos a despesa? De facto, transformamos o que não foi uma despesa de hoje numa enorme despesa de amanhã. Não tem custos vender à banca, a despesa para que seja ela a pagar? Não tem custos vender à banca as receitas por cobrar?
Porque é que devemos ficar todos contentes com o “dois ponto oito”? A percentagem tem alguma coisa a ver com rigor? Que números nos importam?
Os números de desempregados, de falências da produção e do comércio, da formação, os números da sida, da droga e da gravidez precoce, os números da justiça, das prisões e dos suicídios nelas, os números da fraude e evasão fiscais e da corrupção, os números da dominação do futebol em coberturas noticiosas das televisões, … só nos dão a medida da nossa tristeza. Relativamente à Europa, cada um destes números faz de nós campeões em percentagem de nós cegos.

A realidade social não conta. O que conta são os números que a mostram ou a escondem, porque somos um pais de trespasses (e trespassados). O objectivo de muitas empresas não é a produção de bens ou a prestação de serviços – é o negócio do lucro no trespasse. Tudo tem de ser rápido, em pequenos prazos – vantagens e lucro a qualquer custo e para ontem. Quem fala de empresa governativa hoje, fala disto… e de "tangas".

[o aveiro; 26/02/2004]

O sexo dos educandos e dos educadores

E não resisto a recomendar a leitura dos diálogos entre filho e mãe-professora, escritos por Graça Barbosa Ribeiro, sob o título E alguém os vai ensinar? no Público de hoje. Quem não se reconhece na dúvida?

E já agora, vale a pena ler o artigo de hoje de Santana Castilho - Fazer bem e bater certo . A certa altura, escreve ele: "Agora é a educação sexual, como se tal não devesse e não pudesse ser tratado em várias disciplinas e programas já existentes. Antes foram as novas tecnologias, assunto do foro metodológico transdisciplinar, ridiculamente remetido para disciplina autónoma. Outrora trataram de ignorar o dever que qualquer professor tem de ensinar o aluno a trabalhar e estudar para entregar a tarefa ao designado "estudo acompanhado", orientado por dois docentes em tempo específico. Farão bem, em seu entender. Fazem errado, no meu." E sobre a nossa inefável e inestimável educadora-chefe, ele escreve: "Luís XIV é por certo o Sol que ilumina a inefável secretária de Estado Mariana Cascais. Não me admirarei mesmo se do retrovisor da sua viatura oficial pender um galhardete com guizos e a inscrição "L'État c'est moi". Li Sua Excelência no "Diário de Notícias" e pasmei. Disse a dita: "... Se eu quisesse, não havia educação sexual..." Para os mais distraídos, recordo que esta senhora é a mesma que foi à Assembleia da República afirmar que a religião oficial do Estado português é a católica. Estará ela convencida de que faz bem?"

E chamo a atenção para uma outra opinião de passagem, agora sobre a religião nas escolas, depois de uma primeira parte de critica à posição do governo de Chirac sobre a proibição de sinais exteriores de riqueza religiosa: "O segundo vem de Inglaterra e conta-se em três linhas. Lá, os programas escolares e as demais decisões curriculares não são remetidas para comissões "ad hoc", como nós, erradamente, fazemos. Outrossim, competem a um serviço autónomo, a "Qualifications and Curriculum Authority" que, atenta à crescente expressão dos agnósticos e dos ateus, decidiu recomendar que, no âmbito da educação religiosa, se passassem a estudar, também... as convicções não religiosas. Chamo a isto fazer certo. Bem podíamos seguir o exemplo."

A finalizar, Santana Castilho, denuncia: "Quando em Óbidos, com pompa e circunstância, o Governo anunciou mil milhões de euros para investir na ciência, mais não fez que mera propaganda. Sabem os mais informados que se trata apenas de uma redistribuição geral de capitais afectos a programas anteriores, cujo nome foi mudado. À boa maneira das manipulações contabilísticas das Finanças e da Saúde."

Em tempos, que já lá vão, tive oportunidades desgraçadas de me cruzar com Santana Castilho, quando ele era secretário de estado de um governo de Cavaco Silva, a respeito de modelos para a profissionalização de professores ao serviço. E ele fazia o seu papel. Lembra-me sempre a maior humilhação que sofri às mãos dos poder (que tanto está acantonado no governo como nos sindicatos de que, ao tempo, integrava a comissão de negociação técnica para o assunto como membro do conselho nacional da fenprof).

A vida não se cansa de me surpeender.

Já reparámos, claro

Já tínhamos reparado. Fomos ler no papel do nosso "Público" diário, por insistência de Aurélio Fernandes. Pouco pão e muito circo, diz o amigo José Pacheco Pereira, falando do circo do futebol e do círco da política. Deste último, a grande estrela é o Santana Lopes. Já repararam? - pergunta ele. Já tínhamos reparado.

Logo no dia seguinte, Miguel Sousa Tavares, com um lápis afiado de bandarilheiro espeta uma bela estocada no Santana Lopes, ao mesmo tempo que estabelece uma fuga ágil para longe de tal touro, caso ele ganhe força e poder. Diz ele: "Se algum dia Santana Lopes for Presidente da República, eu, pelo menos, vou passar a ter vergonha de ser português. Quero ser bielorrusso, apátrida, monárquico, anarquista, qualquer coisa, menos cidadão de uma República de que ele seja Presidente." E acrescenta, para explicar tal falta de patriotismo: " Para além de qualquer juízo subjectivo sobre o valor que fulano ou beltrano tenham como candidatos a determinado cargo, há um mínimo - um mínimo que toda a gente entende qual é - exigível a quem quer ser chefe de uma nação. E Pedro Santana Lopes não cumpre esses mínimos." Vale a pena ler o texto completo de MST - Só nos faltava esta .

Na mesma semana, estar de acordo com dois articulistas de "O Público" é obra. Só o Santana Lopes podia conseguir tal façanha.

Prisão de vento

Nas últimas semanas, muito se tem falado da produção e consumo de energia eléctrica. Por um lado, prepara-se mais um mergulho de paisagem para uma nova grande barragem. Mobilizam-se jovens cientistas a contrariar esse empreendimento que, para um tempo de vida útil de 70 anos, tem um impacto eterno de destruição de ecossistemas, extinção e redução substancial de espécies. Esses especialistas e activistas da “Plataforma Sabor Livre” acham que falta definir um plano energético nacional que identifique as necessidades do país e proponha um conjunto de alternativas de produção e gestão energética, abandonando de vez a opção por pontuais barragens. Consideram que deve ser dada prioridade total à implantação de políticas de incentivo à eficiência energética e às energias renováveis que não contemplem grandes obras hidroeléctricas. Finalmente acham que Portugal deve adoptar “medidas ao nível da indústria, transportes e habitação, de incentivo às energias renováveis, nomeadamente solar e eólica, de economia de energia”.

Ao mesmo tempo, as directivas de planeamento europeu apresentam prazos para que os países membros atinjam metas, impossíveis de cumprir por Portugal, no que respeita à produção de energias renováveis. A instalação de parques eólicos, que já vamos vendo, também não é pacífica para os que se preocupam com a paisagem e, dia sim dia não, somos informados de falhas de planeamento que impedem a realização de projectos.

É certo que o consumo de energia não pára de crescer. E os interesses do negócio da energia electrodoméstica apostam em artificiais novas necessidades de consumo de energia. Aveiro é uma cidade de vento e sol e é o exemplo mau. Os planeadores da cidade e os construtores unem-se vezes sem conta para inibir as famílias de expor ao vento a roupa lavada que é preciso secar. Os lençóis e os vestidos de todas as cores deviam corar ao sol da nossa cidade e, batidos pelo vento, ser sinais de poupança de energia. Fechadas nas casas, torturadas nas máquinas de secar, as nossas roupas e a nossa cidade só podem corar de vergonha.

As politicas para aumentar a produção de energias renováveis têm de ser acompanhadas de politicas que evitem consumos supérfluos. Não fazemos uma coisa nem outra. E começamos a suspeitar que há ganâncias combinadas. Há quem tente mudar à força os hábitos saudáveis das famílias. Com pequenos gestos se fazem grandes roubos. Cabe aos cidadãos desfraldar as suas roupas ao vento como antes… e, pelo futuro!, como bandeiras de revolta.


[o aveiro; 19/02/2004]

O cardume.

Nos últimos tempos, o pais foi abanado por iniciativas da sociedade civil supra-partidárias que, face ao desastre nacional, pretendem influenciar uma sagrada aliança dos dois maiores partidos (um no governo, outro na oposição) para um pacto de estabilidade e crescimento. Lembro-me de muitos deles, pelas caras ou pelos nomes, que nos aparecem acima destas pequenas querelas de governo e oposição com uma força moral e intelectual "devastadora". Descubro-os em antigos governos, em administrações de patrimónios públicos e privados, fundações, etc. Lembro-me deles como sendo aqueles que eram isto e se mostraram competentes para outra coisa qualquer. Não é preciso lembrar-me das suas formações iniciais, porque a competência que lhes é reconhecida é tão vaga nas palavras e nas acções quanto precisa na conquista do poder e de salários milionários (nos sectores públicos ou privados, ou entre uns e outros). Há mesmo alguns que são chatos desde a juventude militante, tendo ficcionado uma versão de eminências pardas (literalmente pardas!). Quase todos eles foram e são elementos da cadeia de negociantes políticos que nos trouxeram até aqui. Ouvi-los a pensar é de arrepiar!

Nos últimos dias, os miúdos do peixe graúdo (novos de cabelos brancos, tão novos como “jovens agricultores” ou “dirigentes de juventudes partidárias”), gestores, administradores e similares também vieram a terreiro com um grande encontro - no convento do(s) beato(s) – para influenciar e promover sagradas alianças em torno de um novo modelo de desenvolvimento. O meu coração quase não resistia à excitação. Finalmente iria ouvir palavras de salvação. Devo ter perdido o essencial, mas ouvi as palavras do costume: #flexibilizar e agilizar; emagrecimento do estado; a Europa e a Espanha não constituem quaisquer perigos, antes são desafios e oportunidades; quem não tem medo da competição não tem medo de Espanha; "etc. Fiquei menos sossegado. No que respeita ao capital, não só não há sério conflito de gerações, como os mais novos aspiram ao paleio dos “cotas”.

Pelo que me foi dado ouvir, o modelo de desenvolvimento que lhes passa pela cabeça não é novidade que nos aqueça e, quem nos dera! que não arrefeça. É “Boss botled” – no convento do beato. Viva o "25 de Abril" que permite todas as reuniões.

[o aveiro; 12/2/2004]

Eu sei que quero

Eu sei que quero tocar nas tuas teclas em carne viva
Na tua pele nas extremidades dos teus nervos mais sensíveis
é aí que procuro o destino das casas improváveis mas possíveis
paredes da clausura para que a minha na tua alma sobreviva

quem chega e quem parte

tu li(m)pas!

aramadilha cercada

A armadilha

Na última semana, prestei especial atenção a alguns analistas e políticos que trataram dos assuntos da justiça, das trapalhadas dos Ministérios da Justiça e das Finanças, do congresso da CGTP e das declarações de Carvalho da Silva e Mário Soares, para além de uns trocados sobre a economia em crise e o pacto de estabilidade.

Sempre com dificuldade em engolir as suas opiniões, até é possível que tenham razão e é mesmo possível que falem de evidências que só a mim escapam. Para continuar saudável, tenho de recusar o seu mundo tão simples quanto terrível. Para eles, o discurso de Carvalho da Silva no Congresso da CGTP não é o natural discurso politico de um dirigente sindical para este tempo de crise, de congelamento de salários, de encerramento de empresas e despedimentos em massa, de desemprego, de cortes no sistema de saúde pública, de privatizações de sectores que são considerados essenciais para garantir o acesso universal a certos bens e serviços, etc. Para eles, o discurso de Carvalho da Silva é o discurso de um indivíduo que dá sinais de querer ser secretário geral de um partido. Não são as circunstâncias da situação politica que determinam os actuais discursos de Carvalho da Silva ou de Mário Soares. Para eles, os discursos não passam de manigâncias individuais no cenário da conquista de um poder qualquer. Em que mundo foram criados estes analistas? Os seus conhecidos trazem punhais afiados nos bolsos prontos a ser enterrados nas costas de seus rivais ou aliados que lhes perturbem a caminhada. Só pode ser. E, a ser isso verdade, pelo que nos é dado ver, o modelo de que se servem para analisar os actos dos indivíduos em geral, só pode espelhar a gente que está no poder ou nela se reflectem. Não é perturbador este jogo de espelhos?

E, ao contrário do Reino Unido, em que a mentira matou e ainda demite (como aconteceu recentemente na BBC), os políticos, militares, comentadores e jornalistas que mentiram e influenciaram a opinião pública a favor da guerra não mostram quaisquer sintomas de culpa ou interesse em estabelecer a verdade e, em Portugal, esse passado próximo foi assassinado e está enterrado em parte incerta. Não é perturbador que a honra se tenha suicidado?

O jogo consiste em abafar com barulho o ranger de dentes e imaginar brilhantes futuros como vestidos do pobre presente. E sobre alguns incómodos de consciência, que se estenda uma mortalha de silêncio. Quem anda a montar a armadilha?

[o aveiro; 5/2/2004]

O circo com feras

O Ministério da Justiça de Celeste Cardona mostra o seu melhor no domínio das artes circenses ao arriscar uma dupla pirueta seguida de salto mortal atrás.
Começa por não entregar prestações devidas à Caixa Geral de Aposentações até que esta ameaça não processar nem mais uma aposentação aos funcionários do Instituto em falta. Pouca gente olha para esta primeira fase da pirueta, porque os holofotes estão apontados para outro lugar da arena. Pensou que os holofotes não a iriam destacar e podia continuar os seus ensaios longe dos olhares do público? Ou não suportou a falta dos aplausos e vaias? O que é certo é que arriscou tudo na segunda fase da pirueta.
E, descontando nos salários de um ano (?) de centenas de oficiais de justiça eventuais as devidas prestações para a segurança social, a esta não fez as entregas impedindo as acções de apoio social aos trabalhadores, que a elas tinham e têm direito.
Mas o melhor ainda estava para vir., o salto mortal atrás. Afirmando a pés juntos que não praticou qualquer ilegalidade, vem explicar que não podia entregar as verbas por não haver o completo enquadramento legal das contratações daqueles trabalhadores. Faltava uma autorização do Ministério das Finanças? Faz-se uma autorização especial e, de rabo descoberto, as entregas são prometidas para breve. E tudo volta à normalidade, tudo fica regularizado. Fica?

A dupla pirueta da retenção de impostos e prestações sem a consequente entrega é crime. É o Ministério da Justiça que dá o exemplo e, por essa via, cobre com um manto de poeira os milhares de crimes da mesma natureza que empresas privadas cometeram ou venham a cometer. Como pode tal Ministério arrogar-se competência para o combate à fraude, ao crime fiscal e tributário? Quem se pode admirar de tanta fuga e tanto roubo, sem castigo, que tolhe o pais?

O salto mortal atrás levanta a ponta do véu da mentira que são as “causas” deste governo para a administração pública. As regras que se aplicam à contratação dos funcionários públicos e que a impedem podem não ser aplicadas, por exemplo, pelo Ministério da Justiça. Ironia? Não. Só a tristeza de um albergue onde não há lei nem regra que tolha a vontade deste ou daquele governante mais talhado para a farsa das chantagens em coligações de poder.

Quem julga que este circo é um espectáculo oferecido ao povo, está enganado. Não há espectáculo mais caro. Mas é o único em que autênticas feras arriscam duplas piruetas com salto mortal.


[o aveiro; 29/01/2004]

como rilke, fendendo a porcelana da noitinha



Quando a tardinha dá lugar
à noitinha, há praças que tomam
a forma de aquários.

A água suspensa
suspende-nos um pouco acima do chão
e fendemos o tempo lentos entre as gotas
das cortinas de chuva miudinha
que desenham portas na cidade.

Sem ninguém à vista desarmada
respiramos à maneira de quem nada
num voo mariposa.

nãdesdenhes, se puderes



não me abandones antes de ter encontrado
o silêncio de ouro
que é o que sobra como tesouro
das histórias inteiras que fazem o nosso fado

a guitarra que só depois de ter o visto
e o ouvido vestido
deixa marca escrita no areal do rosto pelo mar varrido
uma mancha das palavras com que eu me visto

para descrever-te o instantâneo a revelação
final numa câmara escura
onde registas o teu sonho de aventura
e eu vejo a tua alegria como redenção

e, se puderes, sussurra-me o segredo
do teu riso
e eu nunca mais volte ao meu perfeito juízo
de onde devia afinal ter saído muito mais cedo

des(d)enho

desdenho

onde estamos, onde nos afundamos?



Aqui fundeamos, soltamos uma âncora
e esperamos que ela encontre quem a prenda
e nos prenda a nós
nas vagas de um lugar qualquer
ainda que cercados por tubarões
de que sabemos nomes e apelidos.

Porque será que preferimos o incerto lugar
e fundamos a esperança neste alto mar?

A matéria dos sonhos

É como se nada do que vimos acontecer tenha acontecido. Os debates sucedem-se por força do que acontece, mas metade dos participantes aceita a chamada ao debate como se nada tivesse acontecido que o motivasse. Pensamos mesmo que eles e elas aceitaram o tempo presente como matéria de que é feita a eternidade. E todos se fecham numa concha de coerência e moral que são matérias estranhas e exteriores à composição química dos políticos no poder.

As formas governamentais de descentralização e reorganização do território são uma novidade? Permitem aos municípios iniciativas conjuntas por sua conta e risco. Já não era assim? Não se mantêm todos os actuais entraves ao desenvolvimento local e regional? Algumas das concretizações só podem classificar-se na categoria de pesadelos. A contiguidade territorial já fez com que Castelo de Paiva passe a estar no Vale do Sousa. Alguém sabe que unidade é uma área metropolitana? Quem sabia, vai deixar cair o conceito para poder aceitar as designações de novas realidades (ainda que virtuais) portuguesas. A haver alguma área metropolitana por aqui perto ela já existe e atrai os municípios do norte do distrito.

A educação e o ensino não tem quaisquer problemas e tudo o que se fez e faz vai no bom sentido. Dizem-nos que todos podem ver que há coragem e capacidade de decisão e que finalmente as escolas vão poder cumprir o seu papel. Porque é que trabalhadores da educação, sindicatos e uniões, associações de estudantes e confederação de pais ou mesmo as ligas católicas apelam a uma marcha pela educação marcada para a próxima sexta feira?

Todos são a favor da necessidade de uma reforma na administração pública. Mas parece que a reforma proposta pelo governo não é afinal a resposta a esse desejo profundo. Que consequências terá o congelamento dos salários da função pública pelo segundo ano consecutivo? Nenhuma? As greves marcadas são motivadas pelo egoísmo feroz?

Não há mulheres a serem julgadas por um crime catalogado em lei e que ninguém quer ver mais castigadas do que já foram pelas suas próprias vidas? Não é verdade que há muitas dezenas de milhares de portugueses a assinar petições para pôr fim a esta ignomínia?

Os pesadelos são da mesma matéria dos sonhos? E o poder é surdo e cego? Para que é o espanto? Eu quero estar enganado.

Nunca me lembro do que sonho, mas sei que os meus sonhos não moram nestes tempos.


[o aveiro; 22/1/2004]

O absurdo paleio



Nunca procurei o absurdo. Mas quando o encontro, ponho-me a olhá-lo olhos nos olhos. Nunca se deixa intimidar. Quando dá por mim, a olhá-lo, não desvia o olhar. Só um olhar mais aberto que arqueia a sobrancelha como que a perguntar o que é que se passa. Penso que deve ser isso, porque o absurdo não abre a boca para perguntar. Aliás, pensando bem, o absurdo nem tem boca. Penso que evoluiu e perdeu a boca por não precisar dela. O absurdo mostra-se e guarda os olhos mais para se ver. Mas mesmo os olhos do absurdo já me parecem rudimentares e pouco devem ver. Isto é o que me parece, já que nunca pude falar com qualquer dos absurdos que se cruzaram na minha vida. E também não tenho notícia sobre como era o absurdo antes eu poder ver. E é, por isso, que também tenho sérias dúvidas a respeito da validade da minha teoria sobre a sua evolução para a não boca. Também não me parece que ouça apesar dos dois pequenos orifícios, um de cada lado da sua cabeça. Será aquilo que vejo mais que uma bola sobre as duas estacas do absurdo? Porque há-de ser uma cabeça? Se fosse uma cabeça, isso significaria um cérebro, uma mente do absurdo. E teria livre arbítrio, ao menos em parte? E as estacas que o levantam do chão serão pernas para andar? Ou o absurdo está preso ao chão como um vegetal vivo livre para ser abanado pela brisa ou pelo meu sopro, mas incapaz de fugir ou sequer desviar-se de mim. Nunca pensei em ir de encontro a um absurdo com que tenha dado de caras. E, por isso, sei muito pouco sobre as suas reacções e e sobre a sua mobilidade ou motricidade. Só sei que quando vejo o absurdo, posso olhá-lo e que ele se deixa olhar sem se sentir intimidado. Quando o rodeio, ao passar por ele, vejo-o de vários pontos de vista, mas ele parece-me igual sempre virado para mim. Agora que estou a pensar nisso é que me lembro de o ter visto sempre frontalmente, mesmo enquanto vou passando por ele. E é fascinante já que nunca lhe vi outro movimento para além daquele arquear das sobrancelhas. Que agora acomeço a duvidar de mim quando penso que vi isso. Será que vi isso realmente? Ou, ao descrever o encontro, descrevi o que esperava ter visto como quando vejo pela primeira vez uma pessoa que não conheço e não há razão para outra coisa senão o espanto contra um olhar fixo no vazio. Agora que o escrevi, tenho de reflecir sobre o vazio como absurdo e aceitar que, provavelmente, nunca dei de caras com o absurdo e afinal dei por mim a chamar absurdo ao vazio que olho fixamentede vez em quando. Outras pessoas devem ter visto o que eu vejo. Será que pensaram o mesmo que eu quando viram o absurdo? Duvido agora que lhe tenham chamado absurdo sequer. O mais natural é que, se forem inquiridas sobre o assunto, respondam de forma incoerente e declarem que não viram coisa alguma, ou pior!, que não percebem a pergunta e que o fulano deve ser mas é maluco. Valerá apena perguntar a alguém? Talvez a um amigo que seja capaz de ter pena de mim.

SOUS LES PAVÉS, LA PLAGE!

Recebi uma mensagem dos Rui Bebiano e Tó Lopes. Acabou a espera. Eles voltam.

"Na sequência do prometido quando do fim da ZonaNon, venho anunciar-lhe o lançamento de um blogue que integrará a participação regular ou ocasional de alguns daqueles que participaram nessa longa aventura. A orientação é um pouco diferente, mas não deixará de encontrar por ali chamas que ainda não se extinguiram.

Alguns aspectos de funcionalidade ainda se encontram a ser concluídos, mas, se achar bem, pode desde já acrescentar a seguinte ás suas ligações favoritas:

SOUS LES PAVÉS, LA PLAGE!
http://laplage.blogs.sapo.pt/ "


Saudemos o regresso!

De fora para dentro

Nas últimas semanas, por mais tempo do que seria desejável, ouvimos falar do sistema educativo por razões que não são as melhores. Num tempo de nova Lei de Bases, revisão curricular e medidas para o apoio aos jovens com necessidades educativas especiais, as vozes que se ouvem não falam disso, mas de dificuldades nas colocações de professores, compadrio em deslocações de professores, etc.
Uma boa parte da paz e do sucesso das escolas do ensino público vive de poucas coisas seguras: a colocação dos professores obedece a critérios claros e objectivos, garantindo que é colocado o profissional mais qualificado entre todos os que se candidatam; há programas estabelecidos que contemplam o necessário para a vida em conhecimentos e competências escolares; os sistemas de aferição e provas de exame são adequados aos programas e servem os seus objectivos de verificação do que se aprendeu e é necessário para novos estudos ou para ingressar numa vida profissional em que a formação subsequente mais direccionada muito depende da formação escolar inicial. E vive principalmente de valores sociais de integração que é preciso incutir pelo exemplo de todos os dias, a começar e a acabar na vida dos responsáveis.
Para estragar, já nos bastam as calamidades e a maldade que todos os dias assaltam a vida social relatadas pela comunicação social e cabe também à escola interpretar e moderar. O pior que nos pode acontecer é termos responsáveis pela educação sem valores, que não possam ser apontados como exemplos de honestidade, respeitadores das regras sociais e das leis, cumpridores das obrigações individuais para com a comunidade.
A interferência nos exames nacionais do ano lectivo passado, as malfeitorias de favorecimento no acesso ao ensino superior para familiares de altos responsáveis, as deslocações de favor e à margem da lei de professores de umas escolas para outras são factos e actos perniciosos ao sistema de valores que o sistema educativo também é. Só nos faltava a notícia desta semana que envolve o próprio Ministro da Educação em incumprimento de obrigações e jogos.
Que pode fazer a escola? Sejam e façam como nós dizemos, não sejam como mostram ser os nossos responsáveis? Nada é pior para a educação de um país do que ser atingida pelo mais fulminante desalento: “Já que ninguém se salva, salve-se quem puder!”


[o aveiro, 15/01/2004]

A professora.

Nos dias mais calmos da vida, saio de casa para a leitura do jornal da manhã, acompanhada de café e água mineral. Aproveito também para desenhar e escrever à mão num caderninho de folhas soltas, fazendo exercícios de salvação dos meus dedos tolhidos pela artrose da idade, pelos teclados das máquinas e na perseguição de ratos que teimo em domesticar.

Assim estava eu escondido nesse meu canto de café, quando ouço gritar o meu nome ou parecido, logo seguido de uma melopeia sobre a Escola José Estêvão. “Já não te lembras de mim? É natural, mas eu sim eu lembro-me bem de ti. Ainda estás na escola, não?” Puxei pela memória dos milhares de rostos que vi na escola e tenho de reconhecer que a cara que me fitava não me é estranha. Devo ter assentido nesse reconhecimento vago. Tanto bastou para ouvir uma reclamação gritada contra a situação, contra as colocações de professores, contra o Ministério, contra a corrupção, contra tudo e todos. Em calão claro, grosseiro. E a história gritada para todo o café: “Concorro todos os anos, já há cinco anos que não sou colocada, não tenho dinheiro, agora estou à espera do rendimento mínimo, …” Finalmente, em tom ligeiramente mais rouco, pediu que lhe emprestasse dois euros. Do pouco dinheiro disponível, dei-lhe a única nota que tinha. Quando ela se foi com o dinheiro, ouvi-a pedir o troco da nota para ir à máquina comprar cigarros. Enquanto saía do café, ainda gritou: “Sei muito bem onde te encontrar, quando tiver o dinheiro”.

Podia vir aqui falar de uma irritação surda contra ela que ia fumar o dinheiro. Mas não me sobrou irritação – só uma funda turbação e muita tristeza. Não só a mim: nenhuma outra fala humana se ouviu durante a altercação.

O que é que é injusto? Sabemos que as crianças não podem sofrer com a administração de ensino por uma pessoa que perdeu a identidade na espiral de desgraça em que se perdeu a professora que nos enfrentou no café. Mas desejamos ardentemente que seja colocada como professora se esse for o seu direito! Só podemos revoltar-nos por não cuidarmos que cada pessoa possa cumprir-se num destino digno e útil. Se tivesse sido professora nos últimos cinco anos, esta mulher seria completamente diferente?

A pessoa que me enfrentou no café deixou-me diferente, tocado pelo seu assomo de arrogância trágica. Como uma mágica unidade estatística saltou dos relatórios dos governos. Para não me deixar indiferente.


[o aveiro; 8/1/2004]

Bom Ano

Para todos os que se interessarem por isso, a minha vida só depende da vontade dos outros em viver bem o ano de 2004. Vivam bem, pois! Se não precisarem de fazer por isso por vocês mesmos, façam-no por mim. Eu mereço alguma compaixão. Cada um de nós merece.

Para mim, isto é coisa da idade, o que conta é que está passsado. 2003 já cá canta e não vai constar da minha pedra tumular.

As minhas fotografias são todas a preto e branco, mesmo quando não parecem. Umas vezes, vejo o negativo; outras vejo pelo positivo. Ainda consigo fazer revelações. Não há qualquer angústia em saber. Também não me amofino quando finjo que não sei.



uma resposta possível

Na minha caixa de correio, apareceu um pedido de divulgação de um texto que circula por épocas como sendo de ontem, cujas ideias são agora atribuídas a Cristovão Buarque. Desta vez, recebi a mensagem de Armando Herculano (de Vila do Conde?). Não me lembro do conteúdo exacto das anteriores divulgações nem posso garantir que tenha sempre sido atribuído ao mesmo autor. Mas só faço bem em divulgar o dito cujo.
Aqui vai:



Durante o debate em uma Universidade, nos Estados Unidos, o ex-governador do Distrito Federal e atual Ministro da Educação, CRISTOVÃO BUARQUE, foi questionado sobre o que pensava da internacionalização da Amazônia. O jovem americano introduziu sua pergunta dizendo que esperava a resposta de um humanista e não de um brasileiro. Esta foi a resposta do Sr. Cristóvão Buarque:

"De fato, como brasileiro eu simplesmente falaria contra a internacionalização da Amazônia. Por mais que nossos governos não tenham o devido cuidado com esse patrimônio, ele é nosso.

Como humanista, sentindo o risco da degradação ambiental que sofre a Amazônia, posso imaginar a sua internacionalização, como também de tudo o mais que tem importância para a humanidade.

Se a Amazônia, sob uma ética humanista, deve ser internacionalizada, internacionalizemos também as reservas de petróleo do mundo inteiro. O petróleo é tão importante para o bem-estar da humanidade quanto a Amazônia para o nosso futuro. Apesar disso, os donos das reservas sentem-se no direito de aumentar ou diminuir a extração de petróleo e subir ou não o seu preço.

Da mesma forma, o capital financeiro dos países ricos deveria ser internacionalizado. Se a Amazônia é uma reserva para todos os seres humanos, ela não pode ser queimada pela vontade de um dono, ou de um país. Queimar a Amazônia é tão grave quanto o desemprego provocado pelas decisões arbitrárias dos especuladores globais. Não podemos deixar que as reservas financeiras sirvam para queimar países inteiros na volúpia da especulação.

Antes mesmo da Amazônia, eu gostaria de ver a internacionalização de todos os grandes museus do mundo. O Louvre não deve pertencer apenas à França. Cada museu do mundo é guardião das mais belas peças produzidas pelo gênio humano. Não se pode deixar esse patrimônio cultural, como o patrimônio natural amazônico, seja manipulado e destruído pelo gosto de um proprietário ou de um país. Não faz muito, um milionário japonês, decidiu enterrar com ele, um quadro de um grande mestre. Antes disso, aquele quadro deveria ter sido internacionalizado.

Durante este encontro, as Nações Unidas estão realizando o Fórum do Milênio, mas alguns presidentes de países tiveram dificuldades em comparecer por constrangimentos na fronteira dos EUA. Por isso, eu acho que Nova York, como sede das Nações Unidas, deve ser internacionalizada. Pelo menos Manhatan deveria pertencer a toda a Humanidade. Assim como Paris, Veneza, Roma, Londres, Rio de Janeiro, Brasília, Recife, cada cidade, com sua beleza específica,sua historia do mundo, deveria pertencer ao mundo inteiro.

Se os EUA querem internacionalizar a Amazônia, pelo risco de deixá-la nas mãos de brasileiros, internacionalizemos todos os arsenais nucleares dos EUA. Até porque eles já demonstraram que são capazes de usar essas armas, provocando uma destruição milhares de vezes maior do que as lamentáveis queimadas feitas nas florestas do Brasil.

Nos seus debates, os atuais candidatos a presidência dos EUA tem defendido a idéia de internacionalizar as reservas florestais do mundo em troca da dívida. Comecemos usando essa dívida para garantir que cada criança do Mundo tenha possibilidade de COMER e de ir a escola. Internacionalizemos as crianças tratando-as, todas elas, não importando o país onde nasceram, como patrimônio que merece cuidados do mundo inteiro. Ainda mais do que merece a Amazônia. Quando os dirigentes tratarem as crianças pobres do mundo como um patrimônio da Humanidade, eles não deixarão que elas trabalhem quando deveriam estudar, que morram quando deveriam viver.

Como humanista, aceito defender a internacionalização do mundo. Mas, enquanto o mundo me tratar como brasileiro, lutarei para que a Amazônia seja nossa. Só nossa!".

O Postal de Ano Novo

Quando eu era pequeno, na minha aldeia, a caixa vermelha do correio estava pendurada na parede exterior da loja de fazendas do meu tio-avô Claudino. Nunca cheguei a enfiar lá qualquer carta. Também não chegava à caixa. O meu tio vendia os envelopes, os selos e os postais e, em caso de necessidade, escrevia as cartas.

O carteiro vinha de Vagos de bicicleta com o grande saco preso no quadro. Se vinha carta e não havia gente na casa, a carta era metida por debaixo da porta da sala do Senhor. Mas a maior parte das vezes, o carteiro parava na estrada, chamava pelo nome quem andasse no campo e entregava a carta e o recado ali mesmo. As mulheres de mãos embrulhadas nos aventais esperavam o carteiro para lhe entregar cartas, documentos, ordens para aforros, dinheiro para enviar vales postais a este ou àquele, etc. Nesse tempo, em Vagos, não havia balcões de serviços como há hoje. Havia os correios.

A recolha e distribuição postal pelas aldeias e vilas de todos os pontos do território tem de ser assegurada como um serviço público, uma obrigação. Por pouco lucrativa que seja a prestação do serviço em regiões deprimidas e isoladas, nenhum argumento na base do lucro ou do prejuízo pode pô-lo em causa. O mesmo para a energia, transportes, telecomunicações, … As concessões do Estado para estes serviços essenciais tem de ser feita com salvaguarda da igualdade dos cidadãos no acesso aos bens e serviços essenciais.

Nas últimas semanas, ouvimos falar do encerramento de estações dos correios no interior do país. É claro que, como se percebe pela memória da minha infância, não tenho nenhuma objecção a que o serviço seja assegurado em combinação com outros serviços. Os centros cívicos das freguesias acrescentam animação comunitária com a prestação de serviços como a venda de selos, internet, multibanco, aforros, etc.
Estranho é que se oiça falar de iniciativa dos CTT com ameaça de fechar esta ou aquela estação por não ser rentável. Isso é intolerável e se a empresa concessionária o fizer, o Estado pode caducar a concessão rentabilíssima de ser a empresa Correios de … Portugal.
Ouvi alguns autarcas falar disso e do protocolo entre a ANAFRE e os Correios de Portugal, algumas reclamações dos trabalhadores dos correios e nada mais.

Não ouvi o Governo. Talvez não tenha recebido o postal de alarme… deste Ano Novo, por ter deixado despedir o carteiro.


[o aveiro; 31/12/2004]

Perto ... Irão

Era preciso escolher a época e ter sorte.

No meio de uma clareira, os homens amontoavam areia ou terra do pinhal, algum barro e às vezes palha. E acrescentavam água na cratera que abriam no topo. Depois amassavam a mistura. Enchiam-se baldes que se despejavam dentro de uma forma paralelipipédica aberta dos dois lados. Compactava-se e tirava-se a forma. Ali ficava a promessa de adobe. Punha-se a forma ao lado, enchia-se daquela massa de que é feita a terra húmida, comprimia-se. Quando se retirava a forma, havia uma nova promessa de adobe ao lado da anterior. Enchia-se a clareira de filas de promessas de adobes. Deixava-se a secar ao sol.

Quando o sol era mesmo muito, tapavam-se as promessas com bicas dos pinheiros ou alguma palha que, para o efeito, se levava até à clareira aberta. Naquela espécie de eira grande, os pedaços de terra barrenta tinham de secar sem abrirem rachas. [Lembro-me de uma reportagem em que as crianças trabalhavam no fabrico de qualquer coisa parecido com os adobes da minha infância]

A última vez em que a minha família se juntou na tarefa de fabricar adobes foi, se não me engano, para a casa do meu irmão mais velho. As construções que foram acrescentadas depois já são em betão, cimento e tijolos.

Não sei porquê, as notícias sobre o sismo no Irão e, particularmente, as fotografias e notícias da destruição da cidadela de Bam, lembraram-me os adobes da minha aldeia. Ao ver as casas que desabaram agora como castelos de areia, dei por mim a admirar as construções antiquíssimas que se aguentaram desde a idade média talvez por serem feitas de adobe, de areia.

E dei por mim a ser iraniano, vagueando entre os adobes estilhaçados por uma revolta da terra. E vi-me na minha pequena cidade com menos habitantes do que Bam, sobrevivente numa falha do tempo com os olhos vazados pelo desespero de ter visto morrer tantas pessoas quantas as que cabem na minha cidade.


Não escolhemos estas épocas de sofrimento. Para não as viver é preciso ter a sorte de estar noutro lugar.

Não podemos fugir do sofrimento. Cheiramos a morte que não foi possível evitar.

Hoje recomendamos:

1. António Aurélio Fernandes recomendou vivamente o filme "Invasões Bárbaras" de Denys Arcand, de que me tinha distraído. Para quem é de Aveiro, o filme pode ser visto no Cinema Milenium Oita. Pode ler alguma coisa (em português) sobre o filme, por exemplo, RESENHAS E ARTIGOS em omelete.com.br - , onde pode encontrar também um pedacinho de video para amostra.
Há muita informação disponível na net sobre o filme.

2. Recebi hoje uma chamada de atenção que me levou a visitar o dito cujo . Aqui o recomendo vivamente por várias razões que se prendem com Aveiro, a propriamente dita.

o desenho


que pátria é a dos "portriotas"?

Os biquinhos delicodoces do nosso primeiro ao falar dos nossos compatriotas em missão no Iraque são deliciosas imagens a proclamar uma inocência infantil na defesa da paz. Os apelos delicodoces para a união de todos no apoio à intervenção portuguesa no Iraque, com menção ao aval das Nações Unidas, foram deliciosos cantos de sereia no chuveiro.
Sabe-se que agora que nem Portugal foi tido ou achado nos acordos feitos e que o governo português não se preocupa coisa alguma com o aval das Nações Unidas. Basta ler o texto dos acordos dos Ministérios da Defesa e da Administração Interna com o Reino Unido que o Público divulgou hoje: Defesa e Administração Interna Negociaram em Londres Acordo Secreto Sobre as Condições da GNR no Iraque , para sabermos que Portugal não existe como estado nos conifdenciais memorandos de entendimento deste nosso governo formado por lacaios de potências estrangeiras.

Ninguém nos salva da vergonha de nos sabermos representados por quem não tem pátria ( "No "Memorando de Entendimento" (MOU) confidencial assinado a 10 de Outubro, para a participação da Guarda Nacional Republicana (GNR) na "Força de Estabilização no Iraque" (IZSFOR), Portugal é o único país a não ser referido como Estado, mas como "ministério da Administração Interna do Governo de Portugal". Todos os outros países sem excepção - Dinamarca, Holanda, Itália, Lituânia, Noruega, Nova Zelândia, República Checa e Roménia são apresentados como Estado: Reino ou República." )

Ler este destaque e os com ele relacionados, dá-nos uma ideia da baixa política e da capacidade de mentir dos nossos responsáveis que escondem os seus verdadeiros propósitos e objectivos sob variadíssimas capas de verniz (ou hipocrisia?). Já não há verniz que preste - estoira todas as semanas. Não seria melhor que estoirasse de vez? Não seria melhor que … despissem os seus vestidos de fantasia, tirassem a máscara e se mostrassem em todo o seu esplendor? O que nos revela o Memorando de Entendimento secreto?

Marinão

A boa notícia é que o projecto da Marina da Barra recebeu um chumbo. A má notícia é que a última palavra, se houver recurso da empresa promotora ( e vai haver, não é?) cabe ao ministro Amílcar Theias que é tudo menos independente face ao promotor da coisa. Um artigo do "Independente" levanta esse conflito de interesses. Pode ler essa notícia - Marina da Barra -, publicada em GAIA - Grupo de Acção e Intervenção Ambiental . Vale a pena seguir com atenção os movimentos dos promotores da coisa e apoiar os movimentos contra a coisa. Particularmente, vale a pena seguir a polémica que está estabelecida entre os responsáveis autárquicos de Ílhavo e Aveiro.

O Pato Donald

António Aurélio Fernandes recomenda a leitura de O Pato Donald, de Fernando Rosas que vem no "Público" da véspera de Natal.
Quem não recomenda?

Recomendações de hoje

O "Público" de hoje traz vários artigos que recomendo vivamente:

- um sobre as fugas ao fisco, seu descontrole e incapacidade dos tribunais - O Sr Vitor Santos -, editorial de Eduardo Dâmaso;

- de Teresa Sousa, O País das senhas ;

- de José Vitor Malheiros, Contra o aborto ;

- de Eduardo Prado Coelho, Para que servem as universidades? ;

- e, finalmente, de Vital Moreira, A Democracia Incompleta .

duplicidade


mar e céu nossos


ensimesmar

O Alexandre Monteiro , do - no arame - visitou o "lado esquerdo" e fez um comentário sobre este céu e este mar, pedindo que não esquecesse o sal :-). O sal desta imagem de, por enquanto, nossos mar e céu da barra, não é o que anda por aí perdido como achado sobre a incúria pela futura arqueologia. De facto o sal da coisa esteve na notícia do chumbo da marina da barra. Devia ter explicado. Se houver marina, tudo vai ser diferente - o sal, o céu, o mar e principalmente a forma de lá chegar. Quem sabe?
Pelo meu lado sempre fiquei a conhecer o "no arame", por onde me passeei devagar, com prazer.

O Natal do pequenino

No passado dia 15 de Dezembro, a Universidade de Aveiro comemorou os seus trinta anos. De entre os diversos actos académicos e culturais, destacaram-se os doutoramentos “Honoris Causa” de António Damásio e Daciano Costa.
A consagração académica de António Damásio cabe dentro da concepção universitária dominante, já que consagra o trabalho de investigação científica nos domínios das ciências exactas e experimentais, reforçado pela divulgação e discussão dos resultados reconhecidos e suas aplicações. O reconhecimento internacional de António Damásio acrescenta, pensava eu, trivialidade à sua consagração académica.
O caso de Daciano Costa, chamado pai do “design” português, é uma consagração de outro tipo, porque a actividade do consagrado não se enquadra em nenhum dos domínios reconhecidos como clássicos pelas universidades – não vem das classificadas intervenções científicas, literárias ou sequer das belas artes. Dito isto, o doutoramento “Honoris Causa” de Daciano Costa tem um significado que ultrapassa a personagem em si, para ser o reconhecimento e a consagração dentro da Universidade de uma nova área de acção e de saber. Há cursos na Universidade de Aveiro que relevam dessas novas áreas, autonomizadas em espaços próprios de intervenção social até se afirmarem em necessidades de formação inicial superior. Esta consagração de Daciano Costa é menos trivial, academicamente falando e, por isso, é mais notícia.
Não estava à espera que as redacções das televisões resistissem à tentação de centrar o seu pacote informativo em António Damásio, já que este vem rodeado de fama (evidente e merecida) aumentada pelo facto de ser um cientista português reconhecido e a trabalhar na “América do Norte”.
Mas a televisão pública passou dois blocos com António Damásio, acrescentados de uma intervenção de Marques Mendes, mais ou menos bacoca (e reverente, no seu pior) aos portugueses no estrangeiro. A notícia fez escassa referencia à Universidade de Aveiro. E escondeu Daciano Costa e o “design” académico.

[Ficámos a saber também que Marques Mendes veio a Aveiro fazer o seu papel de politico pequenino, estrela polar que anuncia o pólo norte da Universidade de Aveiro, antes de o detalhar aos órgãos autónomos da universidade autónoma. ]

A este respeito, a RTP fez um mau trabalho, para não dizer que fez um frete ao poder politico. Pela mão da RTP, as significativas celebrações académicas do aniversário da Universidade de Aveiro reduziram-se à festa de Natal do pequenino.


[o aveiro; 24/12/2003]

aviso à navegação


Pode encontrar estes sinais no Museu Marítimo de Ílhavo.
Mas o que queremos é aconselhar vivamente uma visita ao Museu de Ílhavo.

A aranha idosa

Ele sobe ao poder. Apoiado em aliados poderosos que dele precisam para fazer guerra a outros poderes na altura adversários dos seus aliados. Depois, o poder sobe-lhe à cabeça e vai-se cercando de tudo o que o poder pode dar: dólares, tesouros, palácios, etc. Embebeda-se de poder até jogar o jogo da vida, fome e morte do seu povo. O seu povo tem nada e ele nada em dólares e fausto. Está cego e não pode nem quer parar a escalada do terror. Para ser o mais poderoso entre os poderosos, decide ser profeta e até fazer guerra a alguns dos seus vizinhos. Sem reservas dos seus aliados, vai recebendo o apoio dos negociantes, em particular, de armamento.

Até que um dia entra em rota de colisão com os interesses dos seus antigos aliados – em ouro negro e dólares. É então que os ex-aliados declaram aberta a caça ao tesouro e do dono do tesouro. E despejam arsenais de loucura na caçada, transformando um país numa coutada. Açulam cães e furões com promessas de prémios de muitos milhares de dólares pela cabeça de raposas famosas como cartas de um baralho do jogo da guerra. E açulam países com promessas de contratos milionários na reconstrução do pais que ajudaram a destruir ao apoiar e, mais ainda, ao apear o ditador.

Um dia da semana passada, depois de meses de surtidas infrutíferas no que respeita a armas de destruição maciça, com caça de troféus menores e muitas baixas em acidentes de caça, lá apanharam o ás de espadas. Bem precisavam! Ainda sem conseguir apanhar o cobiçado troféu taliban, podem mostrar ao mundo o velho ditador enfiado num buraco coberto de lixo, na companhia de duas metralhadoras e centenas de milhares de dólares.

Virtuosos caçadores, poderosos do mundo, fazem biquinhos de doçura sobre o acontecimento. Até a voz lhes treme nas declarações sobre a importância da captura do símbolo do terror e da opressão. Nesse caminho que fez de caçador a caçado pelo poder, Saddam perdeu todo o brilho e aparece como um indigente cheio de dólares que já não servem para comprar o que quer e quem quer que seja.

Os políticos que têm a ilusão do poder eterno bem podem ver Saddam como a imagem que o espelho do poder lhes devolve quando se demoram a espreitar por ele. Tudo começa e acaba em dólares que deixam de ser baba para linhas de seda dos palácios da aranha ascendente e parecem ser o que são – podridão no túmulo da aranha idosa.


[o aveiro; 18/12/2003]

As mulheres, os fantasmas

A respeiito do julgamento das mulheres de Aveiro acusadas de terem interrompido voluntariamente a gravidez, recomendo a leitura do artigo de Leonete Botelho, Os fantasmas fora do armário , do Público de 11/12/2003.
Acaba assim:


O debate está lançado. No banco dos réus, em Aveiro, há 17 pessoas cabisbaixas, em silêncio. Mas à sua volta tocam sirenes e dançam fantasmas. No país agitado pela pedofilia, toca-se a rebate pelo direito das crianças, mesmo que não passem de um punhado de células. Voltará a discutir-se o que fazer com os embriões congelados nos laboratórios. Voltará a discutir-se quando começa a vida.

Para se declarar a morte, o conceito medicamente assumido é o da morte cerebral, e não a paragem cardíaco-respiratória. Por uma questão de coerência, porque não usar o mesmo critério para estabelecer o início da vida?

Monstros


Desenhamos os monstros que andam à solta para os vermos

Os dias das leis infelizes.

No próximo dia 16 de Dezembro, em Aveiro, realiza-se mais uma sessão de um julgamento que junta sete mulheres no banco das rés, acusadas de terem interrompido voluntariamente a gravidez. Para além das mulheres são réus um médico e pessoal do consultório e, pela primeira vez, ao lado das sete mulheres estão sete homens (maridos e namorados) acusados como cúmplices.
É bem possível que a próxima sessão salte da sala de julgamento até à contestação pública da lei infeliz que tais julgamentos permite e pede. O tribunal do direito torna-se casa da injustiça, embrulhado na teia de uma lei estúpida que ganhou vida como doença de uma moral social destemperada.
Já ninguém acredita que uma mulher que se obrigue (ou seja obrigada) a interromper a sua gravidez seja outra coisa que não uma vítima a merecer ( e precisar de) solidariedade, apoio e compreensão, discrição. A lei infeliz, que a diz criminosa, faz dela vítima de uma nova (ainda que legal) atrocidade.
A sociedade portuguesa pode estar dividida a respeito da lei sobre a interrupção voluntária da gravidez. Mas recusamo-nos a acreditar que haja alguém capaz de condenar como criminosa uma mulher que tenha abortado. Podemos lamentar o aborto (e respeitamos mesmo quem chore a morte de um embrião) mas não nos passa pela cabeça acrescentar sofrimento ao sofrimento de quem sofreu uma amputação (física e, quantas vezes!, espiritual).
Sobre a solidariedade devida a estas mulheres e sobre a contestação que a lei merece, não temos quaisquer dúvidas. E é, por isso que, como cidadãos, escrevemos a exigir a alteração da lei infeliz que acrescenta infelicidade a todos as pessoas de bem (a favor ou contra o aborto).

Manifestamo-nos contra todos os políticos que prometeram (para não cumprir) medidas de planeamento familiar e prevenção no quadro do serviço nacional de saúde com novos apoios às mulheres (mais ou menos jovens). Manifestamo-nos contra a hipocrisia de manter a ignomínia em forma de lei que esta criminalização das mulheres representa. Sabemos que as mulheres que vão a julgamento não são criminosas. Já o mesmo não podemos dizer de quem tanto mentiu, deixando aberta uma janela de lei para violar a vida privada das mulheres em dificuldades.

Há dias para sermos infelizes por via da lei.

[o aveiro; 11/12/2003]

O Aveirense exigente.

Hoje decidi ficar por casa. Lembro-me muito bem do que era a cidade de Aveiro nos anos 50 ou no início da década de 80. Lembro-me do pequeno comércio (tão poucas livrarias e casas de discos), dos teatros e cinemas (Aveirense e Avenida até ao 2000 e Oita).

Para quem tem memória da cidade que fomos e agora somos, a mudança traz em si uma espécie de mistério. De onde vêm as pessoas? As grandes superfícies operaram alterações profundas. Reconhecemos que a elas se deve a criação de novos públicos para o consumo de bens de cultura também. Há um grande número de salas ou salinhas de cinema, há mais livrarias e casas de discos. Apesar da venda feita nas grandes superfícies. E apesar dos novos meios de difusão: a televisão, o vídeo, o dvd… há público para muitas salas.

Estou a falar disto agora, por estarmos no fim do ano que nos mostrou o fim de algumas obras lentas e lamacentas, o fim dos tapumes que nos escondiam uns dos outros e nos escondiam do que sempre tínhamos visto. Parecia que Santa Engrácia tinha vindo para Aveiro e começávamos a desesperar. Quando a poeira foi varrida e pudemos pass(e)ar pela Praça Marquês de Pombal ou ver a Capitania nem nos lembrámos de tecer criticas ao que nos foi dado ver.

Não imaginam o conforto que foi voltar ao Teatro Aveirense para assistir a concertos. Até me esqueci de me irritar com os defeitos do que estava a ver. E se os há! Mas hoje só quero falar do conforto dos passeios livres e limpos, do teatro que se acrescenta à cidade e nos acrescenta em graça e sabedoria. Reparei que não lhe falta público nas iniciativas inaugurais.

À tempestade das obras longas e imperfeitas sucedeu-se a bonança das programações perfeitas, das obras corrigidas nas suas inacessibilidades? Não! Os responsáveis puderam ver que havia um público com sede de novas actividades culturais. Isso não lhes dá sossego algum! Porque se não responderem com novas qualidades, se não perceberem que as novidades colocam tudo num novo patamar de exigência, serão abandonados à sua sorte de trapos do passado. Não se podem queixar! O Aveirense (con)venceu em dias de bons filmes nas grandes superfícies e até em dia de inauguração do estádio de futebol. Ora isto só pode ter acontecido porque há por aí públicos que sonham as cidades por dentro delas.



[o aveiro; 4/12/2003]

vem dezembro e o ano vai

Há anos horríveis. Os noticiários de 2003 abriram com futebol, guerras, abusos sexuais, corrupção, … e outras maldições. E a cidade de Aveiro andou em obras que chegaram ao seu termo, depois de terem ocupado todo o espaço desde anos antes. Mergulharam-nos em poeira e lama, atravancaram-nos os olhos o com tapumes … de tal modo que, quando destapam, somos incapazes de ver defeitos… mesmo quando as praças que sobram abertas estão tão despidas e lisas em seus chãos de pedra que nos cegam nos dias de sol e nos devolvem a um abandono absoluto nos dias de temporal.
Inventaram as pedras lisas e pequenos obstáculos e armadilhas para quem distraia os sentidos … ou não os possa usar na sua plenitude. Em todas as obras da cidade destapada, vejo marcas desse desprezo. Também vejo os repuxos que foram ocupando as praças de pedra pelas cidades. A mesma instalação é a marca de água das praças das cidades portuguesas - não foi só o deserto de pedra polida a tomar conta da cópia absurda.


Praça Marquês de Pombal



as duas pastas

Trago sempre duas pastas dentífricas dentro da pasta onde guardo também alguma roupa interior e lenços de assoar. Nunca me foram úteis a...